Resposta ao artigo “Partes inúteis do Corpo Humano?”.

- Escrito em resposta ao artigo "Partes inúteis do corpo humano" publicado por Nilson FS, aqui no recanto das letras - seção Artigos>Ciência e Tecnologia.

As recorrentes tentativas de justificar o injustificável para dar sentido a uma interpretação literal de um pequeno trecho da Bíblia não se sustém à luz dos fatos observáveis. Mas elas não são apenas apresentações inocentes de pontos de vista divergentes, são tentativas deliberadas de convencer os menos atentos a abandonar o racionalismo em função de visões religiosas fundamentalistas que tem causado terríveis males à sociedade e à própria civilização, mesmo nos dias atuais. Portanto, precisam ser desmentidas sempre que aparecerem para evitar que iniciem uma estrada que no seu limite leva a coisas realmente terríveis, como a perseguição das minorias e as guerras religiosas.

Vamos então tratar de cada uma das alegações do artigo “Partes inúteis do Corpo Humano” e verificar até que ponto elas se baseiam na realidade dos fatos observados. Senão vejamos:

1) Apêndice: O índice de pessoas acometidas por apendicite é de 1/500, cerca de uma ordem de grandeza superior ao dos mais disseminados tipos de câncer. Ou seja, o órgão que ajudaria a prevenir uma doença matava mais do que a própria doença antes do desenvolvimento das modernas técnicas cirúrgicas (pelos malvados cientistas descrentes que desdenharam do respeito aos corpos dos falecidos, templos invioláveis de Deus para os crentes da época). Nos 200 mil anos em que a espécie humana existe (ou nos 6 mil, se acreditarmos literalmente no Gênesis), a apendicite matou muito mais gente do que o câncer. E que o apêndice está localizado em um ponto que facilita seu contato com micro-organismos do intestino e por isso acaba acumulando linfócitos é evidente, por isso ele se inflama e mata com frequência maior que qualquer doença que poderia ajudar a evitar. E tudo isso vale também para as amígdalas. Se isso foi projetado, fica difícil imaginar um projetista mais incompetente.

2) Cóccix: Os músculos que se prendem ao cóccix se fixam na base dele, e não na ponta, que não precisaria existir. Na verdade poderiam também se ligar diretamente à bacia se o cóccix jamais tivesse existido. Por outro lado, a presença dele torna os seres humanos sujeitos a dolorosos acidentes e à cocciodinea, uma doença muito dolorosa e debilitante que também não tinha tratamento efetivo até a invenção das drogas mais recentes. Outro projeto mal feito.

3) Pêlos no corpo: Os pêlos até possuem uma utilidade, mas que não tem nada a ver com proteção fisiológica de nada (as quantidades são insuficientes para isso) nem com bactérias, pois existem muitíssimo mais bactérias na própria pele e até dentro de nossos corpos do que em nossos pelos e cabelos. Envolver as pobres bactérias no assunto não passa de uma cortina de fumaça para justificar o injustificável. A função dos pelos corporais é basicamente social, como caracter sexual secundário mostrando a maturidade reprodutiva dos indivíduos. Mas isso era útil apenas nas comunidades de humanoides mais primitivos, antes que a evolução da consciência permitisse perceber o significado da primeira menstruação. No Homo Sapiens, principalmente o civilizado, eles não tem mesmo nenhuma função importante para a espécie, embora sejam muito úteis para ocultar e proteger parasitas que não causam apenas incômodos mas transmitem doenças muito sérias. Teriam então nossos pelos sido projetados para favorecer as pulgas, os piolhos e os chatos?

4) Se é a ciência que diz que não sabe alguma coisa (como por exemplo o mecanismo natural que deu origem à primeira célula viva) é logo taxada de errada e falsa. Mas os criacionistas vivem dizendo abertamente que não sabem explicar coisa alguma, e deixam por isso mesmo, em um caso clássico de dois pesos e duas medidas. Então tá então, fazer o quê, vamos em frente.

