Diálogo – David Bohm e F. David Peat
Publicado em 30/09/2014 por estudosdects
Este diálogo entre os físicos David Bohm e F. David Peat foi escrito como introdução ao livro “Science, Order and Creativity” (Bantam Books, 1987), gentilmente cedido por F. David Peat para tradução ao português e publicação na Revista Carbono.
Esta publicação nasceu de uma série de diálogos que travamos ao longo dos últimos 15 anos. Parece apropriado, portanto, que nesta introdução seja dada ao leitor uma ideia sobre a gênese do nosso livro, os pensamentos e as questões que nos levaram a escrevê-lo. A forma de diálogo é a que melhor dá conta desse processo, que naturalmente envolve origens, sentimentos e atitudes de cada um. A propósito, o diálogo que se segue poderia muito bem ter se desenrolado durante uma de nossas caminhadas à tarde, na época em que escrevíamos o livro.
David Bohm: Penso que seria uma boa ideia começarmos falando da própria publicação. O que levou você a sugerir que deveríamos escrever um livro juntos?
David Peat: Uma pergunta como essa me leva de volta à minha infância. Veja só, até onde consigo recordar, sempre me interessei pelo universo. Ainda lembro de, certa noite – devia ter então oito ou nove anos –, me colocar sob uma lâmpada de rua e olhar para o céu indagando se a luz seguia infinitamente, qual seria o significado de uma coisa seguir dessa forma e se o universo terminaria em algum momento. Esse tipo de perguntas. Desde muito cedo, portanto, me interessa a ideia de que a mente humana é capaz de indagar essas questões e, de alguma forma, compreender a vastidão de todas as coisas.
Essas ideias seguiram quando estava na escola, acompanhadas de um sentimento de interconectividade entre todas as coisas. Era quase como se o universo inteiro fosse uma entidade viva. Mas é claro, tudo mudou quando entrei na seriedade dos estudos de ciência da universidade. Sentia que as questões mais profundas, especialmente aquelas relacionadas à teoria quântica, nunca eram respondidas de forma adequada. Ficava uma impressão muito clara de que a maioria dos cientistas não estava realmente interessada nessas questões. Parecia-lhes que elas não estavam exatamente ligadas ao dia a dia de suas pesquisas. Em sentido contrário, éramos encorajados a buscar resultados concretos que pudessem ser usados na publicação de artigos e a trabalhar em problemas que fossem “cientificamente aceitáveis”. Então desde o início me senti entrando em um terreno complicado, pois sempre me interessavam mais as questões que eu não sabia como responder do que a pesquisa rotineira. E claro, essa não é a melhor maneira de construir uma lista expressiva de publicações científicas.
Bohm: Mas você não se interessava somente por ciência.
Peat: Não, eu me interessava por música, teatro e artes visuais. Conseguia ver que eram uma outra forma muito importante de responder à natureza e de entender a nossa posição no universo. Sempre senti que, em algum nível mais profundo, as figuras principais da ciência e das artes estavam fundamentalmente fazendo a mesma coisa e respondendo à mesma origem elementar. Mas, exceto por alguns bons amigos, era difícil encontrar pessoas que compartilhassem do meu entusiasmo. Comecei uma espécie de diálogo indireto com você, lendo os seus artigos, e percebi um interesse similar. O resultado disso foi que em 1971 eu tirei um ano sabático para ir a Birkbeck College, em Londres, para que pudéssemos explorar juntos todas essas coisas.
Bohm: Sim, lembro que nos encontrávamos uma ou duas vezes por semana e conversávamos noite adentro.
Peat: Você recorda como comecei perguntando sobre questões científicas, mas em seguida entramos em toda área de consciência, sociedade, religião e cultura? Ao voltar para o Canadá, pareceu-me claro que devíamos seguir nos encontrando regularmente para dar sequência ao nosso diálogo.
Bohm: Sim, mas desde logo emergiu a questão de que o diálogo em si era o ponto principal, e que isso estava intimamente relacionado a todas as outras questões. A pergunta essencial era: como podemos dialogar de forma criativa?
Peat: Sim, e acredito que tenha sido isso o que me levou a sugerir que deveríamos escrever um livro juntos. De certa forma, fazer esse livro tornou-se uma continuação do nosso diálogo. Claro, muitas das ideias que abordávamos partiram de você.
Bohm: Sim, mas ao explorá-las pelo diálogo, elas começaram a se desenvolver de novas maneiras, o que também permitiu comunicá-las de forma mais clara.
Peat: A comunicação tem um papel muito importante na forma como novas ideias se desenvolvem. De fato, todo esse projeto foi muito estimulante.
Bohm: Penso que isso se deve ao interesse intenso que ambos temos em explorar essas questões. Veja só, eu também senti aquela espécie de encantamento e entusiasmo quando comecei, acompanhados de um intenso desejo de entender tudo, não somente em detalhes mas também em sua totalidade.
Mais tarde aprendi que muitos dos meus interesses fundamentais eram o que outras pessoas chamavam de “filosóficos” e que os cientistas tendiam a menosprezar a filosofia como sendo algo não muito sério. Isso me criou um problema, pois nunca fui capaz de ver qualquer separação inerente à relação entre ciência e filosofia. A propósito, a ciência já foi chamada de filosofia natural e isso corresponde perfeitamente à forma como eu via o campo. Na universidade, tive alguns amigos que abordavam o assunto da mesma maneira que eu. Tínhamos muitas discussões em um espírito de amizade e investigação compartilhada. Entretanto, na graduação do California Institute of Technology, na qual ingressei em 1939, descobri que havia uma ênfase tremenda na competição e que isso interferia naquela forma de livre debate. Havia uma forte pressão para que nos concentrássemos no aprendizado de técnicas formais para obter resultados. Parecia haver pouco espaço para o desejo que eu tinha de compreensão em um sentido amplo. Não havia uma troca livre, tampouco a amizade que é essencial àquele tipo de compreensão.
Muito embora eu fosse perfeitamente capaz de dominar aquelas técnicas matemáticas, não sentia que valesse a pena seguir com aquilo se não fosse com uma base filosófica mais profunda e um espírito de investigação compartilhado. Sabe, são essas coisas que nos dão o interesse e a motivação para usar técnicas matemáticas para estudar a natureza da realidade.
Peat: Mas as coisas melhoraram quando você foi para Berkeley, não?
