Solidão a dois bem doce e longe de casa (publicado originalmente em 15/9/2004)

A história se passa em Tóquio, lugar raramente explorado pelos cineastas estadunidenses. Junta-se na aventura dois atores que mal conheciam o rosto do outro até então: Bill Murray e Scarlett Johansson. À frente está Sofia Coppola, diretora iniciante, filmando seu segundo longa-metragem. O resultado disto tudo, onde se intercalam cenário, elenco e direção, foi o delicado, apaixonante e estacado filme “Encontros e Desencontros” (2004). Lidar com a solidão nesses tempos de medo e insegurança, espalhados pelo mundo todo, é difícil. Mas a filha de Francis Ford Coppola se deu bem. Transferiu toda sua equipe à capital japonesa e rodou o roteiro ganhador do Oscar de melhor original. O enredo não possui nada de incomum: duas pessoas (um ator decadente e uma recém-casada entediada) ficam hospedados no mesmo hotel. Bob Harris (Murray) está no Oriente para gravar um comercial de uísque. É bem pago para o serviço. Já Charlotte nada tem para fazer. Seu marido, John (Giovanni Ribisi), é fotógrafo e tremendamente apaixonado pelo trabalho. Sai todos os dias e larga a moça, que olha, pálida, a janela.

Às vezes, dividir a vida com a solidão deixa de ser ruim. Os dois norte-americanos, turistas em Tóquio, nunca se viram, mas têm algo de semelhante: o isolamento. Bob filma o intervalo, conversa com o agente, e volta para o quarto de hotel, lugar no qual custa para dormir. Charlotte é igual: John vai, a trabalho, viajar para outra cidade do Japão e ela permanece estátua, imóvel aos encantos vários da vida que ela perde. De repente, os personagens de Bill e Scarlett se encontram. Nada acontece. A direção de Sofia prima pela emoção amassada e desgastada e surgem nessa mistura boas somas. Ao começarem a se falar (praticamente na metade da fita, de 1h40 de duração), ator e solitária abraçam o mesmo objetivo: fazer algo antes que morrer dominado pelo tédio. Os papos-cabeça que levam inibe de alguma maneira o cotidiano que tinham anteriormente. A esposa de Harris liga para ele quase todo dia e quer o retorno do companheiro depressa. Bob gostaria realmente de voltar. Porém, conheceu a garota com quem reaprendeu o ofício de sorrir. Então, os pontos maravilhosos de Tóquio aparecem.

Sofia Coppola jamais negou seu interesse pelo continente asiático, ainda mais pelo Japão. Sua adoração pelas pessoas de olhos puxados vem de longe. Uniu o útil ao agradável e conseguiu mostrar a cidade japonesa por outros ângulos. Bares, restaurantes e até um Jô Soares japonês (insuportável no patamar igual), programa que Bob Harris é “entrevistado”. A fotografia da película é impressionante. A beleza inigualável das paisagens, assim como os locais coloridos, dão tom alegre a “Encontros e Desencontros” depois da dupla Murray e Scarlett se verem. O hotel chato, vazio e marrom agora dá lugar aos passeios do novo casal (atenção: eles são só amigos). Ambos descobrem o ânimo perdido e o resgatam. A amizade sincera, cúmplice e verdadeira é construída aos poucos. O aparato serve para eles se apaixonarem. Tudo leva a crer nisso. A aplicação de Coppola é revelada neste ponto crucial do filme. Eles irão ou não se transformar em algo maior que simplesmente amigos confidentes? Dar esta conclusão ao público ficaria frouxo. A diretora não tirou cartas da manga e filmou o inevitável.

A relação entre Bob e Charlotte extrapola qualquer sentimento. Palavras somem quando eles se encontram. Basta o olhar. A diferença de idade nem importa (ele está “na crise da meia-idade”, como diz ela, beirando os 25 anos na fita, mas com 18 na vida real). Parecem transparecer todos os fluídos falsamente amargos. A seqüência do karaoquê é extremamente comovente, por exemplo. A corrida a pé na madrugada, idem. O cuidado com o dedo machucado de Charlotte também. Detalhes simples, como a cabeça que descansa no ombro, ou um sorriso de sono, ou então pernas e braços que caem em outros braços e pernas ao dormir compõe essa trilha com pitadas de amor, sinceridade, ciúme e bem-estar. O caso é que “Encontros e Desencontros”, em cartaz no Brasil nos primeiros meses deste ano e recentemente lançado em DVD, recebeu indicações ao Oscar (além de roteiro original, concorreu a melhor ator, direção e filme, entre outros) e ao Globo de Ouro. Aos 32 anos, Sofia atingiu talento do pai, quem sabe o supera se compararmos “Encontros e Desencontros” com algumas fitas de Francis.

Charlotte, graduada em filosofia, e Bob, homem-propaganda de bebida alcoólica. Dois perfis cuja distinção é espontânea. Duas pessoas desconhecidas com problemas em entender o que falam os japoneses e com olheiras provocadas pelo fuso horário. Dois seres deste mundo desacompanhados e sem ter nada para se entreter numa cidade movimentada, cheia de trombadas. Scarlett Johansson cria sua beleza. Cabelos aloirados, rosto de menina, jeito dramático e risada encantadora. Bill Murray faz o contrário. Tinge as madeixas para parecerem de fato tingidas, exibe olhar carente simultaneamente com suas improvisações divertidas nos sets. Méritos à direção. Reunir este par de atores foi o maior prêmio para Sofia. Fez de Lost in Translation (em português “Perdidos na Tradução”, título original da película) a modernidade organizada. Nos extras do DVD, entre outras ‘informações’ raras, Murray explica como aprendeu a frase “Sabe com quem está falando?” em japonês. É hilário. A diversão não pára por aí. Apesar do tema central da fita ser a solidão compartilhada, os risos sempre vem a calhar.

A maior parte destes instantes de humor está na atriz ascendente e fútil amiga de John que está no hotel para promover filme de artes marciais. Charlotte a vê com desprezo e pena quando escuta a entrevista coletiva e ao tentar conversar sério com ela numa mesa do restaurante do hotel. Claro, não tem sucesso. Ao olhar para o lado, observa Bob, o onipresente. Foge discretamente para o lado de seu parceiro fiel. Essa discrição preenche “Encontros e Desencontros”. Película com pessoas e sensações do dia-a-dia, com as quais qualquer um de nós pode esbarrar por aí. E chega a hora da estada deles no Japão ser encerrada. Quem irá embora primeiro? Nenhum dos dois deseja abandonar o outro. Será que existe a possibilidade deles viajarem juntos? Não se sabe. Fica a incógnita. O relacionamento da dupla tinha tudo para não dar certo. Para dar também. Eles sabem o que querem, mas têm medo de se envolver. Romper este amedrontamento, nem que seja com um simples beijo de despedida... É esta procura por um lugar ao sol que faz da história de Sofia Coppola, para mim, o melhor filme de 2004.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 31/05/2009
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