Tecnologia Assistiva e Audiodescrição criativa

AUDIODESCRIÇÃO CRIATIVA E COMUNICAÇÃO UNIVERSAL

Palestra de Zeneide Cordeiro na V conferência da pessoa com deficiência do estado do Maranhão

sou Zeneide Cordeiro, mulher cega, tenho cabelo longo, castanho e ondulado, rosto redondo, olhos pretos e lábios finos.

Nasci cega do olho direito e com baixa visão no olho esquerdo. No dia dezenove de abril de 2018 às 4:18 acordei cega. Assim, ceguei da noite para o dia ou melhor explicando, dormi uma certa noite e antes do dia seguinte amanhecer perdi todo o resquício visual que possuí durante trinta anos da minha vida.

Nos meus primeiros minutos de pessoa cega foram de estranhamento, pensei estar doente, porque, ouvia embaralhados sons, sons vindos de todos os lados. Sentia o chão vibrar, as coisas pareciam próximo e distante ao mesmo instante. Sentia meu corpo desconectado do mundo.

Nesse dia, minha rotina não mudou, cozinhei, trabalhei e fui para as aulas do mestrado. Nessa época, cursava mestrado em Políticas Públicas na Universidade Federal do Maranhão. Foi nesse dia também, que iniciei a pesquisa de campo para minha dissertação.

Lembro-me da primeira vez que caminhei sem enxergar, minhas pernas tremiam e meus pés pareciam ímãs. Lembro-me também, da primeira vez que bati meu rosto em uma parede, da primeira queimadura e das dezenas de vezes que abria e fechava os olhos na esperança da cegueira ter passado.

Recordo detalhadamente cada ação, passo, acontecimento, gestos, sons e sensações do meu processo de auto reabilitação. Mas, o maior desafio da minha vida foi aprender me comunicar. Após, ficar cega necessitei reaprender a falar e aprender ouvir. Tenho a audição extremamente sensível e além disso, sou hiperativa. Essas minhas características dificultavam meu esforço em estabelecer relações sociais.

Passei aproximadamente dois anos me esforçando de todas as maneiras para ser aceita e compreendida socialmente, mas, a maior parte dos meus esforços fracassaram. Por ter uma audição extremamente sensível a sons (ouvido absoluto) e os olhos sensíveis a luz, lugares aglomerados de pessoas e objetos e muito iluminados prejudicam minha mobilidade, causam fortes dores nos olhos, ouvidos e irritação mental. Estas especificidades me fizeram desenvolver estratégias “aceitáveis” socialmente relacionadas a comunicação.

No entanto, meu esforço em aprender a falar e ouvir foi e ainda é um processo extremamente doloroso. Minha linguagem corporal e falada frequentemente faz com que as pessoas se afastem de mim, me julguem e excluem . Por causa disso, nos anos 2020 e 2021 entrei em uma situação de profundo isolamento social.

O isolamento me obrigou a ouvir minhas palavras, meu corpo e meus pensamentos.

Descobri que queria fazer com que pessoas me ouvissem, queria falar sobre meus sentimentos, minha arte, minha pesquisa, queria falar bobagens, sorrir e desfrutar de amizades. Mas, como fazer isso se normalmente as pessoas me repeliam?

Uma forma que encontrei para solucionar esta questão foi falar com as pessoas sem manter contato próximo, sem demostrar que queria estabelecer vínculo.

Para isso, utilizei a arte. Inicialmente, comecei escrever e publicar textos curtos em um blog e sites causos, anedotas e opiniões sobre acontecimentos da minha vida.

Depois, criei vídeos para publicar nas redes sociais declamando poesias, monólogos, explicando e opinando sobre algum tema atual. Percebi que minha atitude de falar publicamente através da minha arte reduziu inúmeras barreiras comunicacionais que me violentavam.

Mas, é correto uma pessoa com deficiência, assim como eu, ser a única pessoa responsável para romper barreiras comunicacionais que impedem sua participação e inclusão social?

