Senhores dos palanques (publicado originalmente em 18/8/2004)

A grande sacada dos documentaristas sempre foi a retomada de temas algumas vezes perdidos nas poeirentas prateleiras de bibliotecas ou esquecidos pelo povo. A política vira e mexe volta à tona em películas de qualidade discutível, mas prega com a força do mais pesado porrete que apagar com borracha certos acontecimentos históricos é contribuir com os camafonjes públicos, especialmente no Brasil. Pegarei como exemplo três ícones máximos do cenário público brasileiro: Luís Carlos Prestes (1898-1990), Jânio Quadros (1917-1992) e João Goulart (1918-1976). O primeiro retorna às notícias quentes com o lançamento, nesta sexta-feira, do filme “Olga”, dirigido por Jaime Monjardin, também responsável por novelas da Rede Globo de sucesso como “O Clone”. Caco Ciocler vive o “Cavaleiro da Esperança”, ao lado de Camila Morgado, intérprete da judia Benário. No elenco ainda estão Luís Melo, Floriano Peixoto e Osmar Prado. Mas não é desta filmagem meu ponto referencial e sim outra.

Em 1997, véspera do centenário de Prestes, o cineasta Toni Venturi reuniu muitos depoimentos de parentes e amigos, além de entrevistas do próprio, e editou “O Velho – A História de Luís Carlos Prestes”. Neste filme-documentário, a caminhada trilhada pelo comunista mais controverso do país é exibida como trajetória vitoriosa da pessoa que lutou demasiadamente por ideais e ajudou a erguer a nova ordem tupiniquim. Tudo começa na década de 1920, quando o recém-adulto Luís Carlos agrega diversos seguidores e parte na passeata Brasil afora. Os milhares de quilômetros rodados somava, a cada dia, mais companheiros unidos por igual pensamento: o compartilhamento de tudo. Mas nem de rosas viveu este combatente vermelho. Nos anos 1930, no governo de Getúlio Vargas (1930-1945), a simpatia ao modelo nazi-fascista do presidente verde-amarelo derrubou com o dedo o grupo de Prestes. Pior: entregou a esposa, a judia Olga Benário, aos alemães. A sorte não foi com ela e morreu.

“O Velho” mostra essa aproximação de Carlos com a moça de olhos azuis finamente. Fernando Morais, autor da biografia sobre a parceira do integrante do Partido Comunista, narrou encontro dos dois de maneira solene. Aos 37 carnavais, “Cavaleiro” ainda não tinha uma namorada sequer. Seu encanto por Olga veio instantaneamente e foi retribuído. Depois da morte dela, cujo culpado maior se concentrou em Vargas, ao invés de Prestes jogar para cima todo o ódio ao presidente, o comunista surpreendeu a todos ao “perdoar” o “Pai dos pobres” durante uma conversa. Os pontos altos do filme estão nos momentos de fala de Prestes. A maioria das entrevistas concedidas por ele ocorreu nos anos 1980. Ver aquele rosto cansado, coberto de rugas, munido do olhar daquela lembrança do jovem que lutou contra os bravos contornos do poder, é dividir o século 20 em antes de depois de Luís Carlos. A morte dele, em março de 1990, calou o homem que discursou até seus últimos segundos. Foi o novo.

Do outro lado estava Jânio Quadros. Polêmico, avassalador, adorado, detestado, de direita, de esquerda etc. Denominar o mato-grossense que se projetou em São Paulo não é fácil. De prefeito da capital paulista, na década de 1950, à presidência da república, nos sete meses de 1961 (31 de janeiro a 25 de agosto), suas palavras foram transmitidas em “Jânio a 24 Quadros” (1981). Dirigido por Luís Carlos Pereira, o documentário tem momentos bizarros e outros divertidos. As esquisitices aparecem na imagem de um homem barbudo tomando banho (isso mesmo) e refletindo, no chuveiro, sobre os momentos políticos brasileiros. Entre uma frase e outra, este comentarista cospe no chão. E não é só uma ou duas vezes. É confuso tentar entender porque esta figura maluca entrou na película. Entre os instantes hilariantes, claro, estão as falas de Jânio sobre quaisquer assuntos. Em 1981, o ex-prefeito e ex-presidente voltava à cena política e logo a seguir, em 82, se candidataria ao governo de São Paulo.

Após a derrota no pleito para Franco Montoro, Quadros não desistiu. 48 meses depois, ganhou pela segunda vez a eleição para a prefeitura paulista e ocupou o cargo entre 1985 e 1989. Mas a fita, por questão de época, não tem isso. Há a perplexa renúncia dele à presidência, dizendo perseguido por “forças ocultas”, além da condecoração dada ao argentino Che Guevara durante o exercício do principal mandato do país entrou no filme. Há 23 anos não se sabia o motivo real de seu afastamento fictício como presidente. Somente em 2002, um de seus netos contou a verdadeira intenção de Jânio: ele renunciou exatamente a 24 de agosto, data do suicídio de Getúlio 91 meses antes, em 1954. No pensamento de Jânio, o povo em geral imploraria sua volta, já que seu governo estava desgastado e à beira da ruína. Isto não aconteceu e ele teve de se despedir da cadeira presidenciável. Sem dúvida, a fita de Pereira mira no imponderável de Quadros, repartindo-o em períodos marcantes da história.

João Goulart, gaúcho, nasceu pouco tempo depois de Jânio. Apadrinhado de Getúlio Vargas, o político sulista teve a reinvenção dada pelo documentarista Silvio Tendler (de “Glauber, Labirinto do Brasil”, 2003) em 1984 com “Jango”. Na verdade, o enredo aqui é praticamente idêntico aos do par de documentários citados na coluna de hoje. Pára sobretudo em dois tópicos: o governo dele, de 1961 a 1964 e a entrada dos militares pela porta da frente do Palácio do Planalto. O exílio de Goulart na América do Sul é comentada e sua morte, em circunstâncias até hoje não-concluídas, ocupa pedaços do filme. Há historiadores que chamam Jango de covarde por ele ter “se intimidado” e se refugiado no Rio Grande do Sul na sua volta da China para evitar bater de frente com os militares. Em 1976, o líder das reformas de base sofreu fulminante infarto e não resistiu. A coincidência da morte dele com as de Carlos Lacerda (1914-1977) e Juscelino Kubitscheck (1902-1976) gerou diversas suspeitas.

Havia notícias sobre suposto envenenamento que causou a insuficiência de Jango, e, por isso, o desaparecimento precoce dele, aos 58 anos, possuía descrenças nos órgãos de imprensa. Os três eram contrários ao regime militar (1964-1985). Tanto faz, deveras. O trio de filmes resgatou personagens mitológicos daqui e refrescaram memórias descrentes das pessoas que viveram as décadas de 1950, 1960, 1980, pois na de 1970 estavam fora do Brasil devido à ditadura que acabou há 19 anos e meio.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 29/05/2009
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