O leão branco trôpego e desengonçado (publicado originalmente em 21/8/2004)

Todos nós gostaríamos de pertencer à trupe de Brancaleone da Nórcia. Repleto de boa índole, cheio de intenções adoráveis, este bravo gladiador tem tudo que aspiramos: coragem, sorte, amigos e, sobretudo, apaixonado pela vida. Quem assistiu “O Incrível Exército de Brancaleone” (1966), sabe bem disto tudo. E o brasileiro em geral gosta de heróis fajutos e atrapalhados. O guerreiro natural da Nórcia possui algo em comum com Dom Quixote, de Cervantes, e o pobretão Macunaíma, de Mário de Andrade. Dirigido e escrito por Mario Monicelli, o filme sobre a tropa “brancaleonesca” diverte, emociona e adverte. Com Vittorio Gassman no personagem-título, a fita é um épico. O Aurocastro a ser alcançado pelos componentes do exército é a meta desgraçada que tanto perseguimos. Para tanto, temos de passar por perigos idênticos aos dos raros membros seguidores do intrépido Brancaleone. O mais impressionante é a destreza performática pela qual eles enfrentam seus inimigos. São fracotes.

Porém, não é Gassman o detentor maior da atenção na película, mas sim o ator Carlo Pisacane. Intérprete de Zeferino Habacuc, espécie de mago desastrado, completamente medroso e ambicioso ao extremo (sempre quer mais dinheiro), ele, na época das filmagens com mais de 75 anos, surpreendeu. Sem dúvida, os pontos mais engraçados da fita estão na figura dele. Com a voz fina, desdentado, de cabelos brancos compridos e detentor de um narigão, é estereótipo do feio. Sempre que está às voltas com o perigo, se esconde dentro do seu baú velho. As suas lamentações são nossos ressentimentos. O não-conseguir, seja de qual forma for, é demasiadamente afrouxante. É através de Habacuc que se desenrola o enredo, pois ele é quem apresenta o pergaminho de propriedade de Aurocastro ao natural da Nórcia. Brancaleone, então, junta seus cacos em traje de soldados e parte rumo à conquista. Esta pode ser territorial ou amorosa, porque o líder norciano é homem. Quer uma companheira a seu lado.

Toda aquela pompa do grupo, onde o que importa mesmo é o show, serve apenas de refresco aos nossos olhos. Brancaleone se julga o mais forte, poderoso, inteligente e invencível da região de Aurocastro, que seus parceiros teimam em achar. Catherine Spaak, na pele de Matelda, aparece nesse entremeio. Matelda é a moça pura prometida a um noivo desconhecido. Quando a garota olha para o porte de Gassman, se enamora por ele de imediato. Mas Brancaleone, além daquelas características bem modestas apontadas anteriormente, é leal. Como havia prometido ao velho tutor de Matelda que não deixaria ninguém violá-la, cumpre a palavra e a rejeita. Se Dom Quixote afirmava seriamente ver e medir forças com moinhos-de-vento e Macunaíma gostava de levar vantagem nas suas aventuras e enganava para isso, Brancaleone da Nórcia, digamos assim, “se achava o bom”. Com seu fiel cavalo, Aquilante, o qual também possuía medo e levava sopapos de Brancaleone por isso, ele seguia firme.

E a música do exército contagia. “Branca, Branca, Branca! Leon, Leon, Leon!” Prossegue aí. Claro, queremos o melhor. E Brancaleone quer conquistar o planeta. Não tem companheiros ferozes, possui menos esperteza que qualquer outro e consegue derrotar seus algozes. Cenas “pastelão”, nas quais os tropeços e melecas são o principal ingrediente, compõe a trilha de “O Incrível Exército de Brancaleone”. Suponho que a meta ao lançar este filme em meados da década de 1960 era terminar com os pesadelos europeus causados durante o tempo da Segunda Guerra Mundial. No período pós-guerra, o mundo vivia sob tensão de que novos combates aglomerassem a Europa toda novamente e causasse milhares de mortes mais uma vez. É mais ou menos o que ocorre atualmente, quando todos temem ataques terroristas e dormir em paz é somente considerado longínquo sonho. A fita tem como título “melhor comédia italiana do século 20”. Monicelli atingiu na mosca e as risadas foram soltas.

Falando nisso, analisar heróis ao contrário já vem de longe. A novela Beto Rockfeller, exibida na extinta TV Tupi em 1968, inaugurou esse feitio no Brasil. Com direção de Lima Duarte, capítulos com a presença do ator Luís Gustavo (como Beto) fizeram a transformação no sistema noveleiro do Brasil. O não-dar-certo agora era praxe. Palavras chulas contagiaram telespectadores. Motocicletas, meninas bonitinhas e assuntos “tabus” entravam nos lares verde-amarelos. No elenco ainda estava Débora Duarte, filha de Lima. Rockfeller poderia ser meio-irmão de Brancaleone, porque não? Esses parentescos estranhos são a magia da arte. Alinhar esses seres de mentira em igual patamar é exibir a nuance delirante desse universo colorido e juntar cinema, televisão e teatro. Outro que virou “cult” e mexeu nos alicerces das rotinas foi o ator, escritor, roteirista e produtor Roberto Gómez Bolaños. Em 1969, este mexicano criou o super-herói Chapolin Colorado para passar na TV apenas uma única vez.

Aquele personagem com antenas bizarras, dotado de pavores de suas próprias ações, mas que preferia conquistar belas garotas a brigar com vilões perigosos. Aliás, só defendia se a vítima fosse de verdade a mocinha ingênua. Desmistificou superpotentes, como Super-homem, Homem-Aranha e Batman, por exemplo. Cada um de nós tem sua predileção, mas torcer pelo mais fraco é considerado lugar-comum. Retomando o esquema de parentescos mágicos, posso dizer que Chapolin Colorado é o sub-consciente de Brancaleone da Nórcia. Nesta memória absurda, o combatente e futuro senhor de Aurocastro se apossa dos comandos de Chapolin e os serve de bandeja à fila que se forma atrás dele. A procissão que surge na metade do filme de Mario gritando “Vá de retro Satã!”, cujo líder aposta as fichas em milagres do Senhor, como na cena da ponte, é espelho da sociedade de certezas duvidosas. Corre-se o risco desta ponte romper e, com ela, desmoronar crenças antes inimagináveis, mas certas.

“O Incrível Exército de Brancaleone” é o oásis de entretenimento. Com duração de duas horas, a película reinventou travessuras, prolongou risos e revelou Pisacane. Gassman contava 44 anos em 1966 e esbanjava fôlego de criança. É pena que tanto Vittorio (morto em 2000) quando o mago de Carlo (falecido em 1974) não tenham tido tempo de serem galardoados como mereciam. Parece que, com exceção dos astros norte-americanos e os ídolos comuns europeus, os outros que têm sucesso de um trabalho só, no caso de Carlo, ficam aquém dos prêmios. Brancaleone da Nórcia vai vingá-los. Já!

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 29/05/2009
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