CÁRMIDES OU DA SABEDORIA
Tradução comentada de trechos de “PLATÓN. Obras Completas (trad. espanhola do grego por Patricio de Azcárate, 1875), Ed. Epicureum (digital)”
Além da tradução ao Português, providenciei notas de rodapé, numeradas, onde achei oportuno abordar pontos polêmicos ou obscuros. Quando a nota for de Azcárate (tradutor) ou de Ana Pérez Vega (editora), um (*) antecederá as aspas.
(*) “O Cármides é um diálogo de Platão em que Sócrates é introduzido ao jovem Cármides e continua a conversação com Crítias – o tema é o sentido de sophrosyne, palavra grega para <temperança>, <prudência>, <autocontrole>, <restrição>, havendo sido traduzida pelo escólio como sabedoria. Como é habitual nos diálogos platônicos de juventude, os contendores não chegam a uma definição satisfatória, mas ao menos promovem, através do método maiêutico, a uma profunda reflexão.” – A.P.V.
“-...quem vem vindo é Cármides, filho de meu tio Glauco e portanto meu primo.
- Sim, por Zeus! Noutro tempo, ainda que muito jovem, já não parecia mal; hoje deve ser um bem-formado adulto!
- Já, já poderás julgar de seu talhe e disposição.
Enquanto pronunciava essas palavras, Cármides entrou.
- Não é a mim, querido amigo, a quem é preciso consultar para esta avaliação. Se devo ser sincero, sou a pior pedra-de-toque em matéria de beleza dos jovens; porque na idade em que está nem um só me parece menos que formoso.
Sem dúvida me pareceu admirável por suas proporções e figura, e adverti também que todos os demais jovens encontravam-se como que apaixonados por ele, como assinalavam sua turbação e emoção, que lhes notei no rosto assim que Cármides entrou. Entre os que o seguiam, contemplei mais de um erastes. Que o seguinte sucedera a homens como nós, mais velhos, nada de espantoso: mas observei que entre os jovens não havia um que nele não fixasse os olhos, e não falo só dos mais jovens dentre eles, mas de todos do local – Cármides era contemplado como um ídolo. Querefonte, interpelando-me, disse:
- E então, Sócrates, que nos dizes? Não tem uma bela fisionomia?
- Ó, sim.
- E no entanto, se se despojasse de suas vestes, não te fixarias no seu corpo, sete conheço. Ah, tão belas suas formas!...
Todos subscreveram as palavras de Querefonte.
- Por Hércules! Falais-me de um homem irresistível se, evidente, em acréscimo a todos estes dotes possui um atributo bem pequeno.
- E qual é?
- Que a natureza tenha-o tratado com a mesma generosidade quanto a sua alma; creio que assim será, posto que o jovem pertence a tua família.”
“- E que motivos teríamos para não pôr primeiro em evidência sua alma, e não a contemplaremos antes que a seu corpo? Na idade em que se acha, está já em posição de sustentar dignamente uma conversa?
- Perfeitamente – respondeu Crítias. – Já nasceu filósofo. E se podemos crer nele mesmo e naqueles que o cercam, é também um poeta.
- Talento que, vejo, é-lhes hereditário, meu querido Crítias. Devei-lo sem dúvida a vosso parentesco com Sólon! Mas que tanto esperas para me introduzir a este jovem promissor? Ainda que fôra mais jovem do que é, nenhum inconveniente teria em conversar conosco diante de ti, seu primo e tutor.
- Nada mais justo, Sócrates. Iremos chamá-lo.”
“- Cármides se queixa de que há algum tempo lhe pesa e lhe dói sua cabeça, sobretudo quando acaba de acordar. Que inconveniente há em indicá-lo, pois sei que conheces, um bom remédio para este mal?”
