Não gostem dele, por favor (publicado originalmente em 24/11/2004)
Para Antônio Abujamra, “o sonho não deve passar de uma noite, pois acabou com a América Latina”. Taxado de mau humorado, rabugento, provocador, intrigante, pícaro, astuto e velhaco, entre demais adjetivos, Abu, como é conhecido no meio artístico, é, isso sim, extremamente paparicado e amado. Sua inteligência aguçada, seus trocadilhos infames, além do desrespeito elegante àqueles que falam com ele, são as marcas registradas desse senhor corcunda, adorador de suspensórios. Mostrar as diferenças entre ele e o “resto” é fácil: Abujamra tem coragem de dizer o que lhe vem à cabeça. E isto só o leva às alturas. Cutucou diversas vezes a Rede Globo e a televisão brasileira em geral, como quando disparou ser “medíocre” o ramo televisivo. A resposta, ao contrário de tudo e todos, foi a TV da família Marinho o convidar a participar na atual novela das sete da noite. Adiciona-se a este fato o programa “Provocações”, transmitido pela TV Cultura desde agosto de 2000, mantido e dirigido pelo trio Antônio Abujamra /Fernando Faro /Gregório Bacic. Ponto alto da programação aberta no Brasil.
Nesta atração de meia-hora de duração, Abu cita autores brasileiros e estrangeiros, lê poemas universais, deixa de calças curtas alguns convidados (o ex-jogador Raí foi um deles), fala provérbios adaptados por ele e cria frases antológicas (“A vida é sua, estrague-a como quiser”, é um exemplo). Aos 72 anos, Abujamra, consagrado diretor de teatro da geração de Augusto Boal, Zé Celso Martinez Corrêa e Flávio Rangel, só descobriu a alegria de pisar num palco como ator em 1989, ao caricaturar os delinqüentes e trapaceiros com o personagem Ravengar, bruxo misterioso de “Que Rei Sou Eu?”, novela da tal Globo que ele tanto critica. Esse jeito de maltratar as pessoas com charme ele sabe fazer como poucos. São berros, palavrões, insultos e desdéns que deixariam todos à sua volta pasmos. Mas aí se derrete ao falar sobre seu neto e se transforma novamente no respeitado homem septuagenário. Personagem de si próprio, fingidor das badaladas horas e dono de contradições sensacionais, ele crê em nada, mas se emociona ao ler “O Guardador de Rebanhos – Parte VIII”, de Fernando Pessoa.
Revelou-se um exímio entrevistador. “Aqui não é programa da Hebe”, costuma repetir a quem insiste em elogiá-lo em frente às câmeras. A entrada de “Provocações” na grade da emissora paulista foi recheada de contratempos. Antes, ele havia oferecido o material a outras estações, sem sucesso. Foram 17 anos até Abu conseguir levar seu projeto ao ar. Em entrevista a revista “Caros Amigos”, revelações saíram da boca dele. Segundo ele, SBT, CNT de Curitiba e Bandeirantes recusaram até mesmo assistir às conversas do programa. E, nestas idas e vindas da vida, a TV Cultura o laçou por intermédio de Walter Silveira, diretor de programação do canal e ex-aluno de Antônio. Na estréia, a bomba com Suzana Alves, ex-Tiazinha. Cara a cara, Abu virou-se para a moça e, calmamente, falou: “Quando você mexe sua região glútea, você tem a noção de que muitos jovens se masturbam por sua causa?”. A reposta: “É mesmo?”. Fã incondicional de Cuba e Fidel Castro, briga em bom tom com quem fala mal da ilha. Entre teatrais, cita sempre William Shakespeare, “esse sim um gênio, não eu”.
“Provocações” rende menos de três pontos de audiência, mas recebe mais de dois mil e-mails por dia. A imensa maioria só tece bajulações. O diretor e ator se refere aos telespectadores como “uns 13 ou 14 que vêem esse programa, porque proibimos muita gente de ver ‘Provocações’”. Sentaram na poltrona deste talk-show às avessas todo mundo: prostitutas, moradores de rua, filha de dono de bordel, cantores, escritores, poetas, apresentadores, atores, políticos, compositores, jornalistas, donos de circo, promotores de eventos, enfim, até mesmo seu filho André Abujamra passou por lá. Visitas a outros Estados, para fugir do marasmo paulistano, também faz parte da pauta. Abujamra entrevistou gente em Macapá, Recife, Rio de Janeiro, Berlim, Moscou, Lisboa etc. Um dos arranca-rabos mais repercutidos foi com o animador Carlos Massa, o Ratinho. Tudo começou quando Ratinho defendeu filmes com finais melosos e baixou o sarrafo em “Central do Brasil” (1998), porque na fita “ninguém terminou bem: o garoto não achou o pai e Fernanda Montenegro voltou sozinha ao Rio de Janeiro”.
Abu não se agüentou: “Então vai fazer o cinema ruim dos Estados Unidos”. Massa perguntou se podia discordar do comandante de “Provocações”, que rebateu de vez: “Claro que não pode!”. Os retumbantes fracassos de Abujamra são seu maior trunfo. Ao ir ao “Programa do Jô”, algum tempo atrás, “convidou” Jô Soares a fazer uma peça de teatro. O motivo: “Você precisa de um fracasso, Jô”, alertou Antônio, com sua pompa conhecida. Casado há quase meio século com Belinha, tem paixões ladeadas, como o jogo. “Belinha diz há 40 anos para mim: ‘Pare!’ E é a única coisa que ela não consegue”, admitiu na entrevista com Soares. “Contos da Meia-Noite”, ao ar de segunda a sexta-feira também na Cultura, foi idéia dele. E é a mais simples possível: ator lendo para a câmera contos de escritores renomados. Filmaram para o programa, além de Abu, artistas como Marília Pêra, Walmor Chagas, Beatriz Segall, Paulo César Pereio, Maria Luíza Mendonça, Giulia Gam, Beth Goulart, entre outros. São minutos de inteligência na TV. Opa, me lembrei que não posso ser panegirista com ele...
Jovens que o respeitam, ele despreza. Românticos, para Abu, têm de se dar mal na vida. Nessa teia de sizeteses, ele prende quem quiser. Como pode este sujeito, então, ser reverenciado por todos os lados? Eis mais enigmas sobre o diretor/ator. Enigmas cujas soluções nem ele próprio sabe. “Não gosto de nada, nem de mim mesmo”, bradou para Marina Amaral e Mylton Severiano, repórteres de “Caros Amigos”. Nascido em Ourinhos, interior de S. Paulo, foi educado por uma cunhada em Porto Alegre (RS). Esta o empurrou para a leitura de autores clássicos. Formado em jornalismo, estudou na Espanha e perambulou por Argélia e Marrocos na juventude. “Achava o Brasil uma merda, e acho até hoje, e por isso precisava sair daqui”, confessou. Esse desgosto amargurado pode ser a fachada certeira para seu sucesso. Seu bico de criança mimada dá mais ênfase a isso. Aproximadamente há quatro anos, filiou-se ao PSB e tinha o propósito de sair candidato nas eleições de 2002. Não se levou a sério e desistiu. A inconformidade total lhe rendeu homenagens fora do Brasil. Aqui também, claro.
A neurastenia imposta na consciência de Abujamra impregna nos seus inúmeros afazeres. Sua voz está em comerciais, locuções, filmetes. A carreira cheia de energia pesou mais que o “abraço, a única coisa falsa” de “Provocações”, como o apresentador costuma avisar aos entrevistados. Longa vida ao “cavaleiro da desesperança”, e que todos o odeiem, por gentileza.