1984, um ano falso (publicado originalmente em 27/3/2004)

Somos todos reféns. Ponto. Não importa de quem, ou de quê, mas nós somos. Você, por exemplo, já teve a impressão de estar sendo seguido alguma vez? De repente, olhar para trás e não ver ninguém é uma sensação séria e tensa. George Orwell pensou nisso quando escreveu o célebre livro “1984”. Na obra, o autor retrata como se comportaria uma população totalmente vigiada por câmeras espalhadas por todos os lados. As pessoas teriam de respeitar solenemente o líder da turma, chamado de “Grande Irmão”, ou “Big Brother”. Ninguém estaria livre. Orwell, então, projetou para o ano de 1984 este imenso olho. Redigido muitas décadas antes, o escritor anteviu o futuro com certa rigidez. Não poderíamos fazer qualquer movimento estranho, senão as mãos dos algozes seguidores da voz enigmática (“Grande Irmão”, que nunca aparece) nos torturariam sem nenhum lapso de piedade e compaixão. A dor vence.

Em 1956, o diretor Michael Anderson levou as páginas de George para o cinema. Feito com baixo orçamento, a história contou com cenários precários, mas com atores muito bem inspirados. O trio principal, formado por Edmond O’Brien, Jan Sterling e Michael Redgrave, levou sentimentos tonitruantes às telonas. Basicamente, o enredo é o seguinte: operários de uma fábrica são espiados pelo, digamos assim, dono. Este é refletido em uma televisão, onde são ouvidos vários avisos a todo instante, como o número de vendas que aumentou ou diminuiu etc. Às vezes, uma funcionária se dirigia a esses subalternos pela TV para avisar-lhes sobre alguns dados. Havia televisores espalhados por todas as partes. No meio desse turbilhão, um casal se apaixona e quer ter uma vida particular. É impedido pelos observadores, que estão na espreita, imaginem vocês, de helicóptero. Ambos são machucados a exaustão.

Vale aqui correr algumas linhas sobre Michael Redgrave, um dos protagonistas. Nascido na Inglaterra em 1908, foi jornalista, dramaturgo e diretor, além de atuar. Participou de alguns filmes destacáveis, como “A Dama Oculta” (1938) de Hitchcock. “A Versão Amarronzada”, de 1951, deu a ele o prêmio de melhor ator no Festival de Cinema de Cannes, na França. Durante os anos 1950 e na seqüência teve uma sensível queda de qualidade nos trabalhos. Seus últimos anos de vida foram marcados por fracassos. Em 1959 recebeu o título de Cavaleiro Inglês. Aos 77 anos não resistiu ao mal de Parkinson e morreu. Teve uma filha famosa, a atriz Vanessa Redgrave, que levou um Oscar de atriz coadjuvante em 1977 por “Júlia”. Agora, de volta a 1984, pensem como seria o mundo se fôssemos realmente perscrutados. Claro, não temos câmeras em nossas casas (algumas tem, mas para prevenir ladrões) ou nos banheiros...

Ou estamos errados? Vivemos nesse “Show de Truman” (1998) eterno e sem saber. Esse voyeurismo cansativo é instigante a ameaçador. Queremos tomar partido da vida de todos, dar palpites desnecessários aos teimosos. Qualquer dia, seremos alvos de programas de realidade bobos como esse aterrador “Big Brother” da Rede Globo ou “Casa dos Artistas” do SBT. Não nos serve para nada. O que há de interessante em apreciar desconhecidos discutindo sobre quem será eliminado? Não é possível que os habitantes do planeta Terra caíram tanto de produção. Até nas ditaduras Orwell estava certo. No filme, esse aspecto fica bem esclarecido. Trata-se de manipulação chula e grossa. Uma das cenas clássicas é a de quantos dedos existem na mão. O “instrutor-torturador” está com aquele operário pego com a amante. Amarrado em uma cama, tem um aparelho que provoca dores lancinantes na cabeça se for acionado.

O discípulo pergunta ao trabalhador: “Quantos dedos tem nessa mão?” e faz o número quatro. A vítima, inocentemente, responde: “Quatro”. Enganou-se. “Se Big Brother quiser que seja cinco, você terá de ver cinco”, pressiona o vilão. A abjeção chega a ser constrangedora. Psicologicamente, o homem assalariado está estragado. Tem de jurar obediência sagrada ao “Grande Irmão”. Fica abobado. Um janistroques com duas pernas. É precisamente assim que ficam os telespectadores assíduos desse tipo de atração. Não separam mais ficção e realidade combinada. Ao rodar “2001 – Uma Odisséia no Espaço” (1968, baseado na novela de Arthur Klark, ganhador do Oscar de efeitos especiais), o diretor Stanley Kubrick talvez tenha pensado como George Orwell. Nós também tivemos a mesma impressão. “Como será o ano 2000, o século 21 etc?” O sonho vem normalmente rodeado de transcendentalismo fraco.

Estamos em um cativeiro enorme: qualquer lugar. O preço do resgate é altíssimo: a vida. Somos presos insensíveis. Fazemos previsões mentirosas sobre fatos inventados. Temos habilidades de cartomante experiente. Nos transformamos em bonecos tácitos. E porque tudo isso, se podemos viver secamente em importunar ninguém? Uma chateação sem limite. Esse “1984” é contumaz. O limpo deve permanecer para onde fomos, sem distinção. Chega de bisbilhotar os outros!

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Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 11/05/2009
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