O neto de Carlitos (publicado originalmente em 28/7/2004)

Rowan Atkinson é uma pessoa privilegiada. Ou não? É, é sim. Em seis de janeiro próximo, ele fará 50 anos. É inglês, ator formado basicamente pelo teatro, com expressões corporais inteligentes e todos os demais requisitos os quais qualquer profissional dos palcos aspiraria possuir. Por este nome que escrevi, a maioria dos leitores não deve saber de quem se trata. Porém, entre 1989 e 1995, ele fez parte da vida engraçada dos telespectadores europeus. No Brasil, estreou com pílulas no “Fantástico” da Rede Globo. Atualmente, só de vez em quando é exibido na Rede Bandeirantes. Provavelmente, ficará conhecido mesmo após sua morte como Mr. Bean. Trajado com seu indefectível terno londrino e gravata discreta, este personagem, à primeira olhada comum, foi, sem discussão, a melhor invenção desde Carlitos, de Charles Chaplin dos anos iniciais do século 20. Pode parecer exagero, mas quem já o viu pelo menos uma vez e reatou as pazes com a risada voluntária, confirmará esta comparação sã.

Esta minha dúvida sobre seu conspícuo nada tem a ver com dinheiro, pois com isso Rowan não precisa martelar a cabeça com preocupação. Relaciona-se com “ficar marcado” somente Bean e nada mais. Ele, claro, já fez outros trabalhos, tanto para teatro, televisão e cinema. Mas quando surge nas telinhas, telonas ou nos tablados, o público o aponta como aquele sujeito de aparência ingênua, que vive sozinho e mora em um apartamento e se aventura nas loucas passagens cotidianas. Gravado com câmeras cinematográficas, “Mr. Bean” surgiu da idéia do próprio Atkinson com os diretores John Birkin e John Howard Davies. O trio se concentrou no simples: o ser humano tímido, que adora levar vantagem sobre tudo e todos, com muitos cenários. Detalhe: a fala não seria tão explorada –o silêncio predominaria para que o riso rolasse solto de modo categórico– deixando para quem visse tirar as conclusões que quisesse. Era a volta do cinema totalmente mudo. Chaplin ressuscitara em Atkinson.

Em plenos anos 1990, a indústria de filmagem conservadora do mundo, a inglesa, reavivava a tradição sem ruídos que contagiou diversas gerações. Naquele instante, a maioria dos jovens e pré-adolescentes que vibravam com jogos de computador e videogames, se viraram todos para notarem a presença contida de Mr. Bean em seus lares. E os episódios têm a graça espontânea de quem quer rir com pitadas de sarcasmo e humor amargo e negro em tempo real. A bordo de seu mini-carro, onde o volante se localiza do lado direito (é assim na Inglaterra), o personagem ganhou o planeta da maneira típica dos súditos da rainha Elizabeth: respeitando admiradores e fãs, mas construindo piadas em suas costas. Durante os seis anos, Atkinson, Birkin e Davies saborearam críticas notórias, convites para ir a programas de entrevistas (evidentemente Rowan tinha de entrar caracterizado) e participações em comerciais. Não era difícil: bastava o ator olhar diferente, falar (pouquíssimo) como ele que bastava.

Afortunadamente, os capítulos que desembarcavam por aqui não vinham dublados. Fazer a voz de Mr. Bean deveria ser incômodo para muitos e o sucesso seria estertorante fatalmente. Quando se decidiu acabar as filmagens, em 1995, houve chiadeira, mas eles estavam certos: terminaram no auge e a saudade apareceu. Menos de 24 meses depois, a equipe retornou aos sets para elaborar a película. “Mr. Bean – O Filme” (1997) caiu feito a pluma nos narizes. Desta vez, no mais longo dos episódios (aproximadamente 90 minutos), ele é vigia de um famoso museu inglês e, por engano, é confundido com renomado conhecedor de pinturas e esculturas. Viaja, então, até a casa do organizador da mais aguardada exposição, onde o recepcionam e hospedam. O mafuá está formado. O quadro principal é estragado e ninguém suporta Mr. Bean diante das vistas. É hilário. Vale a pena assistir apenas devido à interpretação sublime de Atkinson, que se sobressai em relação aos outros sem fazer força. Óbvio.

Após a fita, pipocaram sósias do quasímodo, inclusive no Brasil. Ter rosto de bobo e dar passos à lá Mazzaropi é fácil; não tão lhano assim é carregar a bagagem de escrever, contribuir no roteiro e ajudar na preparação de tudo, tal qual um grupo de teatro realiza. O quase cinqüentão Rowan fez isso para seu time. Ele se impôs com seu estudo corporal, praticamente jogado no lixo por colegas atores. O seriado modificou a estrutura das “sitcoms” dos Estados Unidos e Inglaterra. Isto se comprova na escassez de enredo cujo protagonista se segura numa única pessoa. Não existe hoje. Há “Smallville”, que nada possui de comédia, mas sim da trajetória do Super-Homem na adolescência. E ponto final. O ator ficou tão confinado de Mr. Bean, que fitas nas quais ele encarnou novos seres (“Simplesmente Amor”, 2003; “Johnny English”, do mesmo ano; e “Tá Todo Mundo Louco”, de 2002; por exemplo), raramente vêm à lembrança dos aturdidos pela série. O vastíssimo assombro é perene neste sentido.

A epopéia dos acontecimentos do senhor Bean varia quanto a sua quantidade de minutos. Tem uns com cinco, sete, dez e até 15. Quando foi exibido na Europa, destinava-se meia hora para a série, e passava-se entre três e quatro episódios, divididos por intervalos na programação. Ele já esteve em igreja, em parques de diversão, montou piqueniques, passou pela praia, loja de brinquedo, tirou férias num hotel de luxo, dançou em boates com a namorada (ela aparece em poucos capítulos), testou seus conhecimentos em concurso público, foi ao cinema, comprou uma televisão problemática, se dirigiu ao dentista e ao médico, sentou ao lado de um garoto enjoado num avião, encrencou-se com um peru de Natal, jantou em fino restaurante, enfim, se perfez de todas as formas possíveis. Ao comportar-se como qualquer mortal, com suas desavenças e resmungos às vezes exagerados, neste território onde de perto a loucura se mostra, ainda sendo desprovido de voz, trouxe as travessuras de seu avô fictício de volta, o animado Carlitos, com bengala, chapéu, gravata borboleta e bigodinho. Alegria de sonhos.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 27/05/2009
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