Refletindo e estudando sobre esta questão descobri que falar e ser escutada e i mais importante, falar e ser compreendida é um direito humano. Um direito inalienável garantido no artigo 19 da na declaração universal dos direitos humanos de 1948.

Meu direito a uma comunicação acessível e inclusiva depende de mim, dos meus familiares, do Estado e da sociedade. É obrigação de todas as pessoas criarem mecanismos para existir uma comunicação universal. A comunicação universal é uma comunicação sem barreiras. Uma comunicação acessível que respeita as diferenças de gênero, étnicas, idade, regiões e deficiências.

As tecnologias assistivas são ferramentas indispensáveis para a existência de uma comunicação inclusiva. Tecnologia assistiva é tudo que facilita a vida de uma pessoa com deficiência. Como por exemplo: o braile, as bengalas, os leitores de tela, a audiodescrição e até os óculos escuros que uma pessoa cega utiliza para proteger seus olhos da luminosidade que irrita e causa dor é uma tecnologia assistiva.

Todas essas tecnologias assistivas que citei são destinadas a pessoa cega e com outros tipos deficiência visual. Mas, existem inúmeras tecnologias assistivas para todos os tipos de deficiência . Além disso, existem tecnologias assistivas que foram criadas para pessoas com um determinado tipo de deficiência como é o caso da audiodescrição que é um recurso de acessibilidade comunicacional para pessoas com deficiência visual , no entanto, a audiodescrição é importante para facilitar a comunicação para pessoas com deficiência intelectual, autistas, analfabetos, dentre outras características humanas. Este recurso de acessibilidade transforma imagens em textos ou em fala, faz com que a pessoa com deficiência conheça imagens.

Existem profissionais especializados em audiodescrição. Estes profissionais fazem uma audiodescrição formal, seguindo regras pré-estabelecidas. Ao descrever sobre o que ver são objetivos. Entretanto, é possível fazer audiodescrição de inúmeras maneiras. Não é preciso uma pessoa ser profissional ou especialista para fazer audiodescrição no dia a dia.

Nesse momento, estou desenvolvendo uma forma de audiodescrição que estou chamando de audiodescrição criativa. Esta forma de audiodescrição une conhecimentos do teatro (improviso, consciência corporal, espacial e vocal) , elementos das artes visuais (forma, cor, textura, espaço, luz, sombra, peso equilíbrio) e experiencias cotidianas para facilitar a descrição de uma imagem.

Para executar este recurso de acessibilidade comunicacional, atitudinal e social não existem regras fixas e pré-estabelecidas. As pessoas ao descreverem uma imagem devem falar o que mais chamar sua atenção no momento ou detalhes que estiverem em destaque. Caso, tenha dúvidas em relação a alguma cor ou forma, podem atribuir características, semelhanças e julgamentos. Porém, é importante rapidez ao descrever ou audiodescrever uma pessoa, imagem, lugar, animal ou coisas .

No início da minha fala nesta conferência, descrevi minha imagem, mas, não falei minha cor. Não falei minha cor porque, tenho muita dificuldade em compreender que todas as pessoas são pretas, pardas, brancas ou indígenas tal como afirma o IBGE. Estas categorias não expressam meu modo de perceber minha cor. Por isso, não as uso.

Neste caso, posso falar sobre minha cor atribuindo características. Por exemplo: sou Zeneide Cordeiro, tenho cabelo ondulado, longo e castanho, olhos pretos, lábios finos e minha pele é da cor de canela.

Observe que atribui uma semelhança a cor da minha pele com a canela. Fiz isso, porque, ao descrever minha aparência me senti livre e confortável para falar sobre coisas que considero importante, mas, não tenho como ser objetiva.

Afinal, na realidade cotidiana poucas coisas são objetivas e tal como afirmou Viktor Frankl em suas obras “em busca de sentido” e a “presença ignorada de Deus” a subjetividade é u ato extremamente racional, indispensável para compreender nossa existência e encontrar sentido prático na vida.

