A febre maligna. Por Meraldo Zisman
A quinina é um composto amargo que vem da casca da árvore cinchona. A árvore é mais comumente encontrada na América do Sul, América Central, as ilhas do Caribe e partes da costa ocidental da África. Quinino foi originalmente desenvolvido como um medicamento para combater a malária.
O palácio do vice-rei do Peru acordou triste. Naquela manhã ensolarada do ano de 1683, a esposa do vice-rei, condessa Cinchona, amanhecera mais debilitada. A febre, precedida de calafrios que faziam tremer o sólido dossel de jacarandá, era ouvida até nos corredores. A condessa havia chegado da corte espanhola e, naquele país estranho, logo se abatera sobre ela uma febre misteriosa que os nativos denominavam de “doença do fogo”, que impedia o nobre esposo de atender suas obrigações matrimoniais e, pior, impossibilitava a perpetuação de fidalga estirpe.
Eram recém-casados e ela era considerada uma das mais belas da corte madrilena. A sua bela figura estava definhando. O conde vice-rei de Cinchona andava pelos corredores do castelo, desesperado. Os médicos que o acompanhavam nada podiam fazer. Várias missas foram celebradas para o restabelecimento da condessa. Tudo em vão. De nada valeram as sanguessugas, vomitórios, purgativos, sangrias, muito pelo contrário, todos estes procedimentos debilitavam ainda mais o organismo da paciente. Em desespero, pondo o seu orgulho espanhol de lado, o vice-rei mandou chamar um curandeiro índio, que lhe fora recomendados por um escravo servente do seu palácio.
Veio o curandeiro e disse:
– Índio ser capaz de apagar fogo que queima as entranhas de mulher branca.
– Índio, você sabe o que lhe acontecerá se a condessa morrer?
– Homem branco pensa saber tudo. Somente ameaça – exclamou o velho curandeiro.
E prosseguiu:
– Meus pais e os pais de meus pais – e muito antes deles o meu povo – usavam a casca de uma árvore sagrada para esconjurar os demônios do fogo.
– Como você tem tanta certeza? – disparou o conde vice-rei.
– Meus antepassados. Eles viram até onças e outros bichos grandes, quando possuídos pelo calor da doença do fogo, comerem uma casca de árvore de quinino.
E continuou:
– Certa vez, aconteceu um tremor de terra, o povo estava brigando muito e Deus mandou a Terra tremer como quem é possuído pela doença do fogo. Das árvores desgrudaram as cascas do quinino que caíram no lago e lá apodreceram. Animal que ia beber água pra matar a sede apagava o fogo da doença do fogo.
– Chega! – disse o vice-rei. – Vá buscar esta poção dos demônios.
O velho permaneceu parado ao ouvir “vai, índio sujo”. E disse:
– Índio vai, mas antes prometa soltar meninos de menos de 10 anos da mita. Indiozinho muito pequeno. Morrem todos antes de poder dar filhos, meu povo vai acabar.
Mita era o nome dado ao trabalho escravo nas minas de prata e de ouro do Peru. O vice-rei nem se abalou. Promessa a índio nem precisa ser lembrada, quanto mais cumprida.
–Vá índio! – ordenou: – “concedido”.
Pouco tempo depois, o velho retornou. Dessa vez, acompanhado de duas mulheres carregadas com várias jarras de barro cozido, onde boiavam lascas de cascas de uma árvore. Solenemente, o senil silvícola pintou-se. Colocou paramentas especiais e, enquanto invocava a proteção do Sol, era acompanhado pelas duas mulheres que de momento em momento produziam um som lamuriento e socavam com um osso de macaco as cascas da árvore que flutuavam, tirando assim o sumo delas. Sabiam preparar de tal maneira que os sumos contidos em uma das jarras ficavam com diferente concentração.
— A condessa vai beber estas duas, uma ao nascer do sol e outra antes de a lua nascer. E depois estas duas. E assim nomeou a sequência das 14 jarras para sete manhãs e sete luas.
Apesar do amargor da bebida, a jovem tomou a prescrição. Era muito amargo. A condessa fez careta, mas tomou tudo. No dia seguinte, a doença do fogo não voltou.
E para terminar, o casal vice-rei foi feliz para sempre e teve muitos filhos, garantindo a descendência da nobre estirpe dos Cinchona. A gratidão do casal vice-real foi tamanha que até as índias prenhas foram liberadas de trabalhar no fundo das minas. Os médicos oficiais torceram o nariz, pois aquela infusão não estava escrita no livro de Galeno. Não seguia nenhum protocolo e, como sempre os médicos são muito competitivos, não seria um silvícola que iria abalar as doutas sapiências.
Um padre jesuíta, muito do esperto, correu e escreveu uma carta para seus superiores na Itália, não se esquecendo de pôr, dentro do envelope, pedaços da casca da árvore. Dizia ele: “No Peru, há uma casca mágica que cura a febre”. Providenciou um estoque delas e enviou-as para outros membros de sua congregação. O sucesso da casca do jesuíta, ou casca da condessa de Cinchona, ganhou mundo para o tratamento das febres, aumentou o poder da Companhia de Jesus e, por muitos anos, foi o único remédio para combater a terrível malária.