A Regra da Crítica “vaudevillesca”

Com repúdio e incompreensão. Assim foi recebida pelo público francês A Regra do Jogo (La Règle du Jeu, 1939), talvez a principal obra do cineasta Jean Renoir, filho ilustre do não menos célebre pintor impressionista Auguste Renoir. Sátira mordaz à alta sociedade, A Regra do Jogo foi visto de maneira simplista, como obra depreciativa do comportamento das altas classes francesas. Além de não aceitar – ou não entender – a bem-humorada crítica presente na película, o público francês não enxergou os avanços cinematográficos apresentados pelo filme; pode-se ver, por exemplo, o uso da profundidade de campo, antecipando Cidadão Kane (Citizen Kane, 1941), do grande Orson Welles – esta breve exegese, entretanto, não tem a pretensão nem o objetivo de se aventurar em chegar à conclusão de qual filme utilizou tal recurso de modo mais inteligente, criativo ou original. Esta obra, que faz uso do estilo de comédia conhecido como vaudeville, brinca com as relações entre as classes e dentro delas; esse tipo de comédia se caracteriza por ser bastante leve e movimentada, geralmente com cenas cantadas, além dos qüiproquós e situações imprevistas. A Regra do Jogo esperou três anos para que um produtor apostasse na obra e Renoir só conseguiu distribuí-la massivamente anos após seu lançamento, quando foi assistido apenas por amantes do cinema; pior ainda: com a Segunda Grande Guerra, o negativo simplesmente desapareceu. Somente no pós-guerra, o filme teve direito a status de obra internacional, com sua exibição na Mostra Internacional de Veneza. Já na década de 1960, foi proclamado pelo Referendo de Bruxelas um dos dez maiores filmes já produzidos até então. Por fim, esta obra, rotulada por muitos como uma comédia, foi definida pelo autor como "uma fantasia dramática" e teve grande influência no cinema moderno.

Jean Renoir nasceu em Paris, em 15 de setembro de 1894. Seguindo sua inclinação para a carreira militar, lutou na Primeira Grande Guerra. Ao voltar ferido, no entanto, resolveu atender ao desejo do pai e se tornar ceramista. Todavia, ainda no início da década de 1920 voltou-se ao cinema, sua paixão juvenil. No início de sua carreira, Renoir foi bastante influenciado por Erich Von Stronheim. Dentre sua filmografia, algumas obras merecem destaque. Em 1924 rodou seu primeiro filme, La Fille de l’Eau, que depois renegou como obra ingênua e mal realizada. Entre suas obras-primas, há o lírico A Grande Ilusão (La Grand Illusion, 1937), A besta humana (La Bête humaine, 1938) e, claro, A Regra do Jogo. Em 1940, em função da invasão nazista e do bom êxito de seus filmes, que o elevaram à condição de líder do cinema de seu país, transferiu-se para os Estados Unidos. Além de Hollywood, filmou também na Índia e na França novamente. Renoir morreu em 12 de fevereiro de 1979, em Los Angeles, EUA. Renoir, de paixão juvenil, passou a ter o cinema como religião, como parte indissociável de sua vida. Além de sua competência, tal aspecto de sua personalidade deve ter contribuído para ser reconhecido pela turma da nouvelle vague como grande cineasta e por François Truffaut, especificamente, como o melhor do mundo.

Renoir nos informa logo no início da projeção que A Regra do Jogo não se trata de uma análise de comportamento. De modo analítico ou não, o certo é que o filme expõe o modo de ser da alta burguesia francesa da época, com todas sua etiqueta, suas normas de conduta e máscaras sociais. A alta burguesia francesa, sem dúvida, acreditava que tais regras eram importantes para reger as relações sociais e, assim, evitar constrangimentos. Nas palavras de Ely Azeredo, em Infinito Cinema, “A politesse, no filme de 1939, mostra-se (...) em seu sentido mais oco e formal, como um código para abafar os perigosos ímpetos de sentimentos, refrear os arroubos do coração”.