“Assim sucedeu, com efeito. Cármides veio a nós e deu ocasião a uma cena bastante divertida. Cada um de nós, todos sentados num mesmo banco, empurrou seu vizinho, espremendo-se a fim de dar lugar a nosso conviva, para que se sentasse a seu lado. Em resultado, cada um empurrando seu próximo, os dois que estavam nas extremidades do assento, um deles teve de se levantar de golpe, e o outro caiu de bunda no chão. Não obstante, Cármides adiantou-se e sentou entre Crítias e eu mesmo. Mas então, ó amigo, me senti um tanto turbado e perdi repentinamente aquela serenidade que conservara antes, com a qual contava a fim de conversar sem esforço com o jovem. Depois, Crítias fez questão de cortar o embaraço relatando que eu era aquele que sabia de um bom remédio para suas dores de cabeça. Ele se voltou para mim com o olhar interrogativo e perscrutador, um gesto que me é impossível descrever o suficiente. Todos que estavam na academia se apressaram para sentar em círculo a nossa volta. Neste momento, meu querido, minha vista penetrou as dobras de sua túnica; meus sentidos se excitaram, e em meu transporte compreendi até que ponto Cídias é inteligente nessas coisas do amor: uma vez, falando da beleza de um jovem, com um terceiro, disse: Ó, inocente gamo, vê se não te vais apresentar à boca do leão, se não desejas ser despedaçado!”
“Respondi que meu remédio consistia em certa erva, mas que era preciso acrescentar certas palavras mágicas; que pronunciando as palavras e tomando o remédio ao mesmo tempo recobraria inteiramente a saúde; mas que as ervas sem as palavras não surtiriam qualquer efeito. Cármides me respondeu:
- Vou, pois, escrever as palavras de teu encanto para não as esquecer.
- Dir-tas-ei a uma petição tua ou sem precisar de uma?
- Ao meu rogo, Sócrates – respondeu o jovem espirituoso, a rir.
- Que assim seja. Mas sabes meu nome?
- Seria vergonhoso se o ignorasse; no círculo de jovens és tu quase o principal tema de nossas conversas. Quanto a mim, recordo vivamente tê-lo visto, ainda muito criança, muitas vezes, em companhia de meu querido Crítias.
“SÓCRATES – (...) O poder deste remédio é tal que não cura somente as dores de cabeça. Já deves ter ouvido falar de médicos hábeis. Se são consultados por alguém com doenças oculares, dizem que não podem empreender a cura dos olhos sem estender o tratamento à cabeça inteira. Analogamente, não se pode curar a cabeça desprezando o restante do corpo. Seria uma tolice. Seguindo este raciocínio, tratam o corpo inteiro e se esforçam por cuidar do paciente e sanar a parte juntamente com o todo. Não crês tu que é assim como falam e como realmente acontece?
CÁRMIDES – Não duvido.
SÓCRATES – E tu aprovas este método?
CÁRMIDES – Como não?”
“Zamolxis,(*)¹ nosso rei, e por conseguinte um deus, defende que não se deve tentar efetuar a cura dos olhos sem a cura da cabeça, nem a da cabeça sem a do corpo; e tampouco deve-se tratar o corpo sem tratar a alma; se muitas doenças resistem aos esforços dos médicos gregos, isto vem de que desconhecem este sistema. Pois indo mal o todo, seria impossível que fosse bem a parte.
(...)
Trata-se da alma valendo-se de algumas palavras mágicas. Estas palavras mágicas são os belos discursos. Graças a eles, a sabedoria se enraíza nas almas e, uma vez arraigada e viva, nada mais fácil que se procurar a saúde à cabeça e a todo o corpo.”
(*) “Referem Zamolxis como escravo de Pitágoras que obteve sua liberdade, viveu três anos num subterrâneo [!!] e de lá saiu para fazer-se grande legislador, além de filósofo que ensinava sobre a imortalidade da alma. (Heródoto, 4:95)” – P.A.
“Talvez tenha sido discípulo e não escravo de Pitágoras. Seu nome possui diferentes grafias, conforme a fonte apurada. Zalmoxis, Salmoxis, Zamolxis, Samolxis. É hoje tido mais como figura lendária, reformador social e religioso, endeusado pelos trácios da Dácia e pelos getas (povos do baixo Danúbio). Ainda com referência a Heród. 4:95-ss., os getas tinham a crença de que ao morrerem se reuniam com Zamolxis.” – A.P.V.
¹ Para uma interpretação moderna do mito de Zamolxis ou Zalmoxis, vd. Mircea Eliade.
