Quem serve e os sérvios (publicado originalmente em 24/7/2004)
Por certo, fazer um paralelo no qual estejam lado a lado “E La Nave Va” (1983), de Federico Fellini, e “Assassinato em Gosford Park” (2001), de Robert Altman, é ultramente delicado. As duas fitas abordam temas onde entram as classes sociais e os preconceitos nela moldados. Ambas prendem no âmago algo além do simplório, do imaginável. O filme do italiano, por exemplo, é donairoso, tem especificações práticas sobre o mundo dos necessitados e imprime aceleração lenta à narrativa, onde quem conta a história aparece na película na forma do jornalista Orlando. O enredo de Fellini se põe na década de 1910, mais fincado em 1914, nas vésperas da Primeira Guerra Mundial (1914-1918). O navio Glória-N é o cenário único da história. Nele, amigos, admiradores e colegas de Edmea Tetua, cantora lírica e diva européia, vão homenageá-la, jogando nas águas de Erimo, a ilha natal dela, as cinzas da recitante. Na embarcação, aglomeram-se todos os ricos, cada um deles com seu princípio.
Um não suporta olhar na cara do outro e discussões ou comentários escusos e feitos à base dos cochichos são corriqueiros. Os minutos iniciais, para o espectador, demoram a passar. Entorpecente, esse tempo é empurrado por tartarugas a não ser na cena do resgate do rinoceronte de estimação. Aí a situação muda para melhor e a comédia, na acepção da palavra, rola solta. O filme sofre novo abalo na chegada dos refugiados sérvios. Eles vieram nadando, fugindo dos inimigos que já bombardeavam seus territórios. A Primeira Guerra começava. Os marinheiros do Glória-N os salvam puxando-os da morte para a vida, mas os jogam na parte pobre do veículo. Enquanto isso, Aureliano Fuciletto, bem-humorado tenor que está a bordo, berra em italiano canções eruditas aos combalidos e maltrapilhos sérvios. Claro, ele está acima deles, no andar de cima. Os números musicais são um dos pontos onde o filme cresce. Os diletantes tripulantes fazem soar aos ouvidos trechos de músicas claras, ilegítimas.
O cortejo fúnebre prossegue. Orlando continua seu relato para sua câmera e registra tudo. Vai entrevistar os sérvios. Ildebranda Cuffari, a mais conhecida rival da diva morta, transborda de ciúmes quando os fãs da falecida enumeram as performances e frases inesquecíveis de Edmea. O desespero é silente. As contradições entre os pobres sérvios e a burguesia italiana e francesa (a fita foi rodada nos dois países) é demonstrada em um dos jantares promovidos dentro do Glória-N. No momento em que os ricos desfrutam do banquete especial, os refugiados os observam pelos vidros das janelas, com a fome assoprando na nuca. A solução surge rapidamente: fecham-se as cortinas do grande mezanino e tudo está resolvido. As rivalidades estão a ponto de explodir e o barulho tende a ser maior que o das bombas jogadas no conflito bélico. A magia de Fellini nesta película é o total desprendimento dele ao montar “E La Nave Va”. Nos projetos derradeiros, estava mais preocupado no seu amor pelo cinema.
Esse caso de paixão está também em “Assassinato em Gosford Park”. O próprio Robert Altman escreveu o roteiro da fita. Em um fim de semana do século retrasado, nobre família inglesa recebe em seu palácio amigos para jogar conversa fora, comer boas refeições e caçar. O que a população da casa não esperava era o acontecimento trágico de um assassinato, onde morre o patriarca da família. Isto, porém, não é o mote principal do filme, mas sim os confrontos entre patrões e empregados no interior da mansão. Quem serve reside em baixo do terreno, quem os paga mora no setor superior. A cozinha é retratada como a divisória maior entre essas duas classes. Maggie Smith faz uma das convidadas, e para a personagem, tudo é desagradável, por isso reclama à toa e a todos à sua volta. O humor negro radica aí, pois a rabugice dela é impagável. Tem algo de comparável com a dupla Walter Matthau e Jack Lemmon, em seus intermináveis filmes nos quais eram os velhos que vivem sempre às turras.
Robert fez “Assassinato em Gosford Park” aos 75 anos. Havia juntado nesse tempo indicações ao Oscar em 1993, 1992, 1975 e 1970. Não ganhou nenhuma. Queria dar um presente ao público em geral e elaborou esta história. O conteúdo foi bastante criticado por aqueles que apreciam seqüências mais dinâmicas por ser demasiadamente parado e desvanecido. Rubens Ewald Filho chegou a afirmar que nos sets de filmagem “os atores estavam lá para fazer nada”. Estúpida ignomínia e bobagem. O fato escancarado nas falas dos intérpretes era, tal qual em “E La Nave Va”, o enorme preconceito que enlaçava os opulentos aos macilentos, e vice-versa. O comentário de Rubens não faz sentido ainda mais porque a obra apareceu entre os cinco melhores trabalhos de 2001, no entender da Academia cinematográfica dos Estados Unidos. Isto nem a fábrica de sonhos de 1983 de Federico conseguiu. A análise entre a dupla de cineastas fecha-se na questão do maturamento e amadurecimento dos dois.
Esse casal de extravagâncias tem muitas vírgulas, isto é, segue em ritmo pausado. Para quem os assistir, a recomendação é aguardar sentado que a recompensa vem depressa. Ambos os diretores não desperdiçaram brio e astúcia ao montarem “E La Nave Va” e “Assassinato em Gosford Park”. Eles geram concussão charmosa e lúdica para aqueles pacientes capazes de esperar. O triunfo é, sem nada mais, indubitável e incontestável. O entusiasmo é caiado em porções proporcionais. Se recuarmos até a década de 1980, veremos que a consagração tanto de Fellini como de Altman não foi às custas de guilhetas. O galarim desses dois profissionais com ‘p’ maiúsculo permanecerá indiscutível para todo sempre (apesar de Robert estar bem vivo, de olhos abertos, esbarrando nos 80 anos, que fará em 2005 – Federico morreu em 1993). Enriquece-se com eles, detentores de decorações manobradas ao léu. A escapatória não é moleza. Quem gosta de cinema tem de passar, de uma forma ou de outra, pelos magos dos detalhes em câmera lenta Federico Fellini (ajoelha-se para bem do caso) e Robert Altman.