Memória resplandecente (publicado originalmente em 17/7/2004)

Nem parece, mas como o tempo passa. Basta um sereno piscar de olhos que passamos por eras sem perceber. Hoje, para os mais desavisados, comemora-se uma data futebolística. Na mosca, dia 17 de julho, completam-se dez anos do tetracampeonato brasileiro na Copa sediada nos Estados Unidos. O que este fato tem a ver com cinema? Tudo, sendo sincero. 35 meses após aquele potente chute do meio-campista italiano Roberto Baggio, o diretor Murilo Salles resolveu juntar imagens para compor o belo documentário “Todos os Corações do Mundo” (1997, cujo título em inglês ficou como “Dois Bilhões de Corações”). Nele, as arrancadas certeiras de Romário ficam mais expressivas; os passes do gaúcho Dunga se prolongam na mesma proporção das frases secas de Machado de Assis; o olhar solícito de Bebeto, a espera da bola na cara do gol, se estende no brilho. A fita não se rende somente ao time nosso. Lances de jogos de outros países são focalizados quase instantaneamente como fotos.

Vale a pena fazer um esforço mnemônico e resgatar nas memórias o que representou ao Brasil aquele campeonato mundial. Em 1994, a seleção comandada por Carlos Alberto Parreira estava nos piores dias. Não tinha a confiança do povo, o qual chamava insistentemente o técnico de retranqueiro e amador, e, para falar a verdade de fato, empolgava aqueles que apreciavam o masoquismo, entre os quais eu me incluo. Aos 11 anos, em 1993, acompanhei as Eliminatórias. Nelas vi o frango homérico de Taffarel na primeira derrota da equipe canarinho na história daquela competição – dois a zero para a Bolívia – notei quando, puxados pelo zagueiro Ricardo Rocha, os atletas entraram em campo com as mãos dadas, em Recife, no jogo de volta contra os bolivianos – seis a zero para nós – e pulei feito macaco com a dupla de gols de Romário contra o Uruguai, na derradeira partida do torneio, quando finalmente o Brasil se classificou para Copa. Enfim, o país estava novamente em êxtase total e unido.

Ao iniciarem as pelejas no solo norte-americano, os jogadores tupiniquins esbanjaram categoria nos dois primeiros confrontos. Ganharam da Rússia (dois a zero) e Camarões (três a nada). Porém, a classe deixou a desejar contra os suecos e o time ficou no um a um. Pronto, as desconfianças davam o ar da graça de novo. Nas oitavas-de-final, suamos para garantir, com Bebeto, o placar mínimo e de coadjuvantes passamos a candidatos firmes à taça. Vieram as quartas-de-final. Adversário: Holanda, responsável, havia duas décadas exatas (no mundial de 1974, na Argentina), pela eliminação do time verde e amarelo. Zagallo, técnico naquela ocasião, estava novamente frente a frente com a “Laranja Mecânica”, desta vez como auxiliar-técnico de Parreira. O Brasil entrou de camisas azuis, igual a 74. Espectros malignos rondariam o escrete canarinho? Não em 94. A patada atômica trocou de nome, passou de Rivelino para Branco, e o lateral-esquerdo encheu a boca para espremer a fruta apodrecida.

“Todos os Corações do Mundo” é premiado, entre outras cenas, com câmeras que captaram o gol do número seis de diferentes ângulos. A emoção do então atleta do Fluminense, ameaçado de ser cortado devido à indisciplina, é o píncaro. A leve entortada de Romário, com a finalidade de desviar da bola, é apreensiva. E a bola entrou... A Copa de 1994 ficará marcada. Quando veremos de novo, por exemplo, um jogador de 42 anos balançar a rede como aconteceu com o camaronês Roger Milla? Ou então um único futebolista marcar cinco vezes num só jogo, como fez o russo Salenko? E essas duas situações ocorrerem nos mesmos 90 minutos, já que esse par de magias sucedeu na vitória da ex-União Soviética sobre Camarões por seis a um? São esses decursos finos que prendem. E a terra do Tio Sam foi brindada com eles. A película de Salles flagrou maravilhosos tentos e os mostrou de forma inigualável. Também nela vem o nervosismo dos torcedores, principalmente em 17 de julho.

Brasil e Itália fizeram a final e repetiram 1970, quando os 11 sul-americanos golearam os 11 da Europa por quatro a um no México. Já nos vestiários, minutos antes da entrada das duas seleções, a câmera vê o inesperado: o olhar tencionante de Baggio a Romário. O primeiro seria protagonista no lance decisivo do campeonato. O segundo terminou como vice-artilheiro, com cinco gols, eleito pela Fifa o melhor jogador de futebol do mundo e coroado do Oiapoque ao Chuí no regresso. Apesar das faltas constantes e do placar fechado, o filme, por coincidência, claro, esperava decisão nos pênaltis, pois assim a emoção floresceria em mais batidas de corações. E as penalidades vieram, para delírio do documentarista e desespero de italianos e brasileiros. Massaro, Márcio Santos e Roberto Baggio, o trio que desperdiçou as respectivas cobranças, puderam ser espectadores, mais tarde, da displicência deles próprios. Sobretudo Roberto. As feições malogradas dos nascidos na terra da bota demonstram.

A Rede Globo exibiu uma série de quatro reportagens onde revista os bastidores do Tetra. As imagens, baseadas nas filmagens de Gilmar Rinaldi (terceiro goleiro), retratam todo o “camarim” das pessoas que fizeram o país inteiro vibrar novamente e ter mais esperança. É evidente que não desejo aqui reforçar o patriotismo de quatro em quatro anos, mas os atores deste enredo enfeitado por ligeiro granjear, transformaram a cara de 160 milhões de seres alucinados por futebol. Para mim, a Copa de 1994 se compara ao nevruz. Tinha só oito de idade na anterior, na Itália em 90. Acompanhei nada da campanha arrogante da equipe de Sebastião Lazaroni (para meu alívio). É inequívoco que quem ler estas linhas e tiver presenciado os outros triunfos do Brasil (1958, 1962 e 1970 até então) discordará. Eu, que não vi, reservo e enlaço como um presente o 1994. Nem em 2002, com o troféu dado para a família Scolari, fiquei tão exultante. Há dez anos sim. E saí comemorando com a camisa cor de ouro.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 25/05/2009
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