“- Cármides me parece superior aos jovens de sua idade, não só pela beleza de suas formas, mas também por essa coisa mesma pela que tu aprendeste e que contém referências a essas <palavras mágicas>. Afinal, o que queres dizer é que discutamos sobre a sabedoria, não é verdade?
- Exatamente.”
“Anacreonte, Sólon e os demais poetas foram infatigavelmente celebrados pela família de teu pai que se liga a Crítias, filho de Drópidas. Tua família é famosa por sobressair na beleza e na virtude de suas gerações, afora todas as demais vantagens que constituem a felicidade. (...) Jamais se conheceu no continente um homem mais belo nem mais excelente que teu tio Pirilampo, embaixador de reis e príncipes diversos. (...) Pois bem: com tais antepassados, tu não podes menos que ser o melhor em tudo.”
“se és suficientemente sábio, nada tens que ver com as palavras mágicas de Zamolxis ou de Ábaris, o Hiperbóreo¹ (...) A ti, te toca unicamente dizer-me se concordas com a opinião de Crítias, se crês que tua sabedoria é completa, ou ainda incompleta.”
¹ Outra figura “excêntrica” relatada pelo historiador Heródoto. Digamos que personagem folclórica, posto que ali se diz que voava pelos céus.
“Cármides se ruborizou, e com isso pareceu ainda mais belo, porque a modéstia quadra bem com sua idade juvenil. Depois, ao recobrar-se, disse, não sem certa dignidade, que não lhe era fácil responder de chofre <sim> ou <não> a semelhante pergunta.
- Porque se nego que sou sábio, acuso-me a mim mesmo, o que não é razoável; e assim fazendo emito um desmentido às palavras de Crítias e tantos outros, que tanto me exaltam, ao que parece. Mas, na mão contrária, se faço-me eu mesmo meu próprio elogio, não me ponho em situação menos inconveniente. Simplesmente não sei o que responder-te!”
“SÓCRATES – Para que saibamos se a sabedoria reside ou não em ti, diz-nos: que é a sabedoria em tua opinião?”
“Sócrates, a sabedoria parece consistir, para mim, em fazer todas as coisas com moderação e medida; andar, falar e agir em tudo dessa maneira; numa palavra, a sabedoria seria uma certa medida.”
“SÓCRATES – Diz-se por aí, querido Cármides, que os que procedem com medida são sábios. Mas há razão nessa sentença?”
“SÓCRATES – E que é mais belo para um mestre de escola, escrever agilmente ou com medida?
CÁRMIDES – Agilmente.
SÓCRATES – Ler rápido ou devagar?
CÁRMIDES – Rápido.
SÓCRATES – E tocar a lira com desenvoltura e lutar com agilidade não é mais belo que fazer todas essas coisas com mesura e lentidão?
CÁRMIDES – Sim.
SÓCRATES – E então? No pugilato e nos combates de todo gênero, não é sempre assim?
CÁRMIDES – Absolutamente.”
“SÓCRATES – É a sabedoria bela?
CÁRMIDES – Sim.
SÓCRATES – Logo, pelo menos no que concerne ao corpo, não é a mesura ou a medida, mas a velocidade a que constitui a sabedoria, posto que a sabedoria é uma coisa bela.”
“CÁRMIDES – Me parece que o próprio da sabedoria é produzir o rubor, fazer o homem modesto e timorato; a sabedoria seria, então, o pudor.
SÓCRATES – Que seja, então. Não confessaste antes que a sabedoria era uma coisa bela?
CÁRMIDES – Sim.
SÓCRATES – E os homens sábios são igualmente bons?”
“a sabedoria consiste em fazer o que nos é próprio.”
“SÓCRATES – Ó, pícaro! Foi Crítias ou algum outro filósofo que te sugeriu esta idéia?”
“se descobrirmos o que isto significa, não me surpreenderei pouco; é um verdadeiro enigma!”
“CÁRMIDES – Eu não sei de nada, por Zeus! Mas não seria impossível que quem falou desta forma se compreendesse a si próprio.
Ao dizer isso, Cármides me sorria e dirigia o olhar a Crítias, que se encontrava visivelmente vermelho já há um tempo. (...) Percebi que jamais me enganara: Crítias era o autor da última resposta que me deu Cármides acerca da definição de sabedoria.”