Bohm: Sim, quando fui trabalhar com J. Robert Oppenheimer encontrei um grupo de espírito mais acolhedor. Por exemplo, fui introduzido ao trabalho de Niels Bohr, e isso estimulou o meu interesse, especialmente em relação à questão da unidade entre observador e observado, vista por Bohr no contexto da totalidade indivisa do universo. Ainda lembro das muitas discussões que tive sobre questões como essa, que tiveram como efeito me colocar no caminho que sigo até hoje. A filosofia teve sua parte, inseparável, mas não era somente uma questão de filosofar sobre materiais que já estivessem presentes na ciência de forma mais ou menos concluída. Estava interessado em questões mais amplas que tinham sido não só fonte e origem do meu interesse, como também de muitas ideias centrais que mais tarde ganhariam contornos matemáticos.
Peat: Talvez você pudesse dar um exemplo da relação entre ideias científicas e sua filosofia subjacente.
Bohm: Quando trabalhei no Lawrence Laboratory, depois do meu doutorado, passei a me interessar muito pelo plasma de elétrons. Trata-se de um denso gás que apresenta um comportamento radicalmente diferente dos estados normais da matéria. Era uma chave para muito do trabalho que o laboratório vinha fazendo à época. Meus insights surgiram da percepção de que o plasma é um sistema altamente organizado, que se comporta como uma totalidade. De fato, em certos aspectos, é quase como um ser vivo. Eu era fascinado pela questão de como tal comportamento coletivo organizado podia compreender a quase liberdade completa de movimento individual dos elétrons. Vi nisso uma analogia àquilo que poderia ser a sociedade e à forma como os seres vivos estão organizados. Mais tarde, quando fui para Princeton, ampliei essa visão, tratando da mesma forma os elétrons presentes nos metais.
Peat: Mas acredito que você também estava um pouco incomodado pela forma como seus resultados vinham sendo usados.
Bohm: Bem, eu produzi uma série de equações e fórmulas. Algumas delas tiveram um papel fundamental na pesquisa sobre fusão e na teoria dos metais. Mas alguns anos depois, quando participei de algumas conferências científicas, ficou claro que essas fórmulas foram tomadas e transformadas de modo mais abstrato, enquanto as ideias por trás eram ignoradas. As pessoas pareciam nem querer ouvir a respeito delas. Havia um espírito geral de que o objetivo principal da física era o de produzir fórmulas que previssem corretamente os resultados de experimentos. Diante de tudo isso, comecei a sentir que não havia motivo para seguir com a pesquisa do plasma, e então perdi meu interesse pela questão.
Contudo, continuei a trabalhar com a física e desenvolvi a interpretação causal da teoria quântica e da ordem implícita. Mas, em grande medida, ambas resultaram em questões filosóficas.
Peat: De fato, foram exatamente esses primeiros artigos seus que despertaram meu interesse. Comecei minha primeira pesquisa observando sistemas de muitos elétrons e logo me interessei pela relação entre os comportamentos individual e coletivo. Claro, foram os seus textos que me ajudaram a ter alguns insights sobre a relação entre o indivíduo e o todo. Penso que eles também me encorajaram a ir além, a tentar olhar de forma mais aprofundada essas questões sobre os fundamentos da teoria quântica. Mas como disse antes, o clima para esse tipo de abordagem era extremamente antipático. Podia notar que a maioria dos físicos não conseguia entender a direção que você tomava.
Bohm: Pareciam mais interessados nas fórmulas do que nas ideias por trás delas.
Peat: Mas isso me levou a algo que penso ser muito importante. O que você diria a respeito da crença predominante de que o formalismo matemático expressa a própria essência do nosso conhecimento da natureza?
Bohm: Alguns cientistas, especialmente os pitagoreanos, sustentavam visões como essa na Antiguidade. E outros, como Kepler, acreditavam que a matemática era a fonte básica da verdade. Mas essa noção de que o formalismo matemático expressa a essência do nosso conhecimento da natureza não havia se tornado coletivamente aceita até um momento relativamente recente. Por exemplo, quando eu era estudante, a maioria dos físicos acreditava que um conceito físico ou intuitivo era o ponto essencial e que o formalismo matemático deveria ser entendido em relação a ele.
Peat: Mas como surgiu essa ênfase na matemática?
Bohm: Foi realmente porque a teoria quântica e – de forma menos acentuada – a relatividade nunca foram compreendidas adequadamente em termos de conceitos da física – os quais foram desviados gradualmente pelos físicos para a prática de falar a respeito de equações. Claro, isso se devia ao fato de que as equações eram a parte da teoria que todos sentiam poder realmente entender. Mas isso inevitavelmente levou à noção de que as equações por si só eram o conteúdo essencial da física. Em certa medida, isso começou cedo, na década de 1920, quando o astrônomo Sir James Jeans propôs que Deus devia ser um matemático[1] . Mais tarde, Heisenberg deu a esse entendimento uma ênfase enorme com sua ideia de que a ciência não podia mais visualizar a realidade atômica em termos de conceitos da física e de que a matemática é a expressão básica do nosso conhecimento da realidade[2] . Essas ideias foram acompanhadas de uma mudança total na noção daquilo que se entendia por uma apreensão intuitiva ou imaginativa. Anteriormente isso havia sido identificado com a habilidade de visualizar ideias e conceitos, mas agora Heisenberg argumentava que a intuição e a imaginação não proporcionavam uma imagem da realidade, mas sim uma exposição mental do sentido da matemática.
De qualquer forma, não concordo com esses desdobramentos. Pelo contrário, acredito que a atual ênfase na matemática tenha ido longe demais.
Peat: Por outro lado, muitos dos pensadores científicos mais profundos usaram o critério da beleza matemática no desenvolvimento de suas teorias. Eles acreditaram que as explicações científicas mais profundas também devem ser matematicamente belas. Sem a exigência de uma estética matemática, muitas descobertas não teriam ocorrido. No seu trabalho, o critério de elegância matemática seguramente deve ter atuado como sinal de que você estava no caminho certo, não?
