A maravilhosa evolução da complexidade celular.

1-Introdução:

Para qualquer um que as estude, as células humanas e de outras criaturas superiores como animais, plantas, fungos ou até mesmo protozoários (ou seja, todas as células eucariotas) são verdadeiras maravilhas de complexidade. Seu crescimento, funcionamento e reprodução dependem de intrincadas correlações de uma enorme quantidade de reações químicas entre milhares de substâncias, cuidadosamente sincronizadas, muitas delas realizadas dentro de diversas sub-estruturas (chamadas organelas) específicas como o núcleo, as mitocôndrias, os cloroplastos e diversas outras, que efetuam as diferentes tarefas necessárias para a manutenção da vida celular. Observando estas células, realmente complexas como cidades, funcionando, crescendo e se dividindo, é natural que se pergunte: Como tão incrível máquina molecular pôde surgir na natureza?

2- Quão complexa tem que ser uma célula?

Bem, a história na verdade começa, como é bastante usual, a partir de um princípio bem mais modesto. As super complexas células eucarióticas não representam tudo o que existe em termos de estrutura celular. A realidade é que, no mundo natural, para cada célula de cada organismo complexo existente podem ser contadas miríades de outras células de organismos microscópicos muito mais simples (procariotas), que se dividem em dois grandes grupos separados por algumas diferenças bioquímicas: As bactérias e as arqueias. As células destes pequenos organismos nem mesmo se aproximam do nível de complexidade encontrado nas células dos eucariontes, consistindo basicamente de uma membrana lipídica, de um citoplasma onde as substâncias ficam dissolvidas e de uma pequena cadeia de DNA que controla sua atividade metabólica. Não existem as complexas subdivisões e organelas presentes nas células mais complexas, e a quantidade de reações químicas necessárias para que as espécies mais simples de procariotas cresçam e se multipliquem pode ser surpreendentemente pequena.

A mais simples bactéria conhecida hoje capaz de produzir sozinha todas as substâncias de que necessita para sobreviver é a Mycoplasma Genitalium, cujo DNA contém cerca de 525 genes, codificando somente 482 proteínas. Se compararmos isso com os cerca de 21.000 genes de uma célula humana, que codificam umas 50 mil proteínas, percebemos que a diferença em complexidade equivaleria a que existe entre uma grande metrópole com 10 milhões de habitantes e apenas um de seus bairros com cerca de 240 mil moradores (para referência, o bairro de Campo Grande no Rio de Janeiro tem 350 mil moradores). Mas já se sabe que uma boa parte dos genes do Mycoplasma é redundante, e calcula-se que apenas em torno de 380 seriam realmente imprescindíveis. Além disso, são conhecidas bactérias e arqueias que vivem como parasitas dentro de outros organismos, utilizando parte das substâncias produzidas por estes, e que possuem genomas ainda menores. O recorde atual de genoma mais simples pertence à protobactéria Nasuia deltocephalinicola, uma simbionte de pulgões de plantas que possui tão somente 137 genes codificantes de proteínas. Seu metabolismo depende de apenas umas poucas centenas de reações químicas ao invés de dezenas de milhares. Comparada com a grande cidade que seria uma célula humana, este pequeno organismo seria equivalente a apenas alguns quarteirões.

3- E de onde teria vindo isso?

