O Sonho pode Unir a Humanidade
O verbete para "sonho" no dicionário Houaiss apresenta 15 significados diferentes. Sonho é uma palavra de significação ampla. Esse fenômeno é chamado de polissemia. Polissemia é quando uma palavra apresenta diversos significados. Existe um fenômeno paralelo na linguística, que para os leigos se confunde com a polissemia, chamado de homonímia. A homonímia ocorre quando duas palavras diferentes têm igual grafia. O exemplo clássico de homonímia é entre as palavras manga e manga, a "manga da camisa" e a "manga fruta". Por que não podemos considerar manga mais um caso de polissemia? O que acontece com essas duas palavras é algo como uma etmologia convergente. Manga (a da camisa), vem do latim, e o radical "man" em sua composição é o mesmo que originou a palavra "mão", o que é autoexplicativo. Já manga (a fruta) é originária da Índia, onde há milhares de anos se falava o dravídico. Em dravídico a palavra mãnna, pode ser traduzida para algo como "a fruta mais alta". Mas pesquisar etmologias pode ser algo desnecessário para distinguir uma polissemia de uma homonímia. No inglês, que não é uma língua latina, traduzimos a primeira palavra por sleeve, enquanto a segunda mantém o radical "mang" de sua origem dravídica.
Naturalmente, as origens muito diversas de duas palavras e a casual convergência etmológica faz com que a semântica das palavras seja muito distante. Mesmo que a manga de uma camisa seja feita de algodão, o gênero Gossypium compartilha com o gênero Mangifera apenas o seu reino (ambas são plantas), estando tão remotamente ligadas pela evolução quanto um elefante está de uma libélula. Quiça em alguma língua perdida do mundo as palavras para elefante e libélula incorram em homonímia.
É claro, portanto, que o que distingue uma polissemia de uma homonímia não é a distância semântica entre os significados do Houaiss, pois os significados da polissêmica palavra sonho não são mais próximos que os das palavras homônimas manga e manga. O significado nº 5 do verbete sonho é precedido de um alerta (fig), ou seja, figurativamente o sonho pode significar: "desejo vivo, intenso, veemente e constante; aspiração, anseio". Os significados 1 e 11 parecem estar em maior consonância e são mais desprovidos de sentido figurativo que o 5: 1 sendo "ato ou efeito de sonhar, conjunto de imagens, de pensamentos ou de fantasias que se apresentam à mente durante o sono" e 11 sendo "conjunto de sensações e representações mais ou menos realistas que surgem durante o sono ou estados assemelhados, e que na maioria das vezes têm um caráter bizarro, confuso e incoerente."
A semântica do significado 5 é absurdamente distante da dos 1 e 11. Por que ninguém nunca considerou sonho como uma homonímia? A resposta mais facilmente inferível advirá do conceito jungiano de que o conteúdo dos sonhos esteja relacionado aos desejos inconscientes da pessoa que sonha. Mas essa explicação é insatisfatória, pois uma rápida pesquisa revelará que a polissemia já acontecia muito antes de Jung. Talvez a polissemia da palavra sonho seja tão antiga quanto a capacidade humana de abstrair significados para as palavras.
Em português essas duas ideias muito diferentes são expressas pela palavra sonho. Em espanhol, ensueño, em italiano, sogno. Essa semelhança é facilmente explicável pela ancestralidade de todos esses idiomas no latim, em que existia a palavra somnium. Dentre as línguas latinas, o francês apresenta uma excentricidade: rêve. No entanto a palavra rêve surgiu apenas no século XVII, substituindo a então usada songe. Ao passo que a palavra em latim somnium é derivada de somnus (sono), que a aproxima dos significados 1 e 11, a palavra francesa rêve é derivada da "resver", que significa divagar, o que a aproxima do significado 5. Mas tão longo rêve foi consolidado na língua francesa, passou a assumir os dois significados, assim como as descendentes de somnium e presumivelmente a própria palavra somnium. Isso mostra que a associação de duas ideias tão diferentes a uma mesma palavra já estava assimilada no consciente coletivo da humanidade no século XVII. E é seguro dizer, há muito, muito mais tempo do que isso.
