A Primeira Gargalhada Cinematográfica

Nascido Friedrich Wilhelm Plumpe, em 28 de dezembro de 1888, em Bielefeld, Westfália, Murnau se formou em História da Arte em Heidelbert; chegou a ser ator e assistente de Max Reinhardt, tendo sua carreira interrompida por ter sido convocado para lutar na Primeira Guerra Mundial como piloto de combate. O cineasta alemão, infeliz e prematuramente, morreu num trágico acidente automobilístico, em 11 de março de 1931.

Murnau, juntamente com Fritz Lang – diretor de Metropolis (1927) – é considerado o maior cineasta do cinema mudo alemão. É, também, um dos maiores diretores de seu tempo e, julgando por sua direção, é provavelmente um dos mais hábeis de toda a história da sétima arte. Ele foi também importante para a transposição do cinema mudo para o falado. Alguns chegam a considerar Aurora (Sunrise, 1927) o primeiro filme falado, ao invés de O Cantor de Jazz (The Jazz Singer, 1927), de Alan Crossland, uma vez que, além dos ruídos e da trilha sincronizada, o filme possui diálogos audíveis numa cena de rua. Aurora foi seu terceiro filme em Hollywood – onde foi trabalhar em 1926 – e ganhou três Oscars.

Até onde se sabe, a palavra "expressionismo" foi empregada pela primeira vez em 1850 pelo jornal inglês Tait's Edinburgh Magazine, referenciando, num artigo anônimo, uma "escola expressionista" de pintura moderna. O termo “expressionismo” diz respeito às artes cujas formas não evocam “diretamente” a realidade observada, mas sim reações subjetivas à realidade; as convenções do realismo são subjugadas pelo interior do autor ou de um personagem, com distorções de forma e cor. As obras expressionistas, através dessas distorções, costumam conter uma visão pessimista do mundo, apresentando como temas a frustração, a loucura, a angústia, a depressão, o insólito tirado do cotidiano, tudo de forma a provocar forte impacto no fruidor. Esse movimento iniciado na Europa chegou a outros continentes e influenciou, também, a literatura, gerando narrativas subjetivas e emocionalmente intensas. No cinema, a Alemanha foi o grande palco do expressionismo, principalmente, durante a década de 1920. O início do expressionismo alemão foi marcado pelo filme O Gabinete do Dr. Caligari (Das Kabinett des Doktor Caligari, 1920), de Robert Wiene. Os filmes desse movimento apresentam, de modo geral, em clima onírico ou simbólico, as angústias e frustrações do país, vencido belicamente e em crise econômica e social. Uma outra característica importante do expressionismo cinematográfico é o singular manejo fotográfico; os filmes são quase inteiramente fotografados com forte contraste entre claro e escuro.

Embora já houvesse realizado, em 1922, Nosferatu, seu primeiro filme de maior importância, foi A Última Gargalhada – ou O Último Homem – (Der letzte Mann,1924) que firmou a reputação de Murnau como grande cineasta. A Última Gargalhada conta a estória de um emplumado porteiro de um hotel chique, cujo motivo maior de orgulho e satisfação na vida é seu garboso uniforme de trabalho. Era uma época em que se valorizava muito o status dado por um uniforme naquelas plagas germânicas. Segundo Lotte Eisner, o filme trata de “tragédias mesquinhas inspiradas pelo uso do uniforme”. Emil Jannings, neste filme, desempenha uma performance, no mínimo, marcante no papel principal. A propósito, é notável a seqüência inicial, que nos apresenta o protagonista e seu ambiente de trabalho, o hall do hotel e sua agitação, num belo e original travelling, por sinal, avançado para a época. Continuando, o porteiro é motivo de orgulho, inclusive, no humilde bairro onde mora, sendo ovacionado pelos moradores sempre que por lá passa, a caminho do trabalho. Certo dia, contudo, ele recebe a notícia de que será substituído por um funcionário mais jovem. Como recompensa, no entanto, por seus longos anos de dedicação ao hotel, ele passará a ocupar o cargo de zelador do banheiro masculino.

Esta seqüência é uma das mais marcantes e belas, em termos expressionistas, do filme, desde o momento em que a câmera adentra a sala, através da vidraça – uma constante do filme é o enquadramento através destas –, passando pela expressiva queda do botão de seu uniforme, o que reforça a tragédia e a humilhação sofridas pelo personagem, em função da perda de seu status: a queda do botão é sua própria queda. A seqüência continua, mostrando a desfiguração de Jannings, que traduz todo o sentimento de frustração do personagem, enquanto um funcionário troca sua roupa por um simples e apagado uniforme de mísero zelador de banheiro. Ele passa, então a ser ridicularizado pelos mesmos “bonecos”, sem vida, que o prestavam honras anteriormente. A descida ao banheiro, que fica em um andar inferior, simboliza, então, sua decadência. Para lembrar ao protagonista os tempos em que reinava glorioso, um rico freqüentador do hotel vai até o banheiro e, em frente ao espelho, ajeita os cabelos e o bigode do seu mesmo modo fátuo e orgulhoso.