Na verdade os mamilos masculinos existem apenas porque o mecanismo genético de sua formação está em genes cuja expressão não é afetada por fatores sexuais, fazendo com que eles surjam também nos machos dos mamíferos. Só que isso causa problemas seríssimos, como o câncer mamário que sim, afeta também os homens, embora em escala bem menor que nas mulheres. E entre animais a coisa é ainda pior, o câncer mamário é o segundo mais comum a afetar cães machos (é o primeiro nas fêmeas) e o terceiro em gatos machos, espécie onde tende a ser muito agressivo e levar à morte na maioria dos casos. Eles não são apenas inúteis, mas altamente prejudiciais. Uma falha realmente lamentável de projeto.

5) Dentes de ciso: Eles surgem tarde, geralmente no início da fase adulta, e se realmente fizessem falta os mais jovens sempre teriam problemas de mastigação, o que não acontece. Na verdade em algumas pessoas eles jamais se desenvolvem, e em outras não chegam a aflorar, permanecendo ocultos debaixo das gengivas. E estas pessoas também não relatam problema algum de mastigação. Mas em muitos casos ao começarem a surgir em mandíbulas já plenamente desenvolvidas e calcificadas eles causam uma série de transtornos, que vão de fortes dores de dente e ferimentos gengivais que tendem a infeccionar se a higiene bucal não for adequada (o que era comum antes da invenção das escovas e pasta de dentes) à pericoronite. Mais um projeto falho, que além de inútil causa problemas.

E estes não são nem de longe os únicos defeitos e inutilidades existentes na anatomia humana, diversos outros são conhecidos. Os exemplos abaixo apresentam alguns, mas esta não é de forma alguma uma lista exaustiva:

6) Fóvea: A fóvea faz parte da camada interna dos olhos dos animais que capta a luz. Mas devido ao fato da ligação do nervo óptico ao olho se dar em uma camada anterior à fóvea, acaba sendo criado um ponto cego, onde a fóvea é bloqueada pela inserção do nervo. As pessoas não se dão conta disso porque o cérebro ajusta seu processamento para compensar a falha, escondendo da consciência esta região cega, mas ela existe e atrapalha a percepção de objetos, principalmente os distantes que recaiam naquela região. Mas nossos olhos não precisavam ser assim. Os moluscos cefalópodes tem a inserção do nervo ótico se dando atrás da fóvea, e não à frente como no nosso caso, e assim sua visão não possui um ponto cego. Se isso foi projetado, então o projetista decidiu deliberadamente conceder aos primitivos polvos e lulas uma visão melhor do que a dada para nós, o suposto ápice de sua criação.

7) Músculos auriculares: Eram usados por nossos ancestrais para a movimentação das orelhas, com vistas a melhorar a captação de sons vindo de diferentes direções. Mas os ancestrais do homem perderam a capacidade de movimentar livremente as orelhas há muito tempo, e na maioria absoluta das pessoas o cérebro sequer possui a capacidade de comandar estes músculos, embora eles ainda estejam lá inutilmente e por vezes se inflamem, causando problemas. Projeto mal feito.

8) Músculos eretores dos pelos: Os pelos humanos já não tem utilidade além de abrigar parasitas, mas mesmo assim ainda mantêm seus músculos eretores, que eram importantes nos nossos ancestrais mais primitivos cobertos por densa pelagem por permitir que eles se eriçassem para aumentar a proteção contra o frio ou para ampliar a percepção visual do tamanho (usada em disputas com outros animais e para espantar possíveis predadores). Não temos pelos suficientes para nenhuma das duas coisas, mas como não sofrem pressão evolutiva os músculos continuam lá, novamente de forma inútil. No mínimo um projeto desleixado.