Bohm: A matemática certamente dá espaço para insights criativos, e a busca por beleza matemática pode ser uma orientação proveitosa. Com frequência, os cientistas que trabalharam nesse sentido tiveram sucesso ao derivar novos conhecimentos por meio da ênfase no formalismo matemático. Já mencionei Kepler e Heisenberg, e poderia acrescentar nomes dos tempos modernos, como Dirac, von Neumann, Jordan e Wigner. Mas a matemática nunca foi o único critério das suas descobertas. Indo além, isso não significa que todos pensem parecido a esse respeito. De fato, acredito que conceitos verbais, aspectos pictóricos e o pensamento filosófico possam contribuir significativamente para novas ideias. Einstein devia apreciar muito a beleza matemática, mas ele não começou exatamente pela matemática, especialmente no seu período mais criativo. Em vez disso, partiu de sentimentos indistintos e de uma sucessão de imagens das quais surgiriam conceitos mais detalhados. Eu acompanharia esse processo e acrescentaria que ideias que aparecem dessa forma, ou de outras, podem eventualmente levar aos próximos desenvolvimentos matemáticos e mesmo a sugestões de novas formas de matemática.
Soa arbitrário dizer que a matemática deve ocupar um único papel na expressão da realidade. A matemática é apenas uma função da mente humana, e outras funções certamente podem ser tão importantes quanto ela – mesmo na física.
Peat: Este diálogo está indo numa direção interessante. Estamos dizendo, tenho a impressão, que a física pode ter tomado um caminho equivocado ao dar tanta ênfase a seus formalismos. Mas tenho certeza de que muitos cientistas diriam que a matemática acaba por ser a forma mais abstrata e coerentemente lógica de pensar que conhecemos. Parece ser totalmente aberta a criação livre e não limitada pelas experiências sensoriais da realidade ordinária. Isso não dá a ela um status único?
Bohm: Bem, como réplica, gostaria de trazer o trabalho de Alfred Korzybski, um filósofo norte-americano bastante conhecido no início do século XX[3] . Ele disse que a matemática é um esquema linguístico limitado, que torna possível uma grande precisão e coerência – mas às custas de uma abstração tão extrema que, em certos sentidos fundamenteis, a sua aplicabilidade deve ser restringida.
Korzybski disse, por exemplo, que não importa o que digamos que uma coisa é, ela não é. Antes de mais nada, tudo o que dizemos são palavras, mas aquilo do que queremos falar geralmente não são palavras. Em segundo lugar, qualquer coisa que se queira dizer [whatever we mean by what we say] não é o que uma coisa é realmente, embora possa ser similar. Portanto a coisa é sempre mais do que aquilo que queremos dizer e nunca é exaustivamente formulada pelos nossos conceitos. A coisa é também diferente daquilo que queremos dizer, se não por outros motivos, porque nenhum pensamento pode ser absolutamente correto quando é indefinidamente estendido. O fato de a coisa ter qualidades que vão além de tudo o que pensamos e dizemos a seu respeito está por trás da nossa noção de realidade objetiva. Claramente, se a realidade algum dia parasse de nos mostrar novos aspectos que não estão no nosso pensamento, então dificilmente poderíamos dizer que ela teve uma existência objetiva independente de nós.
Isso implica dizer que todo tipo de pensamento, incluindo o matemático, é uma abstração que não cobre e não tem a capacidade de dar conta da realidade em sua totalidade. Diferentes tipos de pensamento e de abstração podem juntos gerar uma melhor reflexão sobre a realidade. Cada qual é limitado de sua própria maneira, mas juntos eles ampliam nossa apreensão da realidade para além do que é possível com somente um tipo de pensamento.
Peat: O que você disse a respeito de Korzybski me faz recordar da pintura do cachimbo de René Magritte, que contém as palavras Isso não é um cachimbo. Não importa o quão realista possa ser uma pintura, ela sempre estará longe de ser um cachimbo de verdade. Ironicamente a palavra cachimbo no título tampouco é um cachimbo de verdade. Talvez, conforme o espírito de Magritte, toda teoria do universo devesse conter a proposição fundamental de que “Isso não é um universo”.
Bohm: De fato, uma teoria é uma espécie de mapa do universo e, como qualquer outro mapa, trata-se de uma abstração limitada e não totalmente precisa. A matemática proporciona um aspecto do mapa geral, mas é necessário que outras formas de pensamento acompanhem as linhas que estamos discutindo.
Peat: Bem, certamente é verdade que, no surgimento da teoria quântica, os principais físicos como Bohr, Heisenberg, Pauli, Schrödinger e de Broglie estivessem realmente preocupados com questões filosóficas, especialmente no que diz respeito à relação entre ideias e realidade.
Bohm: Essas questões vão além do escopo limitado da física como ela é conhecida hoje em dia. Cada um desses pensadores lida com o problema de forma particular, e há diferenças sutis e importantes entre as abordagens, que tendemos atualmente a ignorar. Mas de fato, a prática geral da física distanciou-se dessas considerações mais profundas e tende a se concentrar em questões técnicas. Por essa razão, parece ter perdido contato com suas próprias raízes. Por exemplo, em qualquer tentativa de unificar a mecânica quântica e a relatividade, especialmente a relatividade geral, há questões fundamentais que devem ser encaradas. Como os físicos esperam poder trabalhar com êxito nesse campo, se ignoram os problemas sutis e não resolvidos que seguem enterrados no período inicial da mecânica quântica?
Peat: Lembro que esse tipo de questão surgia com frequência nas discussões que tínhamos na Birkbeck College. O que nos preocupava especialmente era a estreiteza da visão que se desenvolve não somente na física, mas na pesquisa científica de modo geral.
Bohm: Usávamos uma analogia relacionada à visão humana. Os detalhes do que vemos são percebidos por uma pequena área centrar da retina chamada fóvea. Se ela é destruída, a visão detalhada se perde, mas permanece a visão geral, que vem da área periférica da retina. No entanto, se a área periférica é prejudicada, enquanto a fóvea permanece intacta, mesmo os detalhes perdem totalmente o seu sentido. Por analogia, perguntávamos se havia o risco de que a ciência sofresse um “prejuízo” similar da sua visão.
Peat: Mas originalmente havia tal visão geral do universo, da humanidade, e do nosso lugar no todo. Ciência, arte e religião nunca estiveram realmente separadas.