Mais adiante assistimos à também importantíssima seqüência do casamento, na qual o personagem de Jannings é destacado pela direção de Murnau, assim como nas cenas em que caminha galante e altivo ao hotel. Nesta seqüência, o protagonista mantém as aparências durante a festa, durante a qual bebe imoderadamente. Cai, em seguida, bêbado numa cadeira e se põe a sonhar, vendo-se, em delírio, numa espécie de caricatura de sua situação anterior, quando podia orgulhar-se de seu uniforme. A tragédia do ex-porteiro nos é mostrada tal como ela é vivenciada e sentida por ele próprio; ele se vê, inclusive, fazendo malabarismos com uma enorme mala, em contraste com a realidade, em que não consegue mais levantar uma sem dificuldade. Esse contraste, aliás, é melhor representado pela justaposição de ambos os momentos, antes e depois da festa de casamento, com a discrepância entre sua euforia – e o conseqüente sonho glorioso subseqüente à bebedeira – e a ressaca acabrunhada no dia seguinte. Reforçando essa idéia de contraste, vemos a competente funcionalidade estética do uso das diversas angulações utilizadas por Murnau; por exemplo: enquanto supremo em seu uniforme, o porteiro é filmado de baixo para cima; já quando rebaixado, é visto em plongée (de cima para baixo), humilhado e deprimido no banheiro.

Durante esse sonho, vale destacar, temos talvez o momento mais expressionista de todo o filme: além de outros elementos, vemos as portas giratórias alongadas, desproporcionais, bem ao modo dessa escola artística.

O filme sofre, entretanto, uma reviravolta. Inesperadamente somos comunicados de que "o roteirista, com pena do personagem, resolve dar-lhe uma recompensa”. O infeliz porteiro rebaixado recebe, então, uma herança deixada por um milionário americano. O filme ganha um tom alegre, quando o então rico funcionário do hotel desfruta um enormemente farto jantar, como diversos tipos de caras iguarias. Por trás, porém, do aparente happy end, há um tom de deboche na longa e fausta seqüência final. De certo modo, Murnau e seu roteirista satirizam o modo de vida aristocrata germânico e a futilidade daquela sociedade. O status do uniforme agora é substituído pela nova condição de algo burguês adquirido pelo protagonista.

Um dos fatores causadores de impacto estético neste filme é a chamada kammerspiel ou “câmera desvencilhada”, como é chamada pelos alemães: uma câmera dinâmica, sempre em movimento, dando maior intensidade emotiva à já expressionista narrativa. Há uma demora em cada detalhe, ampliando os menores gestos, com grande minúcia, reforçando a interpretação expressiva e exagerada de Jannings. A kammerspiel, além de provocar maior fluidez narrativa, permite um estudo mais longo e minucioso dos personagens: uma lentidão rítmica necessária e funcional. Os movimentos da câmara, que acompanham quase toda a ação do filme, contribuem para transmitir emoções dos personagens de forma única e bastante intensa.

Num ato inovador, em A Última Gargalhada, Murnau não utiliza os tradicionais intertítulos, típicos do cinema mudo. A progressão fílmica é unicamente visual; o filme atinge a essência do cinema, mostrando ser plenamente possível narrar cinematograficamente uma estória de forma clara e expressiva, sem o arrimo de textos, seja na forma de diálogos, títulos ou narrações. Mesmo a trilha posteriormente acoplada em sincronia ao desenrolar da película pode ser retirada, sem grandes prejuízos à narrativa do filme.

A Última Gargalhada, todavia, não chega a ser um filme tipicamente expressionista como Metropolis, por exemplo. Apesar de toda a tonalidade expressionista da película, o filme possui também um forte acento realista em sua narrativa. Há sim a fotografia expressionista, a interpretação marcante e acentuada – típica, aliás, do cinema mudo, em geral –, as simbologias, as representações oníricas – com um belíssimo uso de fusão de imagens, inclusive –, a visão trágica da vida, mas não se vê em abundância a deformação ou exagero das formas.

Por fim, a direção de Murnau é simplesmente espetacular, realmente digna de impressionar um futuro ícone do cinema clássico, hábil e inventivo: ninguém menos que o mestre Alfred Hitchcock.