“não menos colérico contra o jovem que um poeta contra o ator que desempenha mal seu papel”
“Trabalhar com vistas ao belo e ao útil, eis aqui o que se chama ocupar-se; e os trabalhos deste gênero são para Hesíodo ocupações e o autêntico agir.”
“SÓCRATES – (...) Que assim seja. Dá às palavras o sentido que mais te agrade; basta-me que as definas simultaneamente a seu emprego. (...) Fazer o bem ou trabalhar por ele, ou como queiras chamá-lo, é isso que tu chamas sabedoria?”
CRÍTIAS – Não pestanejo, Sócrates.
SÓCRATES – Sábio é aquele que faz o bem, não o que faz o mal?
CRÍTIAS – Tu mesmo, querido amigo, não és deste parecer?
SÓCRATES – Não importa; o que temos que examinar não é o que eu penso, mas o que tu dizes.
CRÍTIAS – Pois bem; o que não faz o bem mas o mal, declaro que não é sábio; o que não faz o mal, mas o bem, este eu declaro sábio. (...)
SÓCRATES – Poderá suceder que tenhas razão. Não obstante, uma coisa me chama a atenção, e é que admites que um homem possa ser sábio e não saber que o é.
CRÍTIAS – Não há nada disso, Sócrates. Não o admito.”
“CRÍTIAS – Não, Sócrates, isto não é possível. Se crês que minhas palavras conduzem necessariamente a esta conseqüência, prefiro retirá-las. Prefiro antes confessar sem nenhum constrangimento que me expressei inexatamente, a conceder que se possa ser sábio sem conhecer-se a si mesmo. Não estou distante de definir a sabedoria como o conhecimento de si mesmo, e de fato sou da mesma opinião daquele que gravou no templo de Delfos uma inscrição deste gênero: Conhece-te a ti mesmo. Esta inscrição é, a meu ver, um cumprimento que o deus dirige aos que entram, em vez de ser uma fórmula ordinária, conforme muitos, tal qual <Sê feliz!>. Creio que o deus julgou que uma mensagem mais direta como esta última não seria conveniente, e que aos homens deve-se desejar não a felicidade, mas a sabedoria. Eis aqui em que termos tão distintos dos nossos fala o deus aos que entram em seu templo, e eu compreendo bem o pensamento do autor da inscrição (...) linguagem um pouco enigmática, sim, como a do adivinho. ‘Conhece-te a ti mesmo’ e ‘sê sábio’ são a mesma coisa, pelo menos é o sentido da inscrição e o meu. Há outros homens que gravaram inscrições mais recentes nos templos, inscrições bem mais simplórias: Nada em demasia; dá-te em caução e não estarás longe da ruína, etc. Isso é coisa de gente que tomou a sentença conhece-te a ti mesmo por uma simples afirmação, digo, conselho, e não pelos cumprimentos do deus aos que ali entravam. (...) Ora, Sócrates, quiçá estejas certo ao final, quiçá eu o esteja. Em todo caso, nada de sólido firmamos aqui.”
“A sabedoria não é semelhante às outras ciências; estas não são semelhantes entre si, e tu supões em teu raciocínio que todas se parecem”
“SÓCRATES – E a estática é a ciência do pesado e do leve; o pesado e o leve diferem da estática mesma. Não crês?
CRÍTICAS – Sim.
SÓCRATES – Pois bem; diz-me: qual é o objeto da ciência da sabedoria, que seja distinto da sabedoria ela mesma?”
“CRÍTIAS – (...) Esta semelhança não existe. Enquanto todas as demais ciências são ciências de um objeto particular e não do todo delas próprias, só a sabedoria é a ciência de outras ciências e de si mesma. (...) propões-te apenas a me combater e refutar, Sócrates, sem fixares-te na essência da questão.
SÓCRATES – Mas como, Crítias? Podes crer que se eu te pressiono com minhas perguntas seja por outro motivo além de que assim eu me obrigaria a dirigir-me a mim próprio a fim de examinar minhas palavras? Quero dizer, o temor de me enganar a respeito das coisas pensando saber e na verdade constatar que não sei não é aquilo que sempre me moveu e continua a me mover?”