Bohm: Mas, com o passar do tempo, a visão transformou-se com a especialização. Ela se tornou progressivamente mais estreita, levando-nos enfim a nossa atual abordagem, que é, em grande medida, fragmentária. Penso que esse desenvolvimento surgiu em parte porque a física havia se tornado o padrão ou ideal em direção ao qual todas as ciências apontavam. Enquanto a maioria das ciências não é tão dominada pela matemática, a questão essencial é o espírito com o qual a matemática tende a ser feita. Seu objetivo geral é tentar analisar todas as coisas como elementos independentes com os quais se pode lidar de forma separada. Isso encoraja a esperança de que qualquer problema possa ser dividido em fragmentos.
Entretanto, ainda é verdade que a ciência também contém um movimento em direção à síntese e à descoberta de contextos mais amplos e de leis mais gerais. Mas a atitude hegemônica tem sido a de colocar uma ênfase maior na análise e na separação dos principais fatores de cada situação. Os cientistas têm a esperança de que isso possibilite uma extensão indeterminada aos seus poderes de previsão e controle das coisas.
Peat: É importante ressaltar que esse tipo de abordagem é fundamental não somente para a física, mas também para a química, a biologia, as neurociências e mesmo para a economia e a psicologia.
Bohm: Ao nos concentrarmos nesse tipo de análise, dividindo de forma constante os problemas em áreas especializadas, ignoramos de forma crescente o contexto mais amplo que dá unidade às coisas. De fato, esse espírito atualmente se espalha para além da ciência, não somente na tecnologia, mas na forma como, de modo geral, lidamos com a vida. Atualmente entender algo é valorado como os meios para prever, controlar e manipular as coisas. É claro que isso sempre foi importante, a começar por Francis Bacon, mas nunca foi tão dominante como hoje.
Peat: Sim, a ciência tem se movido numa escala crescente, nunca antes vista desde o século XIX, e está trazendo com isso um hospedeiro de mudanças tecnológicas. Mas é relativamente recente o fato de tantas pessoas começarem a questionar se todo esse progresso é de fato benéfico. Estamos começando a nos dar conta de que o custo do progresso é uma especialização e uma fragmentação cada vez maiores, ao ponto de que a totalidade da atividade esteja perdendo seu sentido. Penso que chegou a hora de a ciência parar e olhar de forma cuidadosa para onde está indo.
Bohm: Acredito que seja necessário ainda mais do que isso para mudar o que entendemos como “ciência”. É chegada a hora de uma mobilização criativa por meio de novas linhas. Isso é essencialmente o que estamos propondo no livro Science, Order, and Creativity [Ciência, ordem e criatividade].
Peat: Mas a maioria dos cientistas ficaria chocada por tal sugestão. Afinal, deve parecer que a ciência nunca foi tão ativa e bem sucedida quanto hoje. Em todos os campos há novas fronteiras que se abrem e novas tecnologias sendo exploradas.
Pense em todas essas novas técnicas experimentais e teorias excitantes e nos problemas que um número indefinido de trabalhadores da pesquisa desejam enfrentar. Na medicina, por exemplo: tantas doenças sumiram, e existe a promessa de que outras tantas sejam erradicadas. Há novos campos da biotecnologia e da engenharia genética, e não esqueçamos das mudanças que têm sido produzidas por computadores e pela comunicação massiva. A ciência está causando um impacto realmente poderoso em todas as áreas da vida.
Bohm: Tudo isso é verdade, mas alguns fatores muito importantes têm sido negligenciados na obtenção desse progresso. Antes de mais nada, tem havido uma ampla fragmentação na nossa atitude geral em relação à realidade. Isso nos leva a sempre focar em problemas específicos, mesmo quando eles são relacionados de forma significativa a um contexto maior. Como resultado, falhamos em perceber as consequências negativas imprevistas, com as quais nem sempre é possível lidar nos termos de um modo fragmentário de pensamento. O resultado é que essas dificuldades se espalham no contexto mais amplo e eventualmente voltam para criar problemas que podem ser piores do que aqueles com os quais começamos. Por exemplo, ao explorar recursos naturais de forma fragmentária, a sociedade trouxe à tona a destruição de florestas e terras agrícolas, criou desertos e lida com a ameaça de derretimento dos pólos.
Peat: Lembro de examinar a questão do desenvolvimento de colheitas mais produtivas. Não está claro de forma alguma se esse processo foi totalmente benéfico. Para começar, há o problema da grande vulnerabilidade dos cultivos geneticamente limitados. Além disso, há uma dependência crescente de fertilizantes, pesticidas, herbicidas e maturadores. Se você leva tudo isso em conta, junto às técnicas agrícolas mais eficientes que essas novas culturas demandam, são produzidas mudanças radicais, sem controle, nas sociedades agrárias, as quais passam a depender cada vez mais de bases industriais. Por fim, toda a sociedade se transforma de modo incontrolado e a sua economia se torna dependente de importações, que são vulneráveis às instabilidades globais.
Bohm: Claro, muitas pessoas pensam que a solução para esse tipo de problema reside em simplesmente estudar ecologia ou outra especialidade. A ecologia certamente começa pelo reconhecimento da dependência complexa de cada atividade no contexto mais amplo. No entanto, o problema é tanto da ecologia quanto da economia, e isso leva à política, à estrutura da sociedade e à natureza dos seres humanos em geral.
A questão principal é esta: como é possível subordinar todos esses fatores a prognósticos e ao controle, de modo a manipular o sistema, proporcionando uma boa ordem? Claro que é impossível atender a essa demanda. Para começar, há uma infinita complexidade envolvida e uma instabilidade extrema desses sistemas, os quais requerem graus de controle quase perfeitos, provavelmente inatingíveis. Mais importante ainda, o próprio sistema depende de seres humanos. Então como a ciência pode fazer para que os seres humanos controlem a si próprios? De que forma os cientistas propõem o controle do ódio entre nações, religiões e ideologias, se a própria ciência é fundamentalmente limitada e controlada por essas mesmas coisas? E o que dizer da tensão psicológica crescente de uma sociedade que é tão insensível a necessidades humanas básicas, ao ponto de, para muitos, a vida ter perdido seu sentido? Diante de tudo isso, algumas pessoas desabam mentalmente ou se tornam dependentes de drogas variadas, enquanto outras se engajam em uma violência insensata.
Peat: Parece impossível sonhar que por meio de alguma nova descoberta da química, da biologia ou das ciências comportamentais esses problemas sejam controlados. Eles são tão inalcançáveis e disseminados. Como a ciência pretende acabar com o perigo de aniquilação mútua que existe no mundo? Afinal, isso tem origem no medo, na desconfiança e no ódio entre nações. Tenho a impressão de que quanto mais a ciência e a tecnologia se desenvolvem, mais perigosa se torna toda essa situação.
