Johann Wolfgang von Goethe, o verdadeiro Fausto (publicado originalmente em 22/5/2004)
A história de um homem é totalmente transformada quando ele tem sede de saber. Este homem é Fausto. Cabelos encanecidos, rugas no rosto e uma vida, na sua visão, jogada fora. Após mergulhar de cabeça nos livros de jurisprudência, artes, medicina, filosofia e teologia, Fausto concluiu nada entender sobre absolutamente nada. Desesperado e um pouco arrependido de não conseguir adquirir todo o conhecimento que julgava necessário, ele apela ao demônio, que sem pestanejar o atende. Mas sob uma condição: a venda da alma. Tentador, não? Fausto aceita na hora. Entra, então, em um mundo de orgias, mulheres e prazeres infinitos capazes de matar qualquer um de contentamento.
Esse sentimento de querer a qualquer preço superar limites é explorado com vigor por Johann Wolfgang von Goethe, filósofo e escritor dos séculos 18 e 19. A tragédia “Fausto” ocupou 60 dos 83 anos de vida de Goethe, que a publicou em três partes, a última lançada postumamente. Entender a nobre biografia dele (alemão, nascido em Frankfurt am Main no dia 28 de agosto de 1749 e morto a 22 de março de 1832) é um exercício extremamente hábil e desafiador. “Fausto” começa em 1772. Os primeiros lances já fazem prognóstico da seqüência.
O livro “Fausto Zero”, publicado quando Goethe tinha 23 anos, deu o tiro inicial da mais rebuscada e analisada peça de teatro de todos os tempos. Era um esboço bem feito do que seria a obra concluída. Escrita completamente em forma de poesia, narra a frustração de um vetusto cansado de ser ele próprio. Após dar a alma ao diabo, ele conhece Margarida, moça recatada, que Fausto “ajuda” a enlouquecer quando se apaixona por ela. “O livro é um daqueles clássicos que, no caso de uma guerra dos mundos, seria preciso salvar para preservar o melhor da arte humana”, disse o jornalista Federico Menozzi. Está certo. O padrão de qualidade fica eterno.
“Fausto: Uma Tragédia – Primeira Parte” vai do período entre 1773 e 1808. Foi reeditada recentemente no Brasil, traduzida por Jenny Klabin Segall. São frases dotadas de sentimentos complexos e pensamentos claros. Goethe, pouco antes de morrer, declarou que a obra mais conhecida dele era “brincadeira muito séria”. Só permitiu a impressão da última parte após sua morte. A loucura impregnada em “Fausto” está em todos os lugares. Dos pontos onde o protagonista passa com a amada Margarida, aos diálogos provocativos de Mefistófeles, às reviravoltas impressionantes ao passar das linhas. Encenada na Alemanha, integralmente, ou seja, com todos os versos, a peça ultrapassou 20 horas de duração. Foi aplaudida de pé.
Goethe só retomou “Fausto” e outros projetos engavetados, devido aos tantos pedidos de Schiller, também filósofo e escritor, dez anos mais novo e seu amigo desde 1794 (lembrem-se: a primeira parte do livro só sai em 1808, 14 anos depois). Assisti, pela televisão, à leitura de um ínfimo recorte da obra, realizado pela TV Cultura, sob responsabilidade colérica do diretor e apresentador Antônio Abujamra. Ele próprio interpretava Mefistófeles. Raul Cortez, no papel-título e Esther Góes como Margarida completavam o elenco. O entusiasmo englobou as cenas.
A seguir, como um presente a vocês, transcrevo o trecho final de “Fausto”, adaptado por Abujamra. Vibrem com a leitura:
“Eu sou Mefistófeles. É, o diabo. E todos vocês são Faustos, os que vendem a alma ao diabo. Tudo é vaidade neste mundo vão. Tudo é tristeza, é pó, é nada. Quem acredita em sonhos é porque já tem a alma morta. O mal da vida cabe entre nossos braços e abraços. Mas eu não sou o que vocês realmente pensam. Eu não sou exatamente o que as igrejas pensam. As igrejas abominam-me. Deus me criou para que eu o imitasse de noite. Ele é o sol. Eu sou a lua. A minha luz paira sobre tudo que é fútil: margens de rios, pântanos, sombras”.
Quantas vezes vocês viram passar uma figura velada, rápida, figura que lhe daria toda felicidade? Figura que te beijaria indefinidamente? Era eu. Sou eu! Eu sou aquele que sempre procuraste e nunca poderás achar. Os problemas que atormentam os deuses...
Quantas vezes Deus me disseram, citando João Cabral de Melo Neto: “Ai de mim, ai de mim. Quem eu sou?” Quantas vezes Deus me disse: “Meu irmão, eu não sei quem eu sou”. Senhores, venham até mim! Eu os deixarei em rodopios fascinantes, vivos nos castelos e nas trevas, e nas trevas vocês verão todo o esplendor. De que adianta vocês viverem em casa como vocês vivem? De que adianta pagar as contas no fim do mês religiosamente? Todos vocês são Faustos. Venham, eu os arrastarei por uma vida bem selvagem através de uma rasa e vã mediocridade, que é o que vocês merecem. As suas bem humanas insaciabilidades terão lábios, manjares, bebidas. É difícil encontrar quem não queira vender a alma ao diabo”.
Para encerrar, as últimas palavras de Goethe ao morrer foram: “Luz, luz, mais luz!” (o escritor tinha problemas com o assunto “luz”; para ele, luz branca é algo mais puro que a mera soma de todas as demais cores, e a escuridão é o oponente da luz, não apenas sua ausência).
Mais luz! Fausto, o Goethe (ou seria ou contrário?), merece (merecem).