“Ânimo, amigo! Responde a minhas perguntas, segundo teu próprio juízo, sem inquietar-te se é Crítias ou Sócrates aquele que leva a melhor ao final. Aplica todo teu espírito no objeto que nos ocupa agora, e que seja uma só coisa tua preocupação: a conclusão a que nos conduzirão nossos próprios esforços.”
“CRÍTIAS – Penso que, única entre todas as demais ciências, a sabedoria é a ciência de si mesma e de todas as demais ciências.
SÓCRATES – Logo, será também a ciência da ignorância, se o é da ciência?
CRÍTIAS – Sem dúvida.
SÓCRATES – Portanto, só o sábio se conhecerá a si mesmo, e estará em posição de julgar daquilo que sabe e daquilo que não sabe. De igual modo, só o sábio é capaz de reconhecer, quanto aos demais, o quê cada um sabe crendo sabê-lo, assim como o quê cada um crê saber, sem contudo saber. Nenhum outro pode fazer esse juízo. Numa palavra, ser sábio, a sabedoria, o conhecimento de si mesmo, tudo isso se reduz a saber o quê se sabe e o quê não se sabe. Não pensas tu idem?
CRÍTIAS - Em absoluto.”
“SÓCRATES – (...) examinemos (...) primeiro se é possível ou não saber que uma pessoa sabe o quê sabe e não sabe o quê não sabe. Em segundo, supondo isto possível, que utilidade pode resultar este saber?”
“Concebes uma vista que não visse nenhuma das coisas que vêem as demais vistas, mas que seja a vista de si mesma e das demais vistas, e até do que não é visto? Concebes uma vista que não visse a cor, apesar de ser vista, mas que se visse ela mesma e as demais vistas? Crês que semelhante vista existe?
CRÍTIAS – Por Zeus, Sócrates, claro que não!
SÓCRATES – Concebes um ouvido que não ouvisse nenhuma voz, mas que se ouvisse a si mesmo e aos outros ouvidos, e até ao que não é ouvido?
CRÍTICAS – Tampouco.
SÓCRATES – Considerando todos os sentidos de uma só vez, parece-te possível que haja um que seja o sentido de si mesmo e dos outros sentidos, mas que não sinta nada do que os outros sentidos sentem?”
“Por conseguinte, uma coisa seria ao mesmo tempo maior que si mesma e menor que si mesma; mais pesada e mais leve; mais velha e mais nova, e assim com todo o demais. Não é indispensável que a coisa, que possui a propriedade de referir-se a si mesma, possua ademais a qualidade a que tem a propriedade de se referir?”
“Seria possível uma ciência da ciência? Eu sou incapaz de afirmá-lo; e ainda que a haja, eu de minha parte não poderia admitir que esta ciência seja a sabedoria antes de haver examinado se, isto pressuposto, tal conhecimento nos seria útil ou não; porque me atrevo a declamar que a sabedoria é uma coisa boa e útil. Mas tu, filho de Calescro, que estabeleceste que a sabedoria é a ciência da ciência e igualmente da ignorância, prova-me, antes de qualquer coisa, que isto é possível”
“Crítias, como aqueles que bocejam ao ver alguém bocejar, pareceu-me tão desconcertado quanto eu. Habituado ele a se ver coberto de elogios, constrangia-se à mera olhada dos circunstantes; teimava em não confessar ser incapaz de esclarecer as questões que eu formulei, falava, falava, e nada dizia – apenas disfarçava sua impotência aos menos perspicazes. Eu, que não queria abortar a discussão, me interpus novamente:”
“SÓCRATES – (...) Sem dúvida, se alguém possui aquilo que conhece a si mesmo, reconhecerá, logicamente, também a si mesmo. Mas o que interessa saber é se quem possui esta ciência deve necessariamente saber o quê sabe e também aquilo que não sabe!
CRÍTIAS – Sem dúvida, Sócrates, porque trata-se da mesma coisa.”
“É através da medicina que conhecemos o que é são, não através da sabedoria; e através da música, o que é harmonioso (não através da sabedoria); através da arquitetura, o que é necessário para se construir (não da sabedoria). Concorda que é assim sucessivamente com todas as demais artes e ciências?”