Bohm: Claro, há mais ou menos um século, os benefícios da ciência, em geral, sobrepunham-se aos efeitos negativos, mesmo quando o ambiente todo era levado sem preocupações em relação às consequências de longo prazo. Mas o mundo moderno é finito e nós temos um poder de destruição praticamente ilimitado. É claro que o mundo atingiu um ponto sem volta. Essa é uma das razões pela qual temos que parar e considerar a possibilidade de uma mudança fundamental e extensiva em relação a forma como entendemos a ciência.
Peat: O que necessitamos não são tanto novas ideias científicas, muito embora elas sigam sendo de grande interesse. A questão é: como a ciência, quando baseada em uma atitude fragmentária diante da vida, pode entender a essência de problemas reais que dependem de um contexto indefinidamente amplo? A resposta não recai na acumulação de mais e mais conhecimento. Há uma necessidade de sabedoria. Não é a falta de conhecimento, e sim a falta de sabedoria que causa a maior parte dos nossos problemas mais sérios.
Bohm: Mas isso também implica boa vontade e colaboração. Isso parece faltar hoje em dia entre os cientistas, bem como entre o público geral.
Peat: Claro, boa vontade e colaboração são importantes para pessoas que vão trabalhar juntas pelo bem comum. Mas a longo prazo, penso que seja necessário sacrificar alguns dos valores que atualmente prezamos tanto. Por exemplo, temos que questionar o aumento indeterminado do conforto e da prosperidade individual, bem como a preeminência do espírito competitivo, que é basicamente divisor e fragmentário.
Bohm: Sim, e é arbitrário limitar para sempre a ciência em relação ao que ela se tornou hoje. Afinal, isso foi o resultado de um processo histórico que envolveu muitos elementos fortuitos. Temos que explorar de forma criativa o que uma nova noção de ciência pode ser, uma noção que seja adequada ao nosso momento presente. Isso significa que todos os assuntos que estivemos abordando terão de vir a debate.
Peat: Penso que, se entendermos esse chamado a uma nova mobilização criativa na ciência, teremos então que entender a perspectiva histórica da qual você tem falado. Precisamos compreender como surgiu nossa atual abordagem fragmentária. Por exemplo, seria interessante pensar sobre o que teria acontecido se outros caminhos, disponíveis em outros momentos, tivessem sido totalmente explorados.
Bohm: Mas esse tipo de discussão não pode se restringir à ciência. Temos que incluir toda a gama de atividades humanas. Nosso objetivo é lançar luz sobre a natureza da criatividade e a como ela pode ser incentivada, não somente na ciência, mas também na sociedade e na vida de cada indivíduo. Essa é a natureza fundamental da mobilização que estamos convocando.
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Publicado em 30/09/2014 por estudosdects
Este diálogo entre os físicos David Bohm e F. David Peat foi escrito como introdução ao livro “Science, Order and Creativity” (Bantam Books, 1987), gentilmente cedido por F. David Peat para tradução ao português e publicação na Revista Carbono.
Esta publicação nasceu de uma série de diálogos que travamos ao longo dos últimos 15 anos. Parece apropriado, portanto, que nesta introdução seja dada ao leitor uma ideia sobre a gênese do nosso livro, os pensamentos e as questões que nos levaram a escrevê-lo. A forma de diálogo é a que melhor dá conta desse processo, que naturalmente envolve origens, sentimentos e atitudes de cada um. A propósito, o diálogo que se segue poderia muito bem ter se desenrolado durante uma de nossas caminhadas à tarde, na época em que escrevíamos o livro.
David Bohm: Penso que seria uma boa ideia começarmos falando da própria publicação. O que levou você a sugerir que deveríamos escrever um livro juntos?
David Peat: Uma pergunta como essa me leva de volta à minha infância. Veja só, até onde consigo recordar, sempre me interessei pelo universo. Ainda lembro de, certa noite – devia ter então oito ou nove anos –, me colocar sob uma lâmpada de rua e olhar para o céu indagando se a luz seguia infinitamente, qual seria o significado de uma coisa seguir dessa forma e se o universo terminaria em algum momento. Esse tipo de perguntas. Desde muito cedo, portanto, me interessa a ideia de que a mente humana é capaz de indagar essas questões e, de alguma forma, compreender a vastidão de todas as coisas.
Essas ideias seguiram quando estava na escola, acompanhadas de um sentimento de interconectividade entre todas as coisas. Era quase como se o universo inteiro fosse uma entidade viva. Mas é claro, tudo mudou quando entrei na seriedade dos estudos de ciência da universidade. Sentia que as questões mais profundas, especialmente aquelas relacionadas à teoria quântica, nunca eram respondidas de forma adequada. Ficava uma impressão muito clara de que a maioria dos cientistas não estava realmente interessada nessas questões. Parecia-lhes que elas não estavam exatamente ligadas ao dia a dia de suas pesquisas. Em sentido contrário, éramos encorajados a buscar resultados concretos que pudessem ser usados na publicação de artigos e a trabalhar em problemas que fossem “cientificamente aceitáveis”. Então desde o início me senti entrando em um terreno complicado, pois sempre me interessavam mais as questões que eu não sabia como responder do que a pesquisa rotineira. E claro, essa não é a melhor maneira de construir uma lista expressiva de publicações científicas.
Bohm: Mas você não se interessava somente por ciência.
Peat: Não, eu me interessava por música, teatro e artes visuais. Conseguia ver que eram uma outra forma muito importante de responder à natureza e de entender a nossa posição no universo. Sempre senti que, em algum nível mais profundo, as figuras principais da ciência e das artes estavam fundamentalmente fazendo a mesma coisa e respondendo à mesma origem elementar. Mas, exceto por alguns bons amigos, era difícil encontrar pessoas que compartilhassem do meu entusiasmo. Comecei uma espécie de diálogo indireto com você, lendo os seus artigos, e percebi um interesse similar. O resultado disso foi que em 1971 eu tirei um ano sabático para ir a Birkbeck College, em Londres, para que pudéssemos explorar juntos todas essas coisas.
Bohm: Sim, lembro que nos encontrávamos uma ou duas vezes por semana e conversávamos noite adentro.
