Apreciação do texto "Cancer across the tree of life"
http://rstb.royalsocietypublishing.org/content/370/1673/20140219
Seguem algumas ideias que tive depois de ler o artigo acima, parte de uma disciplina que estou cursando este semestre... espero que gostem, e discutam o que acharam dele. (concordam, discordam, tanto faz, etc... hehehehe)
-------------------------------------------------------------------
O texto apresenta abordagens bem originais a respeito do câncer, o que explica a grande repercussão que teve, e o grande número de citações em estudos posteriores relacionados ao tema! A ideia que considerei a principal diz respeito à multicelularidade, e aos mecanismos desenvolvidos ao longo do processo evolutivo para preservar as características básicas desta multicelularidade. O desenvolvimento de seres multicelulares realmente é vantajoso em termos evolutivos? Há meios de medir este sucesso? Uma comprovação de que ser multicelular realmente é mais vantajoso do que ser unicelular?
Se pensarmos em termos de quantidade total de células vivas, a multicelularidade não parece vantajosa. Atualmente a quantidade de células total de seres unicelulares é muito maior que a soma total de todas as células dos organismos de seres multicelulares existentes hoje no planeta. Se observarmos o problema do ponto de vista de quantidade de células, concluiremos que a vida unicelular é muito mais vantajosa, e a vida multicelular talvez seja uma curiosa mutação que demora muito a desaparecer, mas que não será, no final das contas a que irá sobreviver. Considerar a vida multicelular como superior e vitoriosa seria então mais uma manifestação de chauvinismo biológico, a presunção de que o desenvolvimento de nossa própria espécie representa o melhor da evolução biológica, e as espécies que seguiram caminhos diferentes são inferiores.
Por outro lado, seres multicelulares conseguiram ocupar nichos ecológicos que dificilmente seriam conquistados pela vida unicelular. A atmosfera, por exemplo, conquistada pelos seres multicelulares representados principalmente pelos insetos e pelas aves. Pensando em termos de espaços conquistados, seres multicelulares realmente possuem uma maior complexidade comportamental necessária para ocupar nichos que seriam impensáveis para a vida unicelular. Pensando em nós próprios, atingiu-se uma complexidade suficiente inclusive para deixar o próprio planeta de origem e se espalhar para outros corpos, cruzando vácuos interplanetários e mesmo interestelares que (ao menos pelo que se sabe com certeza até hoje) seria uma tarefa impossível para seres unicelulares. Bem, mas aqui já entramos no campo de ficção científica, que precisamos evitar numa avaliação mais científica, com os pés no chão.
Fica evidente no texto que a multicelularidade representa uma vantagem em relação à unicelularidade, e que os organismos multicelulares evoluíram no sentido de preservar e fortalecer tal estrutura. Os autores tentam então identificar quais seriam as bases mais importantes para preservação da multicelularidade, e concluem existirem cinco fundamentos básicos:
1) controle da proliferação celular: não é mais importante aqui se reproduzir o máximo que conseguir (que era importante para seres unicelulares), mas apenas o suficiente para os propósitos do organismo multicelular
2) morte celular programada: o organismo é mais importante que o "indivíduo", então não é estranho pensar que células específicas sigam, em certos estágios, uma programação genética de "suicídio", se sua eliminação representar vantagem para o funcionamento do organismo como um todo
3) divisão de tarefas: as células se especializam para exercer funções específicas, importantes para o organismo, sem prejuízo de outras funções celulares importantes para sua sobrevivência, que serão supridas por outras células especializadas do organismo que responderão pelas funções vitais que estas desativaram, e que se especializaram desativando funções vitais que são supridas por estas
4) alocação de recursos: as células consomem os recursos produzidos pelo organismo, mediante divisão de tarefas, na medida de suas necessidades, sem monopolizá-los em prejuízo de outras células com especializações e, possivelmente, necessidades diferentes em função de suas especializações
5) manutenção do meio extracelular: mesmo especializadas, as células funcionam no sentido de manter a homeostase do meio extracelular, agindo no sentido de reestabelecer um desvio neste equilíbrio (se sua especialização permitir fazê-lo) ou sinalizando sua ocorrência para células com tal capacidade tomarem providências
Mas o processo de duplicação do código genético está sujeito a erros no processo de cópia. Estes erros podem ser benéficos (a propósito, o próprio processo evolutivo nunca seria possível se estes erros, ou "mutações", nunca ocorressem!) ou prejudiciais. Entre os erros prejudiciais estão os fatais, que impedem definitivamente a possibilidade de sobrevivência do mutante, e os que permitem que ele comece a existir e "viver", ou seja, metabolizar nutrientes obtidos do ambiente no sentido de tentar preservar sua entropia interna no sentido inverso do processo termodinâmico, seguido passivamente por todos os objetos e sistemas inanimados. Se o organismo "aprende" a detectar células defeituosas danosas e a eliminá-las ou apenas neutralizá-las, ele vive mais, se reproduz mais e transmite esta capacidade benéfica aos seus descendentes. Se não consegue, morre precocemente e não consegue propagar muito esta característica "ruim". É o bom e velho processo de seleção natural em funcionamento.