“Aquele que ignora essas coisas não sabe o quê ele sabe, só sabe que sabe.”: Esta expressão é a formulação mais extensa e elaborada do aforismo mais célebre de Sócrates-Platão: o só sei que nada sei. Ao contrário do que vulgarmente se diz em torno desta frase, Sócrates não abdica do conhecimento, abraçando um ceticismo e um niilismo teórico absolutos. O sábio não sabe a medicina, o sábio não sabe a música, o sábio não é arquiteto, nem piloto de navio, nem estratego militar, nem a sibila. Mas, seu cognome o indica, ele possui uma sabedoria, a mais especial das sabedorias, a sabedoria em si. Sem referências às outras, é uma sabedoria inócua, vazia, despida de conteúdo. Somente com referência às outras sabedorias é a sabedoria do sábio (do filósofo) a ciência da ciência. Isto já é algo mais que o niilismo fundamental do conhecimento vulgar da expressão. Mas implica que o sábio pode ou deve ser útil? Não sem a devida humildade e a visão do todo que este conhecimento exige se não for apenas Retórica: “Só” sei que nada sei: o só representa mais do que uma partícula “secundária” da frase-síntese do método maiêutico: é o conhecimento positivo, mas que não se atreve a usurpar o lugar de cada um dos outros especialistas (nas demais sabedorias técnicas), de que sem o conhecimento natural cumulativo, da experiência, seu saber de nada vale ou adianta; ainda assim, é o primeiro passo necessário, a primeira certeza no sentido objetivo da filosofia moderna, até os dias da nossa Filosofia. Não sei “o quê” (conteúdo) posso saber ou não, mas sei qual é o critério da busca da verdade. Nasce aqui a epistemologia atemporal. Admite que não existe uma modalidade de sabedoria que esgote a própria sabedoria, a ponto de eliminar a ignorância, que é sempre a estrada do filósofo. E nenhuma filosofia se faz sem um chão firme sob os pés. Em suma, Sócrates entendeu a condição humana: o limite dinâmico da própria capacidade do saber. (A possibilidade d)O auto-conhecimento (do homem e das coisas pelo próprio homem que pode se entender e entender as coisas, como são, apenas a partir desse parêntese – de que o quê ele sabe sobre si mesmo condiciona e limita seu conhecimento atual do todo, sem que essa regra seja jamais passível de quebra, embora seu conhecimento atual varie com o tempo).
“Logo, a sabedoria e o ser sábio consistem não em saber o quê se sabe e o que não se sabe, mas unicamente em saber que se sabe e (outrossim) que não se sabe.” Reiteração do dito acima: o saber não pode ser sem a ignorância, e vice-versa.
“Logo, a sabedoria não nos põe em posição de reconhecer no outro, que alega sempre saber alguma coisa, se este outro sabe o quê diz saber, ou se porventura não o sabe de verdade. Toda a virtude da verdadeira sabedoria (a ciência das ciências) se limita a nos ensinar que possuímos uma certa ciência.¹ Qual é a matéria desta ciência, não é a ciência das ciências quem nos dirá.”
¹ Maior que zero, menor que tudo.
“O médico não sabe nada sobre a medicina, pois a medicina é sabedoria de saudável e do doente, não de si mesma. O sábio reconhecerá que o médico possui uma sabedoria; mas que sabedoria é essa, só se o pode saber com referência aos objetos da medicina.”
“Afora o médico, ninguém é competente para isso, nem o próprio sábio, aliás, muito menos ele. Não fosse assim, teríamos um médico-sábio, ou um sábio-médico, figura quimérica.”
“E bem, querido Crítias, reduzida a sabedoria a estes termos, qual pode ser sua utilidade? Ah! Se, como supomos de início, o sábio soubesse o quê sabe e o quê não sabe; se soubesse que sabe certas coisas e não sabe outras certas coisas... Se pudesse, além disso, julgar aos demais homens quanto ao que ele julga na própria pessoa, aí então, eu o declaro, ser-nos-ia INFINITAMENTE ÚTIL o sermos sábios! Passaríamos a vida, inclusive, isentos de falha enquanto possuíssemos a sabedoria, e o mesmo se aplicaria a quem agisse conforme nossas prescrições.”