A trama do filme poderia muito bem servir de inspiração a um filme do ácido e criativo cineasta espanhol Luis Buñuel: um grupo de aristocratas se reúnem em uma casa de campo que, como a mansão de O Anjo Exterminador (El Angel Exterminador, 1962), de Buñuel, serve de vitrine através da qual vemos toda a hipocrisia e a excessiva formalidade burguesa desmoronarem após uma série de eventos. Todos os personagens seguem as regras do jogo, mesmo os empregados; os aristocratas impõem-lhes suas regras, mas não hesitam em demiti-los ou abandoná-los quando acham conveniente, como faz o Marquês de La Chesnaye (Marcel Dalio), ao demitir o fiel Schumacher (Gaston Modot), por causa de uma confusão que fora originada, na verdade pelo engraçado, porém inescrupuloso, Marceau (Julien Carette) – personagem curiosamente construído para homenagear Charles Chaplin. O próprio Marceau, que nos é apresentado como personagem individualista, livre dos grilhões da conduta burguesa, questionador de regras, demonstra orgulho e gratidão ao ser contratado pelo marquês.

Renoir, entretanto, não condena seus personagens, não faz sobre eles juízo de valor; pelo menos não explícita ou intencionalmente, pois a exposição por ele feita já é mais que suficiente para mostrar o quão ridícula pode ser a burguesia. Claro, como qualquer obra de arte, está longe da neutralidade. Renoir cria um laboratório humano, faz sua representação do mundo burguês e de sua convivência com seus empregados, embora pareça querer negar isso, através de suas escusas iniciais. Não se pode negar que a narrativa de A Regra do Jogo possua um ar de espontaneidade única; tudo parece estar acontecendo no exato momento da projeção. Vemos aí a habilidade de Renoir em planejar e construir o que parecerá totalmente espontâneo quando pronto e executado. No final das contas não é uma mera reprodução com pretensões realistas; Renoir estiliza essa aparente espontaneidade, sendo uma das características marcantes da linguagem aí utilizada a constância do uso de um só plano para narrar vários acontecimentos simultâneos – por meio da já citada profundidade de campo. A visão de Renoir, contudo, é pessimista e cética, cujo bom exemplo é o fim destinado a dois interessantes personagens. Um é o aviador Jurieu (Rouland Toutain), convidado incômodo e indesejado por ser apaixonado pela austríaca mulher do anfitrião, Christine – ele é tratado, no entanto, como manda a etiqueta, como convidado de honra, afinal não importa o tamanho nem até onde possa ir a mentira, desde que as aparências e a elegância sejam mantidas; o outro é Schumacher, o fiel guarda-caça. Os dois são os únicos personagens sinceros, conseguindo escapar da hipocrisia reinante da casa. Ao final, contudo, em função de um mal-entendido, acerta um tiro de rifle em Jurieu, que cai morto. “São tediosas as pessoas sinceras”, diz um dos convidados ao anfitrião Marquês; desse modo Renoir antecipa o triste fim reservado às duas ovelhas negras da história.

Se há um protagonista nesta hilária trama, é o desajeitado, porém simpático Octave – interpretado pelo próprio Renoir –, o carismático boêmio amigo de Christine, sustentado pelos aristocratas com quem convive. Octave está presente nos principais acontecimentos do filme; é ele, por exemplo, quem convence o marquês a convidar seu amigo Jurieu, a despeito de qualquer constrangimento; faz parte também do número musical encenado no casarão que dá origem à longa, memorável, crucial, cínica e divertidíssima seqüência que culmina com a tragédia envolvendo Jurieu, Schumacher e, indiretamente, o próprio Octave, que revela sua paixão por Christine. As relações amorosas e as paixões são, por sinal, temas tratados de modo interessante e incisivo no filme. Renoir, através do bom-humor constante em todo o filme, mostra como tais relações podem ser fúteis e volúveis. O que melhor ilustra isso é a trajetória da personagem Christine; ela aparentemente não se decide entre seu marido, seu apaixonado Jurieu e seu confidente Octave.

Para finalizar, vale aqui uma das falas de Octave: “Eu queria desaparecer, meu velho, não ver mais nada (...), não procurar o que é bem, o que é mal, porque há uma coisa terrível no mundo: é que todo mundo tem suas razões”. Tal fala ressalta o caráter alegre e libertário de A Regra do Jogo. Renoir, destarte, embora mostre a burguesia em toda sua hipocrisia, pretende fugir de qualquer maniqueísmo ou julgamento moral. Embora defenda a liberdade de vida com alegria, vê tudo com pessimismo e sem perspectiva. Tudo isso resumido pela frase de Octave e coroado pelos acontecimentos finais do filme.