Peat: Você recorda como comecei perguntando sobre questões científicas, mas em seguida entramos em toda área de consciência, sociedade, religião e cultura? Ao voltar para o Canadá, pareceu-me claro que devíamos seguir nos encontrando regularmente para dar sequência ao nosso diálogo.
Bohm: Sim, mas desde logo emergiu a questão de que o diálogo em si era o ponto principal, e que isso estava intimamente relacionado a todas as outras questões. A pergunta essencial era: como podemos dialogar de forma criativa?
Peat: Sim, e acredito que tenha sido isso o que me levou a sugerir que deveríamos escrever um livro juntos. De certa forma, fazer esse livro tornou-se uma continuação do nosso diálogo. Claro, muitas das ideias que abordávamos partiram de você.
Bohm: Sim, mas ao explorá-las pelo diálogo, elas começaram a se desenvolver de novas maneiras, o que também permitiu comunicá-las de forma mais clara.
Peat: A comunicação tem um papel muito importante na forma como novas ideias se desenvolvem. De fato, todo esse projeto foi muito estimulante.
Bohm: Penso que isso se deve ao interesse intenso que ambos temos em explorar essas questões. Veja só, eu também senti aquela espécie de encantamento e entusiasmo quando comecei, acompanhados de um intenso desejo de entender tudo, não somente em detalhes mas também em sua totalidade.
Mais tarde aprendi que muitos dos meus interesses fundamentais eram o que outras pessoas chamavam de “filosóficos” e que os cientistas tendiam a menosprezar a filosofia como sendo algo não muito sério. Isso me criou um problema, pois nunca fui capaz de ver qualquer separação inerente à relação entre ciência e filosofia. A propósito, a ciência já foi chamada de filosofia natural e isso corresponde perfeitamente à forma como eu via o campo. Na universidade, tive alguns amigos que abordavam o assunto da mesma maneira que eu. Tínhamos muitas discussões em um espírito de amizade e investigação compartilhada. Entretanto, na graduação do California Institute of Technology, na qual ingressei em 1939, descobri que havia uma ênfase tremenda na competição e que isso interferia naquela forma de livre debate. Havia uma forte pressão para que nos concentrássemos no aprendizado de técnicas formais para obter resultados. Parecia haver pouco espaço para o desejo que eu tinha de compreensão em um sentido amplo. Não havia uma troca livre, tampouco a amizade que é essencial àquele tipo de compreensão.
Muito embora eu fosse perfeitamente capaz de dominar aquelas técnicas matemáticas, não sentia que valesse a pena seguir com aquilo se não fosse com uma base filosófica mais profunda e um espírito de investigação compartilhado. Sabe, são essas coisas que nos dão o interesse e a motivação para usar técnicas matemáticas para estudar a natureza da realidade.
Peat: Mas as coisas melhoraram quando você foi para Berkeley, não?
Bohm: Sim, quando fui trabalhar com J. Robert Oppenheimer encontrei um grupo de espírito mais acolhedor. Por exemplo, fui introduzido ao trabalho de Niels Bohr, e isso estimulou o meu interesse, especialmente em relação à questão da unidade entre observador e observado, vista por Bohr no contexto da totalidade indivisa do universo. Ainda lembro das muitas discussões que tive sobre questões como essa, que tiveram como efeito me colocar no caminho que sigo até hoje. A filosofia teve sua parte, inseparável, mas não era somente uma questão de filosofar sobre materiais que já estivessem presentes na ciência de forma mais ou menos concluída. Estava interessado em questões mais amplas que tinham sido não só fonte e origem do meu interesse, como também de muitas ideias centrais que mais tarde ganhariam contornos matemáticos.
Peat: Talvez você pudesse dar um exemplo da relação entre ideias científicas e sua filosofia subjacente.
Bohm: Quando trabalhei no Lawrence Laboratory, depois do meu doutorado, passei a me interessar muito pelo plasma de elétrons. Trata-se de um denso gás que apresenta um comportamento radicalmente diferente dos estados normais da matéria. Era uma chave para muito do trabalho que o laboratório vinha fazendo à época. Meus insights surgiram da percepção de que o plasma é um sistema altamente organizado, que se comporta como uma totalidade. De fato, em certos aspectos, é quase como um ser vivo. Eu era fascinado pela questão de como tal comportamento coletivo organizado podia compreender a quase liberdade completa de movimento individual dos elétrons. Vi nisso uma analogia àquilo que poderia ser a sociedade e à forma como os seres vivos estão organizados. Mais tarde, quando fui para Princeton, ampliei essa visão, tratando da mesma forma os elétrons presentes nos metais.
Peat: Mas acredito que você também estava um pouco incomodado pela forma como seus resultados vinham sendo usados.
Bohm: Bem, eu produzi uma série de equações e fórmulas. Algumas delas tiveram um papel fundamental na pesquisa sobre fusão e na teoria dos metais. Mas alguns anos depois, quando participei de algumas conferências científicas, ficou claro que essas fórmulas foram tomadas e transformadas de modo mais abstrato, enquanto as ideias por trás eram ignoradas. As pessoas pareciam nem querer ouvir a respeito delas. Havia um espírito geral de que o objetivo principal da física era o de produzir fórmulas que previssem corretamente os resultados de experimentos. Diante de tudo isso, comecei a sentir que não havia motivo para seguir com a pesquisa do plasma, e então perdi meu interesse pela questão.
Contudo, continuei a trabalhar com a física e desenvolvi a interpretação causal da teoria quântica e da ordem implícita. Mas, em grande medida, ambas resultaram em questões filosóficas.
Peat: De fato, foram exatamente esses primeiros artigos seus que despertaram meu interesse. Comecei minha primeira pesquisa observando sistemas de muitos elétrons e logo me interessei pela relação entre os comportamentos individual e coletivo. Claro, foram os seus textos que me ajudaram a ter alguns insights sobre a relação entre o indivíduo e o todo. Penso que eles também me encorajaram a ir além, a tentar olhar de forma mais aprofundada essas questões sobre os fundamentos da teoria quântica. Mas como disse antes, o clima para esse tipo de abordagem era extremamente antipático. Podia notar que a maioria dos físicos não conseguia entender a direção que você tomava.
Bohm: Pareciam mais interessados nas fórmulas do que nas ideias por trás delas.