No artigo fica clara a visão de que o câncer surge quando, por mutação, certas células tentam "trapacear" os mecanismos de cooperação adquiridos pela espécie ao longo de seu processo evolutivo. Minha visão pessoal é de que tais mutações fazem as células, de certa forma "pensar" do ponto de vista unicelular, se comportando de forma a preservar sua própria existência em detrimento do coletivo, do organismo do qual ela originalmente se formou. Esta "trapaça" das células mutantes pode aparecer (não de forma exclusiva, duas ou mais delas podem surgir simultaneamente) em cada uma das cinco bases da cooperação multicelular citadas anteriormente:
1) proliferação descontrolada: é a forma mais conhecida de câncer, bem caracterizada pelo desenvolvimento de tumores. Nesta "trapaça", as células perdem a capacidade de detectar a inibição de divisão celular do tecido, e se reproduzem de forma descontrolada
2) sobrevivência indesejada: a célula desrespeita as instruções de morte programada interna e sinalizadas pelas vizinhas, e tenta se tornar "imortal"
3) diferenciação desregulada: células desrespeitam as instruções de diferenciação adequadas ao local onde elas estão sendo formadas, por exemplo, células epiteliais se diferenciando dentro do organismo, entre órgãos internos, onde elas não têm função alguma e podem até atrapalhar o funcionamento correto de suas vizinhas
4) monopolização de recursos: células tentam consumir mais energia do que necessitam, ou emitir sinalização de vascularização excessiva para elas próprias, o que certamente vai prejudicar aquelas outras próximas que se comportam adequadamente
5) degradação do ambiente extracelular: a célula expele mais resíduos metabólicos (lixo) do que o organismo é capaz de tratar, e/ou não sinaliza corretamente que isto está ocorrendo, o que prejudica elas próprias e as células saudáveis de seu entorno
Uma observação muito interessante destacada no artigo diz respeito ao Paradoxo de Peto: sendo o câncer resultado de replicações incorretas das células, era de se esperar que organismos maiores (portanto com mais células) estivesses estatisticamente mais sujeitos a desenvolverem câncer que organismos menores. Porém não é o que se observa na prática... Como explicar este aparente paradoxo? Uma ideia promissora é que tais organismos desenvolveram, ao longo de suas evoluções, mecanismos mais eficientes para detectar as tais "mutações trapaceiras" e eliminá-las, limitar sua capacidade de causar danos. Parece então uma boa ideia estudá-los para desenvolver formas eficientes de combater o câncer em nossa própria espécie. Eu concordo que é mesmo uma boa abordagem nós, ao invés de quebrarmos a cabeça tentando resolver um problema complexo, "trapacearmos" um pouco (isto não nos desmerece, pois a doença que tentamos combater também faz isto) e folearmos o final do livro, dar uma olhadinha na parte dos "problemas resolvidos". Os seres gigantes (elefantes, baleias) já resolveram alguns destes problemas que tentamos resolver, não há mal algum em estudar como fizeram isto para ajudar a resolver nossos próprios problemas.
Para finalizar, me surpreendi com a possibilidade de que certos tipos de células cancerosas cooperam entre elas no sentido de sobreviverem contra as tentativas de eliminação do organismo no qual surgiram. Bom, os mecanismos de cooperação original do organismo, ou parte deles não afetadas pela mutação, também estão codificados nas células cancerosas, portanto poderíamos esperar que elas os utilizassem em algum momento para preservarem a própria existência. Isto não culminaria (num enorme voo de imaginação, lógico) no próprio processo de reprodução dos organismos multicelulares? Pensando friamente no processo, trata-se de uma célula "mutante" (formada pela combinação sexuada de dois genomas distintos) que começa a se desenvolver num organismo de código genético distindo do dele. Tal célula começa a se reproduzir descontroladamente, monopoliza recursos dos quais necessita para crescer, até finalmente acabar sendo "expelido" do organismo gerador. Existiriam alguns tipos de câncer que se aproveitariam deste processo já programado nos DNAs multicelulares para se desenvolverem?
Há uma sugestão no texto que alguns tipos de cânceres levam tão longe a cooperação entre suas células que acabam desenvolvendo mecanismos de "reprodução", criando, por assim dizer, células cancerosas germinativas lançadas no sistema circulatório do organismo para se desenvolverem em outras partes do corpo. Isto dá o que pensar... Imaginemos uma mutação cancerosa capaz de lançar tais células germinativas não no próprio organismo, mas em outros organismos da mesma espécie, cruzando os limites ambientais. Seria uma nova espécie parasita dependente de organismos vivos para se desenvolver, crescer, e se reproduzir? Chegaria um ponto em que eles poderiam se separar do organismo hospedeiro, se tornar complexos o bastante para terem vida independente, mas ainda depender de outros hospedeiros da espécie original pra se reproduzir, perpetuar sua espécie? Felizmente não temos (ou não conhecemos ainda) nenhum exemplo deste cenário tenebroso acontecendo. Mas seria um bom argumento para contos de ficção científica, voltados para histórias de terror, não concordam?
Atualmente os estudos sobre o câncer se concentram nos seus aspectos disfuncionais demográficos (excesso de células decorrentes de proliferação descontrolada e morte programada desrespeitada), e negligenciam os aspectos econômicos (falhas de diferenciação, monopolização de recursos e degradação do ambiente extracelular). Deste segundo grupo, o mais tratado é a monopolização de recursos, através de drogas que inibem a vascularização excessiva coordenada pelas células cancerosas. Infelizmente elas não diferenciam células cancerosas das saudáveis, e estas últimas são prejudicadas por seus sinais genuínos de vascularização serem ignorados também. Um dos maiores problemas atuais no tratamento do câncer é desenvolver formas de atacar especificamente as células cancerosas sem afetar as células saudáveis. Como diferenciar de forma eficiente umas das outras?
No geral, foi uma leitura bem interessante! Apresentou muitos tópicos interessantes que não conhecia, e apresentou ideias que deram origem a muitas outras derivadas dela. Justifica totalmente a repercussão que teve, e apresenta abordagens diferentes para tratamento do câncer cuja importância não era tão evidente antes.