Nas línguas saxãs como o inglês e o alemão, que não são línguas latinas, as palavras dream e traum têm o mesmo significado das latinas, seja rêve ou as descendentes de somnium. A proximidade fonética entre as duas formas é notável, sendo que a transformação do D em T nas línguas é amplamente verificada em exemplos. O som das duas consoantes é tão próximo que nos caracteres do japonês, as hiragana, a diferença entre elas é marcada por um simples traço. Mas uma origem comum do latim com as línguas saxãs não é novidade entre os linguistas, apenas aconteceu há muito mais tempo.
Línguas ramificam-se no tempo. As línguas latinas estiveram unidas no Império Romano há não mais que dois milênios e meio. Mas as línguas latinas não incluem as línguas dravídicas e as saxãs. Retrocedendo o suficiente no tempo, a origem em comum é encontrada. Os linguistas estabelecem uma origem comum entre o latim, as línguas dravídicas e as línguas saxãs no proto-indo-europeu, falado no continente eurasiano há milhares de anos. Em 1903 o linguista Holger Pedersen foi ainda mais ousado e teorizou que o proto-indo-europeu tem uma ancestral chamada de nostrálico, que teria como descendentes vivas até mesmo as línguas africanas. O nostrálico teria sido falado por uma tribo do continente eurasiano há 15 mil anos. Essa suposição não é absurda.
Tal como as línguas, as pessoas também têm ancestrais comuns. O esquimó da península Yupik e o maori da Nova Zelândia têm um ancestral em comum, bem como o vidraceiro que está hoje trocando as janelas de uma escola pública em Lebu, Chile e o rei da Suécia. Geneticistas, genealogistas e estatísticos têm feito grandes esforços para descobrir quem é esse ancestral comum. É ponto pacífico entre eles que esse ancestral viveu há dezenas de milhares de anos. No entanto, encontrar o concestral de toda a humanidade não é tão fácil quanto parece.
Saber que existiam humanos há dezenas de milhares de anos não é suficiente para saber quem é o concestral. Há mais de 120 mil anos tribos humanas habitavam as cavernas próximas ao rio Klasies, onde hoje é a África do Sul, o que não significa que eles tenham descendentes vivos. A maior parte das pessoas dessas tribos, naturalmente, tinha filhos, mas não necessariamente suas linhagens duraram até hoje, de modo que não é possível afirmar que qualquer pessoa hoje descenda das tribos de Klasies. Mas necessariamente todo ser humano vivo hoje descende de algum ser humano que viveu há dezenas de milhares de anos. Hoje em dia isso pode não ser mais tão verdade, mas sem dúvida o era antes do advento da civilização: homens têm mais filhos que mulheres. Uma mulher pré-histórica dificilmente teria mais que uma dezena de filhos durante a vida, enquanto um homem poderia gerar centenas de filhos em diferentes tribos. Assim, se um homem e uma mulher compartilharem sua existência no tempo e espaço, ele tem muito mais chances de ter descendentes num futuro distante que ela. Portanto o ancestral comum mais recente de toda a humanidade provavelmente foi uma mulher.
Essa mulher não vivia sozinha, certamente fazia parte de uma tribo e mantinha relações sociais com os membros dessa tribo. Assim, essa tribo se comunicava entre si e, talvez, falava. Não é certo.