Peat: Mas isso me levou a algo que penso ser muito importante. O que você diria a respeito da crença predominante de que o formalismo matemático expressa a própria essência do nosso conhecimento da natureza?
Bohm: Alguns cientistas, especialmente os pitagoreanos, sustentavam visões como essa na Antiguidade. E outros, como Kepler, acreditavam que a matemática era a fonte básica da verdade. Mas essa noção de que o formalismo matemático expressa a essência do nosso conhecimento da natureza não havia se tornado coletivamente aceita até um momento relativamente recente. Por exemplo, quando eu era estudante, a maioria dos físicos acreditava que um conceito físico ou intuitivo era o ponto essencial e que o formalismo matemático deveria ser entendido em relação a ele.
Peat: Mas como surgiu essa ênfase na matemática?
Bohm: Foi realmente porque a teoria quântica e – de forma menos acentuada – a relatividade nunca foram compreendidas adequadamente em termos de conceitos da física – os quais foram desviados gradualmente pelos físicos para a prática de falar a respeito de equações. Claro, isso se devia ao fato de que as equações eram a parte da teoria que todos sentiam poder realmente entender. Mas isso inevitavelmente levou à noção de que as equações por si só eram o conteúdo essencial da física. Em certa medida, isso começou cedo, na década de 1920, quando o astrônomo Sir James Jeans propôs que Deus devia ser um matemático[1] . Mais tarde, Heisenberg deu a esse entendimento uma ênfase enorme com sua ideia de que a ciência não podia mais visualizar a realidade atômica em termos de conceitos da física e de que a matemática é a expressão básica do nosso conhecimento da realidade[2] . Essas ideias foram acompanhadas de uma mudança total na noção daquilo que se entendia por uma apreensão intuitiva ou imaginativa. Anteriormente isso havia sido identificado com a habilidade de visualizar ideias e conceitos, mas agora Heisenberg argumentava que a intuição e a imaginação não proporcionavam uma imagem da realidade, mas sim uma exposição mental do sentido da matemática.
De qualquer forma, não concordo com esses desdobramentos. Pelo contrário, acredito que a atual ênfase na matemática tenha ido longe demais.
Peat: Por outro lado, muitos dos pensadores científicos mais profundos usaram o critério da beleza matemática no desenvolvimento de suas teorias. Eles acreditaram que as explicações científicas mais profundas também devem ser matematicamente belas. Sem a exigência de uma estética matemática, muitas descobertas não teriam ocorrido. No seu trabalho, o critério de elegância matemática seguramente deve ter atuado como sinal de que você estava no caminho certo, não?
Bohm: A matemática certamente dá espaço para insights criativos, e a busca por beleza matemática pode ser uma orientação proveitosa. Com frequência, os cientistas que trabalharam nesse sentido tiveram sucesso ao derivar novos conhecimentos por meio da ênfase no formalismo matemático. Já mencionei Kepler e Heisenberg, e poderia acrescentar nomes dos tempos modernos, como Dirac, von Neumann, Jordan e Wigner. Mas a matemática nunca foi o único critério das suas descobertas. Indo além, isso não significa que todos pensem parecido a esse respeito. De fato, acredito que conceitos verbais, aspectos pictóricos e o pensamento filosófico possam contribuir significativamente para novas ideias. Einstein devia apreciar muito a beleza matemática, mas ele não começou exatamente pela matemática, especialmente no seu período mais criativo. Em vez disso, partiu de sentimentos indistintos e de uma sucessão de imagens das quais surgiriam conceitos mais detalhados. Eu acompanharia esse processo e acrescentaria que ideias que aparecem dessa forma, ou de outras, podem eventualmente levar aos próximos desenvolvimentos matemáticos e mesmo a sugestões de novas formas de matemática.
Soa arbitrário dizer que a matemática deve ocupar um único papel na expressão da realidade. A matemática é apenas uma função da mente humana, e outras funções certamente podem ser tão importantes quanto ela – mesmo na física.
Peat: Este diálogo está indo numa direção interessante. Estamos dizendo, tenho a impressão, que a física pode ter tomado um caminho equivocado ao dar tanta ênfase a seus formalismos. Mas tenho certeza de que muitos cientistas diriam que a matemática acaba por ser a forma mais abstrata e coerentemente lógica de pensar que conhecemos. Parece ser totalmente aberta a criação livre e não limitada pelas experiências sensoriais da realidade ordinária. Isso não dá a ela um status único?
Bohm: Bem, como réplica, gostaria de trazer o trabalho de Alfred Korzybski, um filósofo norte-americano bastante conhecido no início do século XX[3] . Ele disse que a matemática é um esquema linguístico limitado, que torna possível uma grande precisão e coerência – mas às custas de uma abstração tão extrema que, em certos sentidos fundamenteis, a sua aplicabilidade deve ser restringida.
Korzybski disse, por exemplo, que não importa o que digamos que uma coisa é, ela não é. Antes de mais nada, tudo o que dizemos são palavras, mas aquilo do que queremos falar geralmente não são palavras. Em segundo lugar, qualquer coisa que se queira dizer [whatever we mean by what we say] não é o que uma coisa é realmente, embora possa ser similar. Portanto a coisa é sempre mais do que aquilo que queremos dizer e nunca é exaustivamente formulada pelos nossos conceitos. A coisa é também diferente daquilo que queremos dizer, se não por outros motivos, porque nenhum pensamento pode ser absolutamente correto quando é indefinidamente estendido. O fato de a coisa ter qualidades que vão além de tudo o que pensamos e dizemos a seu respeito está por trás da nossa noção de realidade objetiva. Claramente, se a realidade algum dia parasse de nos mostrar novos aspectos que não estão no nosso pensamento, então dificilmente poderíamos dizer que ela teve uma existência objetiva independente de nós.
Isso implica dizer que todo tipo de pensamento, incluindo o matemático, é uma abstração que não cobre e não tem a capacidade de dar conta da realidade em sua totalidade. Diferentes tipos de pensamento e de abstração podem juntos gerar uma melhor reflexão sobre a realidade. Cada qual é limitado de sua própria maneira, mas juntos eles ampliam nossa apreensão da realidade para além do que é possível com somente um tipo de pensamento.
