A pergunta que não quer calar (publicado originalmente em 7/8/2004)

François Voltaire, escritor francês do século 18, costumava afirmar: “Não concordo com uma palavra que dizeis, mas defenderei até a morte teu direito de dizê-las”. Este pensador europeu, morto em 1778, previu alguns aspectos relevantes mais de 200 anos após seu desaparecimento quanto aos repórteres de mentira. A sobrevivência do repórter é as perguntas malignas dele de cada dia. Corre atrás dos entrevistados como se percorresse a maratona olímpica e tivesse a obrigação de chegar em primeiro lugar. Em 1983, Marcelo Tas viu sua cabeça iluminada exatamente neste ponto de chegada da hipotética corrida. Inventou Ernesto Varela, jornalista tímido, trajado essencialmente com seu par de óculos de aro vermelho, gravata da mesma cor, paletó e calça jeans. Saiu às ruas acompanhado de seu câmera particular, o Valdeci. A bordo do microfone, respirava fundo e questionava as vítimas da maneira mais sutil possível: a direta. Não havia problemas e enrolação com ele. Era rápido e rasteiro.

Recentemente, Tas reuniu os melhores flagras de Varela e os transferiu para o DVD. No disco, estão momentos hilários da política brasileira, como, por exemplo, quando o falso jornalista, no alto da abertura, em 1985, pára o então candidato derrotado à presidência da república Paulo Salim Maluf e pergunta: “O senhor acha que sua aparência física não o ajudou a ganhar essas eleições?”. Claro, não obteve resposta. Entre 1983 e 1985, um de seus Valdecis era Fernando Meirelles, que passados duas décadas dirigiu “Cidade de Deus” (2002), indicado a quatro categorias no Oscar. As reportagens de Ernesto Varela eram veiculadas pela Abril Vídeo e exibidas no programa de Goulart de Andrade na TV Gazeta. Marcelo, no seu alea jacta est (a sorte está lançada), pôde cobrir a coroada fase áurea da história do Brasil dos anos 1980, quando borbulhavam reações políticas para qualquer respiração diferente que fosse dada. Eram os quilométricos comícios das Diretas Já e o fim da ditadura militar.

No DVD, dividido em quatro categorias (esportes, política, viagens e extras), atinamos para a atual prefeita de São Paulo, Marta Suplicy, afirmando não entender qual é o prazer da política e com o hoje senador Eduardo Suplicy todo machucado devido a um atropelamento, sentado na cadeira de rodas, mas firme e acompanhando os discursos pró-eleições através do voto popular, por exemplo. O esporte é mostrado de duas formas: os bastidores do Grande Prêmio do Brasil de Fórmula 1, no Rio de Janeiro, em 1983; e o que ocorria atrás das cortinas da seleção de futebol antes da Copa do Mundo de 1986. Entre esses trechos está a entrevista homérica e colérica de Varela com Nabi Abi Chedid, o ainda vice-presidente da CBF (Confederação Brasileira de Futebol). Nas viagens, aparecem Havana (capital de Cuba), Nova Iorque e Serra Pelada (no auge máximo da peregrinação dos brasileiros em busca do ouro escondido). Aí Valdeci já era outra pessoa, não menos hábil em pegar imagens certas.

Nos extras, encontram-se as matérias pré-Ernesto Varela, assim como a série de reportagens da MTV “Netos do Amaral” (1990) e o sempre alerta pseudojornalista na passagem dele pela rádio 89 FM. Sem desgrudar da imoralidade vermelha, Marcelo Tas nesse período moderno não havia perdido o bom-humor escrachado da década de 1980 e continuava deixando seus entrevistados aparvalhados. Ernesto Varela foi fruto de um país contaminado pela censura prévia, onde pensar era motivo para as pessoas apanharem física e moralmente. O resultado aconteceu precisamente nos instantes onde esse regime ditatorial evaporava a cada dia. Igual àquela frase de Voltaire, naquela cena de 1983 homens de imprensa podiam sim questionar porquê Maluf votara a favor das eleições indiretas sem medo de quaisquer retaliações ou intimidações. O direito de dizer “eu quero votar para presidente” era um afã maior que esforço das esquerdas para enterrar o sistema direitista que atrasou o Brasil em 250 meses.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 28/05/2009
Código do texto: T1620531
Classificação de conteúdo: seguro
Copyright © 2009. Todos os direitos reservados.
Você não pode copiar, exibir, distribuir, executar, criar obras derivadas nem fazer uso comercial desta obra sem a devida permissão do autor.