Três verbos de uma mesma sinfonia (publicado originalmente em 25/9/2004)

No Brasil, atores-cantores são vistos com maus olhos. Atores-dançarinos têm a mesma repulsa. Pode-se chamar tal ojeriza de preconceito, inveja, desdém intencional etc. Aqui, quem interpreta um vilão perverso em novela ou filme é apenas ator. Nada mais. Se aspirar gravar CD numa perspectiva próxima é taxado de “aparecido” ou “metido a fazer mil coisas ao mesmo tempo”. A propósito, não me refiro aqui aos Dados Dolabellas ou às Wanessas Camargos da vida, mas sim a pessoas com algo a oferecer de bom. Cito, por exemplo, Bibi Ferreira. Trabalhos dela no cinema é difícil achar, porém interpretações no teatro não cabem numa lista telefônica. Criada nos palcos e influenciada demais por Procópio Ferreira, seu pai, esta atriz de 82 anos esbanja nobreza ao soltar a voz nos espetáculos dela. São canções de Portugal (fados), outras espanholas, brasileiras legítimas do verde-amarelo. Bibi está mais atual que nunca com os óculos escuros. Marília Pêra ocupa lugar cativo neste quesito também. Desde sua infância, freqüenta a vista dos espectadores seja cantando, dançando ou vivendo alguém.

Fora deste impávido colosso, as estrelas se multiplicam por dez. A começar por Frank Sinatra. O artista, morto em 98 aos 83 anos, iniciou a carreira na década de 1940 ao participar das orquestras de Harry James e Tommy Dorsey. A estréia nos cinemas aconteceu em 41, ainda com Dorsey na fita “As Noites de Las Vegas”. Passo a passo, Frank esculpia cuidadosamente seu sucesso tanto na área musical quanto na interpretativa. Ao aceitar estar em “A um Passo da Eternidade” (1953), película de maior qualidade que fez, ganhou Oscar de ator coadjuvante. Granjeou nova indicação dois anos após ganhar seu mais importante prêmio, desta vez por “O Homem do Braço de Ouro” (1955). Não levou. Irmanou-se ao par de mitos da música Bing Crosby e Gene Kelly para rodar “High Society” meses depois do filme do braço de ouro. Aí o mundo cinematográfico ficou com queixo no chão. Emendou, já nos anos 60, a dupla de histórias “Sob o Domínio do Mal” (1962) e “O Expresso de Von Ryan” (1965). Com apelidos simples de “A Voz” e “Os Velhos Olhos Azuis”, Sinatra deu tudo dele a todos.

Libertad Lamarque, digamos assim, foi o Sinatra de saias. Nascida na província de Santa Fé, na Argentina, a cantora-atriz recebeu este nome através de seu pai, ativista político perseguidor da tão almejada liberdade. Aos 16 anos se tornou a voz de tango mais conhecida do país. Depois, este título foi aumentado para “a maior atriz de cinema da Argentina”. O público, aos berros, a chamava de “La Reina Del Tango” (a Rainha do Tango), “Marlene Dietrich argentina” ou somente “Liber”. Apesar de ter aberto as portas da sétima arte quando esta não sabia o que eram sons nas salas dos ecrãs, ela teve admiração quase instantânea dos fãs. Sua senda estreita por um triz não terminou quando Lamarque fazia “La Cabalgata del Circo”. Ela, num acesso de raiva, esbofeteou Eva Duarte, futura Eva Peron, primeira-dama da Argentina. Quando Peron assumiu a presidência, exilou-se voluntariamente no México, onde o reinado prosseguiu sem alarde. Protagonizou mais de 65 filmes. Na terceira idade, acima dos 80 anos, lotou casas de shows na Broadway (Estados Unidos), México, Argentina e Brasil.

Mencionado no segundo parágrafo, Bing Crosby, considerado um dos três pilares cantantes do século 20 nos EUA, não sabia ler nada de notas musicais. Para contrapor isso, possuía afinação mais que perfeita. Tinha programa de rádio, atuava em pequenos filmetes e gravava discos. Assim, Crosby nobilitou-se como astro número zero da categoria musical. Tinha na palma das mãos características unanimes: personalidade serena e calculada humildade. Aos 41 anos, em 1944, a Academia concedeu a Bing o Oscar de ator por seu papel de padre em “O Bom Pastor”. Antes disso, em 42, foi ao estúdio deixar sua voz na canção “Natal Branco”, tema da película “Duas Semanas de Prazer”. Versos que se eternizaram como sua marca registrada. Ao pleno vigor, em 40, Bing Crosby juntou-se a Bob Hope, famoso comediante, para trabalhar numa série de fitas, tais como “A Sedução de Marrocos” e “A Sereia das Ilhas”. A alcunha de ‘Menino do Ritmo’, adquirida nos tempos em que Bing era radialista, perdurou até sua morte, em 77. O contratado da empresa Paramount largou a vida e assobiou leve...

Essa leveza certamente não têm Madonna e Britney Spears. A primeira revelou-se ao mundo ao mostrar suas curvas aos vinte e poucos anos nos shows cheios de performance que promovia. Virou pop ao esbravejar “Like a Virgin” em meados da década de 1980. Seus mínimos, ousados e coloridos trajes espantavam uns, faziam babar outros. A loira, então, pintou nas telas grandes em “Procura-se Susan Desesperadamente” (1985). Chuva de críticas com surras homéricas à cantora. Anos depois, 1996, veio o pior dos piores com “Evita”, na qual Madonna encarnava a heroína latino-americana ao lado de Antonio Banderas. Fiasco onipresente. Com Britney ocorreu o mesmo. Lançada na mídia em 1998, aos 16 anos, vendeu milhões de CDs com o single “Baby One More Time”. As estratosféricas quantias continuaram no CD dois e três. Em 2002, “Crosswards” veio aos cinemas estrelado por ela. O enredo escancarava o cotidiano típico adolescente, com os temas sexo, drogas e azaração na ponta da língua de cada ator. Não foi bem, assim como “Acquária” (2003), dos irmãos Sandy e Júnior. Ufa!

Grupos musicais, ver Beatles e Spice Girls (sem comparações), estiveram em roteiros. Roberto e Erasmo Carlos, com Wanderléia a tiracolo, foram na onda do conjunto de Liverpool e nos anos 60 montaram seus quadrinhos de faz-de-conta. Elvis Presley, o “Rei do Rock”, apesar do falecimento precoce aos 42 anos, está no ramo. Isto sem falar dos deuses Louis Armstrong, Julie Andrews e Fred Astaire. Cada qual com sua magia: a voz rouca e forte e entusiasmada soprada no trompete de Louis, a graciosidade desempenhada por Julie em “A Noviça Rebelde” (1965) e “Mary Popins” (1964) e as passadas sincronizadas e bem ensaiadas de Astaire em fitas como “Amor de Dançarina” (1933) e “O Caminho do Arco-Íris” (1968). Ginger Rogers também conquistou a Broadway com a dança firme e contagiante, que Gene Kelly aprimorou para encenar “Cantando na Chuva” (1952). Três verbos cuja sutileza abreviam os significados da interpretação digna de elogios: cantar, dançar e atuar, sejam eles em quaisquer ordens. Livrar-se desses tabus não é água com açúcar, mas nem todos precisam disso.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 01/06/2009
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