Uma descoberta bastante interessante feita em 1952 (na experiência de Urey-Miller) é que todas as classes de substâncias existentes nestes organismos extremamente simples, como aminoácidos, lipídios, açúcares e mesmo bases nitrogenadas de DNA, são produzidas naturalmente através de reações químicas entre moléculas inorgânicas simples como água, amônia, gás carbônico e metano, quando submetidos a descargas elétricas, raios ultravioleta e outras fontes de energia. E estas substâncias também tendem a se combinar formando proteinóides (moléculas similares a proteínas, mas de origem não biológica), membranas lipídicas e até cadeias de nucleotídeos em tudo similares a segmentos de DNA e RNA. Nas condições ambientais corretas (como em planetas primitivos, com atmosferas que não contém oxigênio livre) tudo isso tende a se acumular em grande quantidade, formando a chamada “sopa pré-biótica”. Ainda não se sabe exatamente quais os mecanismos que podem ter levado ao aumento da complexidade necessário para se passar destas complexas moléculas orgânicas não-biológicas às formas de vida mais primitivas (provavelmente ainda mais primitivas do que a Nasuia deltocephalinicola), que passariam então a se alimentar dos componentes da sopa pré-biótica, a se reproduzir e a evoluir. Mas evidentemente é muito mais razoável conceber a possibilidade deste passo ocorrer do que a formação de uma ultra-complexa célula humana a partir do nada.

Os registros geológicos mostram a existência de comunidades já relativamente complexas de microorganismos formando estruturas minerais chamadas estromatólitos 3,5 bilhões de anos atrás, cerca de 1 bilhão de anos após a formação de nosso planeta. Formas ainda mais primitivas, chamadas quimiotróficos (este tipo de organismo existe até hoje), muito provavelmente existiram ainda antes disso. Portanto, as primitivas bactérias e arqueias (ou mesmo organismos ainda mais simples) surgidos lá atrás, a partir da sopa pré-biótica, tiveram pelo menos entre 3,5 e 4 bilhões de anos para evoluir, um intervalo de tempo mais de 50 vezes superior àquele entre o fim dos dinossauros e o surgimento do Homo Sapiens. É evidente que em tanto tempo assim os microorganismos mais primitivos poderiam evoluir para formas muito mais complexas, tendo sido inclusive impulsionados por diversas mudanças ambientais importantes ao longo do caminho, como o desaparecimento da sopa pré-biótica (consumida pelos próprios microorganismos a que deu origem) e o surgimento do oxigênio livre na atmosfera (também causado pelo surgimento dos microorganismos fotossintetizantes). Ao longo dos bilhões de anos eles puderam aos poucos ir desenvolvendo estruturas bastante sofisticadas como flagelos, capacidade de fotossíntese, detectores de luminosidade e etc..., aumentando sua complexidade até o nível que podemos observar nos mais avançados procariontes atuais. Por isso podem hoje ser encontradas bactérias muito mais complexas, como a muito comum Escherichia Coli que vive em nossos intestinos e possui mais de 4 mil genes, ou a Nostoc Punctiforme, uma bactéria fotossintetizante que contém mais de 9 mil, ambas codificando vários milhares de proteínas.

4- E as células realmente muito complexas dos eucariontes?

Contudo, a distância em termos de complexidade entre mesmo estas bactérias mais sofisticadas e as células eucarióticas ainda é muito grande, não apenas em quantidade de genes mas na própria forma como as células são estruturadas internamente. Será que os processos “normais” da evolução que incluem mutação, variação aleatória, e seleção natural seriam suficientes para produzir este grande aumento do nível de complexidade? Talvez sim, afinal 3,5 bilhões de anos é mesmo um tempo enorme. Mas hoje se sabe que uma forma diferente de processo evolutivo esteve envolvida nesta transição.

Por muito tempo os cientistas desconfiaram que pelo menos algumas das organelas das células eucariotas, como as mitocôndrias e os cloroplastos, poderiam ter origem em antigas bactérias ou arqueias que teriam penetrado ou sido absorvidas por organismos maiores e se tornado simbiontes, perdendo com o tempo parte (mas não a totalidade) do seu DNA e tornando-se organelas importantes para a própria sobrevivência da célula hospedeira. Esta hipótese foi confirmada de forma espetacular em 1966 pelo microbiologista Kwang Jeon, que percebeu primeiramente uma infecção de bactérias nas culturas de amebas que estudava. Inicialmente a grande maioria das amebas foi morta pelas bactérias infectantes, mas alguns meses depois as descendentes das poucas sobreviventes estavam crescendo e se reproduzindo normalmente, embora para surpresa do cientista as bactérias ainda pudessem ser vistas em seu interior. Kwang ficou ainda mais surpreso quando utilizou antibióticos para matar as bactérias, e descobriu que suas amebas agora morriam também. Ele descobriu que as bactérias produziam uma proteína que era fundamental para que suas novas amebas evoluídas pudessem por sua vez sobreviver. De parasitas perigosas as bactérias haviam-se tornado simbiontes (mais especificamente, endosimbiontes) das amebas, que não mais podiam prescindir delas. Um novo processo evolutivo que já havia sido imaginado, porém jamais pudera ser demonstrado, tinha sido observado ocorrer em tempo real!

