As facadas transversais de Clarice Lispector (publicado originalmente em 20/3/2004)

No lançamento do livro “A Hora da Estrela”, em meados de 1977, Clarice Lispector sabia que estava condenada à morte. Tinha um sério problema no ovário e a doença era incurável. A vida não poderia terminar diferente para a escritora. Por tantos anos pensou e botava no papel todos seus mais odiosos e revoltantes sentimentos pela vida e a falta dela. Naquele instante há quase 27 anos, o destino se defrontava com uma fria e decepcionada pessoa que só aguardava o momento de ir para o caixão. Tudo era assim para Clarice: frio e melancólico. Ela, porém, dizia não se comportar desta maneira. “Geralmente não sou desse jeito. É que entre um livro e outro me sinto morta. E neste momento estou morta”, contou em uma rara entrevista, ao programa “Panorama” da TV Cultura, gravado em 1º de fevereiro de 1977.

Ela estava morta. Havia acabado recentemente “A Hora da Estrela” e, como uma cobra comedora de animais de grande porte, descansava em longas pausas entre as falas, as quais não eram demoradas, mas secas e cortantes ao extremo. Em um bloco do programa, por exemplo, a mulher-bruxa, como ficaria conhecida após freqüentar um congresso de bruxos em 1975, tem a faca nas mãos quando responde ao pobre jornalista a seguinte pergunta: qual o papel do escritor atualmente no Brasil? E Clarice, dando um golpe transversal no inocente homem: “O de falar o menos possível”. Ela não tinha meio termo. Tudo tinha de ser o mais simples possível. O riso era fato sem nexo naqueles derradeiros meses de vida. O olhar atravessava as vísceras. Deixava podre o telespectador, talvez por esta ucraniana pronunciar verdades sólidas.

Apesar de nascer em Tchetchelnik, uma cidadezinha medíocre, Clarice Lispector insistia em afirmar ser nordestina, pois fora criada em Recife. Depois se dirigiu ao Rio de Janeiro, com a morte dos pais. Sua literatura era baseada nas perturbações sobre o cotidiano, onde viver era um desafio a cada segundo. Nos tempos difíceis, quando seu pai ganhava a vida como mascate, almoçava laranja e pão. Na década de 1940 (a data de nascimento dela é incerta, mais provável, dizem pesquisadores, seria 10 de dezembro de 1920) casou-se com um diplomata e rodou os quatro cantos do mundo. Morou na Itália, Suíça e Estados Unidos. Com a agitação constante, as facadas não desapareciam e ela se separou. Retornou ao Rio em 1959. O livro “Perto do Coração Selvagem”, um dos sucessos, foi escrito em Nápoles.

Meu propósito em escrever sobre Clarice Lispector (eu sei, esta coluna é de cinema) é tentar compreendê-la de algum modo. Tenho 22 anos e desconheço tudo sobre tudo. Sou o reflexo dos versos da música “20 anos Blue”, de Sueli Costa e Vítor Martins: “Ontem de manhã quando acordei / Olhei a vida e me espantei / Eu tenho mais de vinte anos / E eu tenho mais de mil perguntas sem resposta”.

“A Hora da Estrela” virou filme oito anos após a morte da autora e teve direção de Suzana Amaral. Contou com a participação de José Dumont e Marcília Cartacho (como Macabéa), que levou o prêmio Urso de Prata no Festival de Cinema de Berlim de melhor atriz. Particularmente nesta obra, Lispector, ao contrário do que fez nas outras, aborda questões sociais. A protagonista é Macabéa, uma alagoana miserável tentando dar certo no Rio de Janeiro. Ingênua, é enganada por qualquer um, inclusive por Fernanda Montenegro, intérprete de uma vil cartomante. Novamente o destino aparece. Suzana apurou todos os livros de Clarice e escolheu “A Hora da Estrela” para transportar às telonas.

“Estou cansada. Cansada de mim mesmo. Agora estou morta. Estou falando de meu túmulo”, balbuciava Clarice em um sotaque misturado em nordestino, carioca e europeu na já citada entrevista. Mas o sotaque era disfarce da língua presa. Ela não a operou porque tinha medo da dor. Medo tão claro e abundante. Vejam: ela sabia da própria morte. E estava lá, sentada numa poltrona confortável, cigarro na mão direita, fumaça saída da boca, respondendo a questões sem importância. O rosto lindo de antes estava abatido, triste, lembrava quase nada aquele desenho feito a bico de pena, contornos delicados para uma alma feroz. Internada com problema intestinal, percebeu que o fim a chamava por sussurros. Vomitou sangue em oito de dezembro de 1977 e quis sair do quarto. Foi impedida pela enfermeira na porta.

Ao notar a imponência fútil da mulher de branco, bradou: “Você acabar de matar meu personagem”. Morreu na manhã seguinte, a um dia do 57º aniversário. Segundos antes, ditou para a amiga e confidente Olga Borelli: “Eu, eu, se não me falha a memória, morrerei”. Mais um corte sem escrúpulos. Como compreender Clarice? Esse desprezo absurdo vai além do céu e do inferno. Guardava culpas eternas e sem explicação. A solidão era uma delas. A angústia, outra. A verdade também. Era sensibilidade à flor da pele na aparência frágil. “Porque você escreve?”, diz o entrevistador de “Panorama”. “E eu sei?”, secou Lispector, acendendo mais um cigarro. O olhar, parado, parecia querer adormecer. As pessoas não a deixaram em paz. Os cortes transversais talvez seriam uma vingança tola e reles. Clarice, a incógnita magnífica.

Por isso, te peço: dê-me, por favor, a sua faca.

Rodrigo Romero
Enviado por Rodrigo Romero em 10/05/2009
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