As explicações sobre Regan (publicado originalmente em 30/10/2004)

Para quem aprecia o terror de boa qualidade, o grande lançamento desta temporada é a volta do padre Merrin em “O Exorcista: O Início” (2004), e não chatices como “Residente Evil II” e “Alien versus Predador”. Com direção de Renny Harlin, “O Exorcista zero” (o chamo assim) recupera toda a história do demônio propriamente dito. Não vá ao cinema esperando rever o rosto meigo de Linda Blair (Regan nos dois primeiros filmes da série, de 1973 e 1977) ou a introspeção macabra e sombria de Jason Miller (padre Damien Karras, das fitas um e três, esta filmada em 1990). Na película deste ano, nenhum dos atores do citado trio de roteiros participa. E tampouco deixam a saudade apertada. Há, isso sim, profissionais desconhecidos do grande público e esforçados em passar aos espectadores boa impressão. De certa maneira, conseguem. O enredo relata a juventude de Merrin (feito pelo ator Stellan Skarsgard), seus descobrimentos arqueológicos nos desertos da África e o encontro de uma igreja cercada de mistérios escabrosos. O mau retorna obscuro. O segredo do demônio é revelado.

Os percalços e desorientações da garota Regan estão no livro de William Peter Blatty, base aos sets de filmagem. Escrito nos anos 1940 e dizendo-se inspirado em fatos reais que ocorreram com um garoto, Blatty virou o sistema católico dos Estados Unidos de ponta-cabeça. Como explicar a origem de Pazuzu, espírito maligno que incorpora na personagem de Linda tanto na fita de 1973 (quando a atriz possuía 14 anos) quanto na de 1977? Não foi fácil. Ainda mais porque durante os trabalhos das câmeras, aconteceram coisas estranhas: mortes de pessoas relacionadas com o filme (técnicos, gente da família deles etc), incêndio num dos cenários e sensações incessantes de mal-estar. Claro, tudo se argumenta para solucionar estes enigmas: isto simplesmente ocorre em qualquer lugar e durante os meses das filmagens seria corriqueiro. Em “O Exorcista zero” nada preocupou. Por utilizar mão-de-obra “barata” (profissionais sem estrelato), não houve movimentações nos bastidores, seja por parte da imprensa especializada. Ninguém “incomodou” e descrições sobre momentos “xis” acabaram.

No leste do continente africano, o padre Lancaster Merrin, décadas antes de ajudar e salvar a alma da filha da atriz de cinema Cris MacNeil, tem o encontro com Pazuzu. A confiança do sacerdote pode ser bastante abalada. A frágil saúde dele ainda não está exposta a sangue frio, mas suas atitudes descrentes, sim. William Wisher Junior foi o responsável pelo roteiro. Em 1999, para comemorar as bodas de prata do lançamento da fita de 1973, a Warner, distribuidora do enredo, relançou a película totalmente remasterizada digitalmente. O sucesso se repetiu. O filme continha 11 minutos com cenas inéditas, que foram retiradas da versão original da década de 1970, como, por exemplo, a seqüência em que Regan desce o lance de escadas da casa dela como se fosse um caranguejo mascarado. A cara do “mau”, que surgiu durante instantes subliminares (metade de um segundo) em “O Exorcista” volta na película de 2004, onde o co-protagonista é um menino. Na igreja achada por Merrin, todas armas estão voltadas para baixo. Uma espécie de desavença entre a cruz e espada? Quem saberá a resposta?

Ellen Burstyn, detentora da personagem Cris MacNeil no primeiro filme, patenteou seu modo apavorante de interpretar a mãe que, de uma hora para outra, vê a filha pré-adolescente tomada por força maior, possessiva e psicótica. Indicada ao Oscar em 1973 por este papel angustiante, não teve a estatueta ganha. Na festa do ano seguinte, concorreu de novo. Desta vez, obteve êxitos com “Alice Não Mora Mais Aqui” (1974). Estes dois apontamentos da Academia se somaram a outras quatro lembranças da entidade máxima do cinema mundial: “A Última Sessão de Cinema” (1971, para atriz coadjuvante), “Tudo Bem no Ano que Vem” (1978), “A Ressurreição” (1980) e “Réquiem Para um Sonho” (2000). “O Exorcista” ainda esteve presente nas categorias filme, diretor (William Friedkin), maquiagem e efeito especial. Por sua vez, Max von Sydow (Merrin da fita de 1973) disputou há 16 anos no quesito melhor ator por “Pelle, o Conquistador” (1988). Miller, apesar de retornar na pele de doente mental e assassino em “O Exorcista III”, nunca mais reviveu seus bons tempos de filmagens.

Para desvendar esta trilha fúnebre, Renny Harlin mexeu em tudo que podia: vespeiros falsos que se contorciam em armadilhas para o pobre e investigativo padre Merrin. São cenas que marcam a nova onda do cinema americano: terror munido de criancinhas para dar tremidas maiores. Isto se deu em “O Sexto Sentido” (1999), “Sinais” (2002) e “O Chamado” (2003). Independentemente dessas películas serem razoáveis ou não, é certo que a presença de seres com menos de 12 anos de idade dá equilíbrio às tramas pavorosas. Nos bastidores de “O Exorcista”, Linda Blair se divertiu à beça com toda aquela pompa de cemitério. Nas seqüências em seu quarto, onde quem entrava sentia o maldoso frio cortante, o estúdio dormia sob ar refrigerado durante a madrugada que antecedia às filmagens da manhã. O cenário tinha de estar a 0º de temperatura, como desejava Friedkin. A respiração vista com olhos nus era real. Linda, com roupas finas de pijamas, de fato tiritava com a quase neve do quarto. O roteiro de Renny, ao contrário, mostra igreja e milagrosos quilômetros africanos, moradia de Pazuzu.

Porque recair sobre a ingênua Regan, miniatura de artista que esculpia peças e desenhava muito bem? Porque justamente o padre Merrin, desbravador infalível dos cantos mais absurdos do mundo? Porque na África, se aquele continente é paupérrimo e as maldições daquele lugar são viver e respirar fome, sede e tragédia alheias? Porque trazer à tona significados tão perplexos e complexos como qual a tradução do diabo, demônio, coisa-ruim e se é que eles existem e são palpáveis? Nesse túnel fundo do tempo, “O Exorcista – O Início” faz das tripas coração para tentar vasculhar no baú explicações para as perguntas relacionadas no começo deste parágrafo. As quase duas horas do filme (possui uma hora e 54 minutos de duração) se redimem quando pensamos na tralha que foi “O Exorcista III”. Não superam a fita de 31 anos atrás, mas isso era esperado. Esta benemerência para com o trabalho de Harlin é chover no molhado. A película possui boa fotografia, som, edição e colocações do elenco.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 06/06/2009
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