9) Músculo plantar: Acionava a curvatura do pé quando nossos ancestrais os usavam para subir nas árvores onde viviam. Hoje é apenas vestigial, e tão inútil que os cirurgiões o retiram quanto precisam fazer implantes musculares em outras partes do corpo sem que sua remoção seja sequer perceptível pelos pacientes. Se foi um projeto tinha como objetivo seu uso apenas pelos cirurgiões que o utilizariam durante o curtíssimo período da história humana entre o desenvolvimento dos enxertos musculares e a produção de músculos em laboratório por engenharia genética ou à partir de células tronco, tecnologias já em desenvolvimento. Em 200 mil (ou 6 mil) anos de história humana, talvez seja útil por uns 100 ou 120 anos. Isso se não considerarmos que caso o músculo plantar não existisse os cirurgiões poderiam usar outros músculos do corpo, que tem a capacidade de se regenerar. O músculo plantar não se constitui sequer numa necessidade de projeto, nem mesmo para este período tão curto, é no máximo temporariamente conveniente.

10) Ossículos dos pés e tornozelo: A estrutura dos pés e tornozelos humanos é uma adaptação imperfeita para permitir a postura ereta à partir das patas altamente móveis dos nossos ancestrais escaladores de árvores. Mas o resultado foi uma construção complexa e frágil, que não suporta pressões excessivas e é facilmente danificada durante corridas e saltos. Torcer o tornozelo é uma especialidade humana, que não é comum em outras linhagens de animais bípedes cuja evolução para a postura ereta é mais antiga, como os dinossauros e suas descendentes, as aves. Mais uma vez, o projetista teria reservado seus melhores projetos para outros e não para sua criação máxima.

E nem falamos dos diversos mecanismos moleculares que codificam proteínas e outras substâncias que nosso corpo não usa mais ou que são até mesmo prejudiciais (já ouviram falar de radicais livres?), da falta de metabólicos essenciais (porque não produzimos a vitamina C como fazem diversos outros animais? – nosso corpo até começa o processo, mas o gene que comanda o passo final é falho) ou na enorme quantidade de material genético antigo e não mais funcional que nossas células carregam para nada, e que tem como principal efeito complicar o processo de divisão celular e sofrer ou provocar mutações que acabam levando a doenças como o câncer.

Como vimos acima, o corpo humano possui sim não apenas um ou dois mas diversos defeitos de projeto e inutilidades de concepção, muitos dos quais com efeitos deletérios graves e até mesmo fatais. Portanto, usar o argumento da “perfeição” do corpo humano como prova de um projeto inteligente simplesmente não se sustenta em fatos observáveis, mas apenas em uma fé cega que se fecha à realidade e cria um mundo de fantasia que pode acabar se tornando a base para perigosas perversões da religiosidade.

Ah, mas existem cientistas que acreditam no relato bíblico da criação: Sim, existem, afinal a fé é uma opção individual e cada um acredita no que quiser. E a crença pessoal não é um critério para aprovação ou reprovação em cursos universitários de graduação e pós. Mas isso não nos diz nada sobre a veracidade da criação conforme descrita na Bíblia (segundo algumas interpretação, nem todas, é bom isso ficar bem claro), não passa de um apelo vazio à autoridade. E o que mais impressiona é justamente que a quantidade de cientistas que acreditam na narrativa fundamentalista da criação possa ser sequer listada, já que a quantidade dos que não acredita não o pode, devido à ser demasiado grande. E na verdade a lista dos RELIGIOSOS que aceitam a teoria da evolução é muito maior que a de cientistas que não a aceitam, começando pelos próprios cinco últimos papas que deram declarações públicas específicas sobre o assunto.

Então, se é pelo simples número de autoridades crentes em cada conceito que o caso dever ser julgado, a teoria da evolução ganha de lavada, já que seguindo a orientação dos próprios papas todos os padres católicos já começam do lado da evolução. Isso para não mencionar que atualmente a grande maioria das religiões cristãs concorda com os evolucionistas, como é o caso dos anglicanos, luteranos e muitas outras cujos teólogos também aceitam a evolução sem muitos problemas. Apenas as vertentes neo-pentecostais de origem norte-americana é que a rejeitam de forma categórica.

Porquê eles insistem nisso e ainda se esforçam tanto para convencer as pessoas leigas em geral? Bem, esta é uma pergunta para a qual não sei a resposta.

Leandro G Card
Enviado por Leandro G Card em 10/02/2016
Reeditado em 28/07/2017
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