O gene responsável pela fala em humanos, o FOXP2, tem cerca de 200 mil anos, que é uma idade tão antiga quanto a da própria espécie humana. Os neanderthais, extintos há 29 mil anos, compartilhavam conosco esse gene, o que é um indício de que se comunicavam de forma articulada. Portar o gene FOXP2, no entanto, não significa que o indivíduo domine uma linguagem verbal, apenas que ele é capaz de fazer isso. Falar, apenas, não é o suficiente para conceber certas ideias. É preciso considerar. Considerar vem do latim, e o radical "sidera" é o mesmo de espaço sideral. O espaço é repleto de astros. A palavra considerar remete a alguém perdido em pensamentos, sentado na noite sob os astros pensando longamente sobre questões quaisquer. Se os neanderthais falavam, sobre o que falavam? Sobre o mamute que queriam caçar? Naturalmente a capacidade de falar sobre o mamute há alguns metros de distância, que é seu potencial jantar, com seus colegas de caçada auxiliaria imensamente o hominídeo a elaborar uma estratégia de predação. O que é uma aplicação do gene FOXP2 imensamente diferente de um físico teórico num laboratório conversando com seu colega sobre a distorção do tempo causada pelos buracos negros. Falar de algo presente é muito diferente de falar de ideias. A capacidade do ser humano de considerar não pode ter mais de 40 mil anos, período do qual constam as primeiras esculturas representativas encontradas pela paleontologia. Ali o ser humano já usufruía de sua capacidade de consideração e, portanto, falava. Pode ser que os seres humanos de 200 mil anos atrás falassem, pode ser que não. Os seres humanos de 40 mil anos atrás com certeza falavam. Como 40 mil é mais do que 15 mil, o nostrálico é possível.
Há mais de 40 mil anos o ser humano fala. E em algum momento do passado viveu a concestral da humanidade que talvez falasse. É supor uma coincidência extraordinária que tenha havido o encontro dessas duas ancestralidades, ou seja, que o idioma falado pela concestral seja o nostrálico ou algum ancestral dele. Sim, ancestral do nostrálico, pois mesmo o nostrálico não é abrangente o bastante.
O árvore genealógica nostrálico não abrange o japonês, a língua misteriosa dos índios ainu. É um pensamento parcimonioso que os índios ainu tenham desenvolvido sua língua à parte dos falantes do nostrálico no continente. Afinal, mesmo isolados deles, também portavam o gene FOXP2, de 200 mil anos, muito mais antigo que qualquer língua conhecida ou mesmo teorizada. Supor que os ainu desenvolveram sua língua independentemente pode ser contestado por uma palavra: yume. Yume significa sonho. E isso significa que essa palavra tem dois significados bastante diferentes.
Os japoneses e os ocidentais são ambos descendentes da concestral, o que os faz ser descendentes da mesma tribo. E se essa tribo falasse, isso também leva a uma ancestralidade comum de seus idiomas.
Nisso a polissemia da palavra sonho, em todas as formas e idiomas em que ela é possível, pode ser explicada com uma hipótese: Um dia, um jovem membro dessa tribo perdida sonhou que caçava um enorme mamute, o maior que qualquer caçador de sua tribo jamais havia conseguido. Ele contou aos seus amigos o que tinha sonhado e, muito antes de Jung associar as duas coisas, começou a pensar que obteria imenso prazer se o sonho se tornasse realidade. Ele sonhava em um dia caçar o maior mamute que já haviam visto. Assim como em seu sonho. O seu sonho era o seu sonho. Talvez os membros daquela tribo, em suas considerações, já haviam concebido uma palavra para um grande objetivo de vida, talvez não. Mas mesmo que já houvesse uma palavra, ela foi completamente desbancada pela nova palavra, palavra que remetia ao garoto empenhado em caçar o maior dos mamutes gritando determinado: "eu vou realizar o meu sonho! Eu vou realizar o meu sonho!", tornando-se tão icônico naquela tribo que a palavra deles para sonho (significados 1 e 11 do Houaiss), que ninguém nunca saberá qual era, adquiriu a polissemia dezenas de milênios antes dos linguistas conceberem o conceito de polissemia, passando assim a significar também sonho (significado 5).
Mesmo que seja um mistério, é imensamente divertido imaginar que palavra seria aquela que pôde, ao longo do tempo, transformar-se em formas tão diversas quanto somnium, traum, rêve e yume. Mesmo com as transformações do idioma, há algo que a humanidade, em suas diversas culturas, civilizações e idiomas, carrega consigo desde o tempo remoto em que a linhagem de todas as pessoas e todas as línguas converge numa pequena tribo perdida que falava um idioma perdido: o sonho.