O cigarro, os suspensórios e os dominós (publicado originalmente em 24/3/2004)

Com vinte e poucos anos, ele parecia ter quase 45. Aos 40, aparentava 60. Era um velho de idade rasa. O rosto era marcado pelas desgraças da vida, pois sofreu um bocado. Mais de 50% de sua existência passou doente. Teve tuberculose, problemas respiratórios e cardíacos. Porém, não abandonava os cigarros. Essa, aliás, era uma de suas marcas registradas. Nelson Rodrigues não viveu: ele agüentou o quanto pôde. Foram 820 meses de agonia até a aguardada morte, em 21 de dezembro de 1980, “aos 200 anos”. O autor de teatro e crônicas fez sucesso sem saber. Algumas de suas mais famosas peças foi adaptada com rigor e esmero para o cinema. A última foi “Boca de Ouro” (1990, já póstuma), com Tarcísio Meira.

As frases polêmicas ajudaram a aumentar a desconhecida popularidade. Em uma de suas crônicas intitulada “A vida como ela é...”, soltou “Toda mulher gosta de apanhar”. Não demorou para os leitores provocarem sua esposa Elza. “Já apanhou hoje?”, indagavam-na ao passar pela rua. Depois, Nelson aperfeiçoou-a: “Nem todas. Só as normais”. Mais controvérsia. Ele adorava criar confusão. Mas não era bom em conversa. Sua voz, como ele próprio afirmou, era semelhante a uma lentidão bovina, bem arrastada. Tinha problemas de articulação. Falava pouco e demoradamente. Nasceu em Recife, Pernambuco, em 23 de agosto de 1912. Lá viveu até a pré-adolescência, quando mudou definitivamente para o Rio de Janeiro, seu amor eterno.

O cotidiano carioca era tema da maioria das suas histórias. Apavorava os conservadores com cenas de traições, incestos, brigas recheadas de palavrões e insultos. Pior: os personagens principais recaíam exatamente nesta elite repleta de recatos e tradições mentirosas. Os teatros estavam sempre lotados. Começou a trabalhar com apenas 13 anos. Escrevia reportagens policiais em um pequeno jornal pernambucano. Iniciou aí a montagem de tragédias familiares. Invenções que exageravam na criatividade. Recém saído do aniversário de 20 anos, descobriu ter tuberculose. Passou, então, para Campos de Jordão, com a intenção de se curar com o tempo frio e aconchegante. Saiu e retornou à cidade paulista várias vezes, pois a doença insistia.

Nelson Rodrigues injetou nas pessoas o antídoto de crítica ao certo. Bastava a situação ficar amena para ele cutucar. Assim como Clarice Lispector, não era chegado a entrevistas. A opção dele era ficar em casa. Mas em 1978 foi aos estúdios da TV Cultura participar do “Vox Populi”, programa renomado que já havia conversado com ícones brasileiros, como Garrincha, Gilberto Freyre, Pedro Nava, Magalhães Pinto, Ulysses Guimarães entre outros. As perguntas partiam do povo, outra paixão do escritor. Em uma delas, uma moça afirma: “O senhor vive dizendo que as mulheres gostam de apanhar. Bom, eu já apanhei e não gostei...” Nelson não a deixa terminar. “Se você não gostou é neurótica!”, bradou. Depois, ouviu a questão da garota.

Na resposta, foi enfático. “Por exemplo: se uma mulher diz para um homem ‘você não é homem!’ e ele lhe vira uma bofetada dessas que os palhaços trocam no picadeiro, ela ficará satisfeita. O que a mulher não gosta é que o homem não reaja”, disse, espantando a rouquidão e a tosse que dominava sua saúde debilitada. No entanto, o ditado “em casa de ferreiro o espeto é de pau” podia ser aplicado nele. Tudo que comentava, fazia o contrário. Era extremamente cuidadoso e carinhoso com as esposas. Sim, porque Nelson, autor da frase “Todo homem só deveria beijar uma mulher em toda a vida”, se derreteu por várias garotas, entre elas a mãe da atriz Nicete Bruno, Eleonor. Morreu, porém, jurando amores infinitos a Elza, primeira a casar.

Devido a úlcera, não usava cintos, pois incomodavam o estômago. Preferia suspensórios. Nas redações dos jornais onde trabalhou, era muito respeitado. Os colegas não compreendiam como ele conseguia escrever aqueles contos detalhados sendo tão desatencioso e brincalhão enquanto batia com os dois dedos indicadores a máquina de escrever. Deixava o texto de lado, ia tomar um café, acendia um cigarro e voltava à sua mesa. Com seus folhetins, alavancou a tiragem de muitos periódicos. Em um deles, o número de vendas passou de três mil para 30 mil. Ele pouco ligava. Não estava acostumado a lidar com tanto dinheiro. Os enredos eram bem parecidos, mas os leitores pareciam estar carentes de tantas situações sexuais e as liam e reliam. Transportou para palcos e telas as tristezas pelas mortes de familiares.

Começou com Roberto, irmão, que morreu assassinado por uma mulher aos 22 anos. Nelson tinha 17, ouviu o tiro e presenciou os últimos instantes do companheiro. 67 dias depois seu pai se foi, aos 44 anos, vítima de trombose cerebral. Jofre, mais um irmão, pegou tuberculose de Nelson e faleceu aos 21. Os dominós seguiam caindo. Paulo, outro irmão, morreu no desabamento de sua casa, em um dia de chuva. Mário Filho (que atualmente dá nome ao Maracanã), irmão, sofreu um ataque cardíaco aos 58 anos, minutos depois de se despedir da família em um jantar que dera na sua casa. Aos 51 anos, Nelson teve uma filha, Daniela, que nasceu cega, surda e muda. Nelsinho, filho mais velho, ficou preso muitos anos na época da ditadura e foi torturado.

Este ano, “Vestido de Noiva”, escrito em 1943, ganhará versão cinematográfica. Esta peça reinventou o teatro brasileiro. Quiçá elevará o cinema nacional a estratégias mais ousadas, como Nelson, um mero infeliz satisfeito com seu destino traidor.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 10/05/2009
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