Pesquisas posteriores mostraram que este tipo de evento era na verdade bastante comum na natureza, ocorrendo em diversos outros casos registrados. E como a duplicação total do patrimônio genético dos microorganismos parasitas é um processo que consome energia e recursos, com o tempo os novos endosimbiontes perdem, pelos processos evolutivos mais tradicionais, muitos dos genes necessários para a produção das proteínas e enzimas de que necessitam mas que seus novos hospedeiros já produzem. Este processo de redução do genoma foi o responsável pela pequeníssima quantidade de genes da Nasuia deltocephalinicola e de muitas outras bactérias e arquéias endosimbiontes de organismos maiores já descobertas até hoje. Inclusive já se sabe que processos comuns de transferência de genes entre bactérias transmitem as informações genéticas do DNA dos simbiontes para o DNA dos hospedeiros. E foi assim que as mitocôndrias e cloroplastos das células eucariotas perderam quase todo o seu DNA e se tornaram as organelas que conhecemos hoje, as quais caracterizam as células mais complexas.

E este não é o único exemplo de combinação de células de diferentes microorganismos para a formação de células mais sofisticadas. No intestino dos humildes cupins vive uma complexa comunidade de criaturas, inclusive protozoários, que os auxiliam na digestão da madeira que eles ingerem. Estes protozoários, como o Trichonympha e o Mixotricha Paradoxa, possuem não apenas um mas diversos tipos diferentes de bactérias simbióticas, algumas em seu interior produzindo enzimas para ajudar na digestão de celulose, outras aderidas à sua membrana celular (ectoparasitas) e ajudando-os a nadar com o auxílio de seus cílios, e outras ainda substituindo suas mitocôndrias, que estes protozoários não possuem mais. Combinando características de protozoários flagelados e simbiontes que lhes conferem uma capacidade de deslocamento similar à dos ciliados, estes seres microscópicos representam o surgimento de toda uma nova classe de protozoários (nenhuma outra classe de protozoários combina ao mesmo tempo flagelos e cílios). O Mixotricha Paradoxa especificamente teve identificado em seu interior cinco diferentes genomas, um seu original e outros absorvidos de seus simbiontes. Isso consiste no primeiro passo para a formação do cromossomo de múltiplos braços dos eucariotas (em oposição aos muito mais simples e circular genoma dos procariotas).

Ou seja, a formação das complexas e impressionantes células eucarióticas, inclusive as que compõem o corpo humano, se deu pela combinação de diferentes células procarióticas muito menos sofisticadas, evoluídas à partir de células extremamente simples que surgiram e se alimentaram da matéria orgânica abiótica existente na sopa orgânica primordial.

5- A origem dos organismos multicelulares:

Por último, resta ainda uma questão: Podem os organismos unicelulares complexos atuais, evoluídos através dos processos naturais descritos nos parágrafos anteriores a partir do primeiro e muito mais simples ancestral surgido da sopa pré-biótica, se reunir e formar os corpos multicelulares complexos dos organismos superiores que depois evoluiriam até o surgimento do homem? Bem, novamente, existem exemplos na natureza exatamente disso.