Explicitar subjetividades, tais como gostos, desejos, sonhos e espiritualidade é uma necessidade humana que impede “a morte social” conforme explicou Bourdieu em sua obra “o poder simbólico”.

Todos os seres humanos atribuem características, juízo de valor e fazem semelhanças, relacionam uma coisa com outras coisas o tempo todo, a cada instante. Além disso, resolvem problemas e situações cotidianos sem planejamento antecipado de modo rigoroso e detalhista, ou seja, são capazes de improvisar a todo instante. Atribuem significados e características as coisas e seres ao ver, tocar, ouvir, cheirar e perceber. Então, porque, não utilizar estas habilidades para criar e executar recursos de acessibilidade? Foi esta pergunta que me fiz e estou procurando responde-la por meio da descrição criativa.

Meu principal objetivo é estimular todas as pessoas a executarem audiodescrição e outros recursos de acessibilidade demostrando solidariedade e respeito. Pretendo, informar as pessoas que ao executar um recurso de acessibilidade como a descrição criativa ela está contribuindo para a inclusão social, atitudinal e comunicacional de pessoas com deficiência.

Pretendo também, informar pessoas com deficiência, sobretudo, pessoas cegas que a descrição criativa é um recurso de acessibilidade humano que aproxima e une as pessoas de maneira respeitosa e agradável. Este recurso de acessibilidade permite pessoas diferentes serem valorizadas de acordo com sua diferença. Além disso, mostra que todo recurso de acessibilidade mostra sua eficácia somente quando possibilita a integração, participação plena com autonomia e segurança, isto é, quando inclui.

Nesse momento, a descrição criativa está sendo executada como um dos principais recursos de acessibilidade do projeto visão cega. Este projeto é uma oficina de produção audiovisual para pessoas cegas e com baixa visão que criei em 2023. A descrição criativa é também, uma poderosa ferramenta para ser utilizada no combate ao capacitismo porque, é um recurso de acessibilidade construído e executado a partir de interações humanas e com lugares, é também, uma linguagem corporal e falada inclusiva que compreende as limitações individuais e coletivas das pessoas.

A descrição criativa favorece a construção de um processo de inclusão com respeito humano. Esta concepção de inclusão é o inverso de favores, gentilezas e obrigações. Descrever uma imagem, uma paisagem objetos, animais e pessoas para uma pessoa cega que você possui relações de amizade, familiar ou afetos, não significa ser inclusivo, atitudes como essas, assim como conduzir uma cadeira de rodas, para proporcionar a locomoção de uma pessoa , aprender libras, ser tolerante com altistas, deficientes mentais e intelectuais ou oferecer qualquer espécie de ajuda para uma pessoa em uma situação especifica, são atitudes inclusivas esporádicas, são gentilezas com alguém que você conhece e necessita de “ajuda”.

Ser uma pessoa inclusiva, significa estar em um contínuo processo de reflexão e autoconhecimento, implica estar consciente sobre sua posição no mundo e no meio social no qual estar inserido, é, sobretudo, conhecer e compreender sua diferença e a partir disso compreender a diferença dos outros.

A compreensão de ser diferente e viver entre diferentes resulta em duas atitudes humanas perceptíveis e sentidas para mim, a primeira é o fato de a compreensão da diferença resultar no respeito a diferença. Esse processo reduz egoísmos e violências, por compreender que determinadas pessoas possuem condições diferentes para participarem com autonomia e segurança da sociedade.

Contribuí para eliminar estereótipos. Cria e executa ações, produtos e atitudes para facilitar a vidas das pessoas com limitações físicas, intelectuais, motoras, mentais e emocionais. Favorecem, portanto, acessibilidade .

A audiodescrição criativa é sobretudo, uma comunicação inclusiva eficaz para a valorização e respeito a vida.

Zeneide Cordeiro
Enviado por Zeneide Cordeiro em 28/04/2024
Código do texto: T8051471
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