“Talvez que o objeto de nossa indagação seja absolutamente inútil! O que me faz ter esses pressentimentos acerca da sabedoria (a que definimos) são coisas que me vêm ao espírito. (...) Creio que excedo meus poderes. Mas quê importa? Quando algo se nos coça cá no espírito não há remédio senão examinar esta coisa! Não deixeis que escape ao acaso, por pouco amor que tenhas por ti mesmo!”
“ao vivermos em prol da sabedoria, viveremos por isso melhor e mais felizes?”
“SÓCRATES – (...) me parece que só tomas por felizes aqueles que vivem segundo certas sabedorias. Talvez só concedas este privilégio ao que designei previamente, isto é, àquele que sabe tudo o quê deve suceder: falo do adivinho.
CRÍTIAS – Não só a esse sábio, Sócrates.
SÓCRATES – Quais outros então? Poderias estar falando daquele que une o conhecimento do futuro, do passado e do presente? Suponho que um tal homem existe. Creio que confessarás que nenhum outro que não este pode viver segundo a sabedoria.
CRÍTIAS – Confesso.
SÓCRATES – Mais uma pergunta: Qual destas ciências é a que faz este homem feliz? Ou são todas de uma vez, cada uma em sua proporção?
CRÍTIAS – Nada disso.
SÓCRATES – Então, qual é a ciência que eleges? A dos acontecimentos passados, presentes e futuros? A do xadrez?
CRÍTIAS – Ah, a do jogo de xadrez!! Que absurdo!
SÓCRATES – A dos números?
CRÍTIAS – Essa também não.
SÓCRATES – A do que é saudável?
CRÍTIAS – Hm, talvez.
SÓCRATES – Mas diz de uma vez, qual é a ciência que mais contribui para a felicidade do sábio?
CRÍTIAS – A ciência do bem e do mal.
SÓCRATES – Ah, pícaro! Depois de tanto caminharmos faz-me agora rodar em círculos!”
“E esta ciência, me parece, não é a sabedoria, senão aquela cujo objeto é o ser útil;¹ porque não é a ciência da ciência e da ignorância, mas a do bem e do mal.”
¹ No fundo, a ética é a mais importante das sabedorias, mas é também a mais difícil.
“Supusemos, pois, que existe uma ciência da ciência, apesar de que a razão não permite nem autoriza semelhante concepção. Depois, admitimos que esta ciência conhece os objetos das outras ciências, e isso é contrário à razão! Desejaríamos que o sábio pudera saber que ele sabe o quê sabe e o quê não sabe. Na verdade fomos generosos em excesso fazendo esta última concessão, uma vez que consideramos, neste exercício, que é possível saber, de certa maneira, o que absolutamente não se sabe. Admitimos, por fim, que ele sabe e que ele não sabe, ao mesmo tempo – o que é o mais irracional que se possa imaginar. (...) qualquer que seja a definição da sabedoria que tenhamos inventado, de comum acordo, essa ou aquela definição sempre nos fez ver, com naturalidade, que nenhuma delas pode ser-nos útil.”
“ao fim, amigo Cármides, ressinto ter aprendido com tanto afã as palavras mágicas daquele trácio, para concluir que nenhum valor possuem. Mas não, não posso crer que assim seja, e é mais adequado pensar que eu é que não sei buscar a verdade! A sabedoria é, sem dúvida, um grande bem; e se tu a possuis, és um mortal feliz. Mas examina atentamente se a possuis verdadeiramente, a fim de que não necessites de palavras mágicas”
“CRÍTIAS – A maior prova que podes dar-me de tua sabedoria, meu querido Cármides, é entregar-te aos encantos de Sócrates e não afastar-te dele nem um só minuto.
CÁRMIDES – Estarei sempre com ele, seguirei seus passos; porque eu me tornaria um réprobo ao não te obedecer, ó tio, tu que és meu tutor.”
“SÓCRATES – Ah, e que é que vós dois tramais agora?
CRÍTIAS – Absolutamente nada, Sócrates. Só isto: que tens-nos as tuas ordens.
SÓCRATES – Como?! Empregais então a força, sem deixar-me a liberdade da escolha?!”