Já são conhecidas há muito tempo as colônias de algas verdes chamadas Volvox, que representam colônias microscópicas compostas por até 50 mil células semelhantes a algas flageladas do gênero Clamidomonas, que se organizam na forma de esferas ocas. Estas colônias não apresentam tecidos, órgãos ou mesmo epiderme, mas possuem tanto células somáticas (que formam o corpo, mas não participam da reprodução) quanto germinativas (que são responsáveis pela reprodução), uma etapa importante da especialização típica dos organismos multicelulares. Colônias de coanoflagelados também são conhecidas, compostas por protozozoários que apresentam grande similaridade genética e bioquímica com os animais. Inclusive, células muito semelhantes aos coanoflagelados compõem a parte principal do sistema digestivo de todas as esponjas, os mais simples entre os animais multicelulares. A reprodução dos coanoflagelados ainda é envolta em mistérios, mas seu DNA apresenta instruções típicas da reprodução sexuada encontrada em organismos multicelulares. São também bastante conhecidos os organismos chamados Mixomicetos, compostos por células que podem tanto viver isoladas (como amebas de vida livre) quanto se unir para formar um único organismo multinucleado (neste caso as paredes entre as células desaparecem após a fusão) capaz de se comportar como um único animal, e se reproduzir como um cogumelo.

Mais recentemente, uma experiência realizada pelo pesquisador William Ratcliff e seus colegas da Universidade de Minessota permitiu observar o desenvolvimento da multicelularidade dentro de uma cultura de leveduras. Selecionando através de centrifugação as linhagens de células que apresentavam maior tendência à sedimentação, foi possível observar não apenas a formação de colônias de leveduras onde as células permaneciam aderidas umas às outras (formando, portanto, estruturas de peso maior) como também a especialização destas células para diferentes tarefas, com algumas delas cometendo “suicídio celular” (apoptose) de forma a facilitar a reprodução da colônia por um processo similar à gemiparidade, uma característica que aumenta a taxa reprodutiva e é portanto altamente adaptativa. Novamente, o primeiro passo para a verdadeira multicelularidade.

Portanto a passagem dos organismos unicelulares para os multicelulares também pode ser observada tanto na natureza quanto em laboratório, mostrando que os processos naturais envolvidos não apresentam nenhum mistério transcendente, dependendo apenas da bioquímia da vida e dos processos evolutivos conhecidos.

6- Conclusão:

Vimos, portanto, que com exceção de um único ponto ainda sendo pesquisado (o surgimento do primeiro ser vivo mais simples), já foi desvendada toda a cadeia evolutiva desde a síntese de matéria orgânica sem a interferência de formas de vida previamente existentes até o surgimento dos organismos multicelulares mais primitivos, os quais depois dariam origem à todo o desfile de formas de vida cada vez mais sofisticadas encontrável no registro fóssil, passando por todo o aumento da complexidade celular como conhecida nos dias de hoje. Tudo perfeitamente observável na natureza e em grande parte reprodutível em laboratório. E tudo compreendido e explicado pelo conhecimento científico atual.

E este é o fato mais surpreendente e extraordinário de todos. A natureza trabalha não de formas misteriosas e inexplicáveis, inacessíveis ao intelecto humano, mas de acordo com regras bem estabelecidas e que os cientistas são cada vez mais capazes de descrever. Apesar de imensas dificuldades, que podem parecer intransponíveis, a mente humana é capaz de apreender o funcionamento do cosmos. Como disse certa vez Einstein: “O grande mistério do mundo é a sua compreensibilidade”.

P.S.: Todos os nomes dos organismos e cientistas citados no texto podem ser facilmente encontrados em pesquisas na internet, onde se podem descobrir todos os detalhes de cada caso. Não é necessária nenhuma fé, apenas paciência para pesquisar. Mas fica um alerta: A maioria dos sites mais completos e interessantes sobre estes assuntos estará na língua inglesa, o que pode ser um obstáculo para os interessados que não dominarem este idioma.

Leandro G Card
Enviado por Leandro G Card em 21/02/2016
Reeditado em 30/03/2016
Código do texto: T5550873
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