Peat: O que você disse a respeito de Korzybski me faz recordar da pintura do cachimbo de René Magritte, que contém as palavras Isso não é um cachimbo. Não importa o quão realista possa ser uma pintura, ela sempre estará longe de ser um cachimbo de verdade. Ironicamente a palavra cachimbo no título tampouco é um cachimbo de verdade. Talvez, conforme o espírito de Magritte, toda teoria do universo devesse conter a proposição fundamental de que “Isso não é um universo”.
Bohm: De fato, uma teoria é uma espécie de mapa do universo e, como qualquer outro mapa, trata-se de uma abstração limitada e não totalmente precisa. A matemática proporciona um aspecto do mapa geral, mas é necessário que outras formas de pensamento acompanhem as linhas que estamos discutindo.
Peat: Bem, certamente é verdade que, no surgimento da teoria quântica, os principais físicos como Bohr, Heisenberg, Pauli, Schrödinger e de Broglie estivessem realmente preocupados com questões filosóficas, especialmente no que diz respeito à relação entre ideias e realidade.
Bohm: Essas questões vão além do escopo limitado da física como ela é conhecida hoje em dia. Cada um desses pensadores lida com o problema de forma particular, e há diferenças sutis e importantes entre as abordagens, que tendemos atualmente a ignorar. Mas de fato, a prática geral da física distanciou-se dessas considerações mais profundas e tende a se concentrar em questões técnicas. Por essa razão, parece ter perdido contato com suas próprias raízes. Por exemplo, em qualquer tentativa de unificar a mecânica quântica e a relatividade, especialmente a relatividade geral, há questões fundamentais que devem ser encaradas. Como os físicos esperam poder trabalhar com êxito nesse campo, se ignoram os problemas sutis e não resolvidos que seguem enterrados no período inicial da mecânica quântica?
Peat: Lembro que esse tipo de questão surgia com frequência nas discussões que tínhamos na Birkbeck College. O que nos preocupava especialmente era a estreiteza da visão que se desenvolve não somente na física, mas na pesquisa científica de modo geral.
Bohm: Usávamos uma analogia relacionada à visão humana. Os detalhes do que vemos são percebidos por uma pequena área centrar da retina chamada fóvea. Se ela é destruída, a visão detalhada se perde, mas permanece a visão geral, que vem da área periférica da retina. No entanto, se a área periférica é prejudicada, enquanto a fóvea permanece intacta, mesmo os detalhes perdem totalmente o seu sentido. Por analogia, perguntávamos se havia o risco de que a ciência sofresse um “prejuízo” similar da sua visão.
Peat: Mas originalmente havia tal visão geral do universo, da humanidade, e do nosso lugar no todo. Ciência, arte e religião nunca estiveram realmente separadas.
Bohm: Mas, com o passar do tempo, a visão transformou-se com a especialização. Ela se tornou progressivamente mais estreita, levando-nos enfim a nossa atual abordagem, que é, em grande medida, fragmentária. Penso que esse desenvolvimento surgiu em parte porque a física havia se tornado o padrão ou ideal em direção ao qual todas as ciências apontavam. Enquanto a maioria das ciências não é tão dominada pela matemática, a questão essencial é o espírito com o qual a matemática tende a ser feita. Seu objetivo geral é tentar analisar todas as coisas como elementos independentes com os quais se pode lidar de forma separada. Isso encoraja a esperança de que qualquer problema possa ser dividido em fragmentos.
Entretanto, ainda é verdade que a ciência também contém um movimento em direção à síntese e à descoberta de contextos mais amplos e de leis mais gerais. Mas a atitude hegemônica tem sido a de colocar uma ênfase maior na análise e na separação dos principais fatores de cada situação. Os cientistas têm a esperança de que isso possibilite uma extensão indeterminada aos seus poderes de previsão e controle das coisas.
Peat: É importante ressaltar que esse tipo de abordagem é fundamental não somente para a física, mas também para a química, a biologia, as neurociências e mesmo para a economia e a psicologia.
Bohm: Ao nos concentrarmos nesse tipo de análise, dividindo de forma constante os problemas em áreas especializadas, ignoramos de forma crescente o contexto mais amplo que dá unidade às coisas. De fato, esse espírito atualmente se espalha para além da ciência, não somente na tecnologia, mas na forma como, de modo geral, lidamos com a vida. Atualmente entender algo é valorado como os meios para prever, controlar e manipular as coisas. É claro que isso sempre foi importante, a começar por Francis Bacon, mas nunca foi tão dominante como hoje.
Peat: Sim, a ciência tem se movido numa escala crescente, nunca antes vista desde o século XIX, e está trazendo com isso um hospedeiro de mudanças tecnológicas. Mas é relativamente recente o fato de tantas pessoas começarem a questionar se todo esse progresso é de fato benéfico. Estamos começando a nos dar conta de que o custo do progresso é uma especialização e uma fragmentação cada vez maiores, ao ponto de que a totalidade da atividade esteja perdendo seu sentido. Penso que chegou a hora de a ciência parar e olhar de forma cuidadosa para onde está indo.
Bohm: Acredito que seja necessário ainda mais do que isso para mudar o que entendemos como “ciência”. É chegada a hora de uma mobilização criativa por meio de novas linhas. Isso é essencialmente o que estamos propondo no livro Science, Order, and Creativity [Ciência, ordem e criatividade].
Peat: Mas a maioria dos cientistas ficaria chocada por tal sugestão. Afinal, deve parecer que a ciência nunca foi tão ativa e bem sucedida quanto hoje. Em todos os campos há novas fronteiras que se abrem e novas tecnologias sendo exploradas.
Pense em todas essas novas técnicas experimentais e teorias excitantes e nos problemas que um número indefinido de trabalhadores da pesquisa desejam enfrentar. Na medicina, por exemplo: tantas doenças sumiram, e existe a promessa de que outras tantas sejam erradicadas. Há novos campos da biotecnologia e da engenharia genética, e não esqueçamos das mudanças que têm sido produzidas por computadores e pela comunicação massiva. A ciência está causando um impacto realmente poderoso em todas as áreas da vida.
Bohm: Tudo isso é verdade, mas alguns fatores muito importantes têm sido negligenciados na obtenção desse progresso. Antes de mais nada, tem havido uma ampla fragmentação na nossa atitude geral em relação à realidade. Isso nos leva a sempre focar em problemas específicos, mesmo quando eles são relacionados de forma significativa a um contexto maior. Como resultado, falhamos em perceber as consequências negativas imprevistas, com as quais nem sempre é possível lidar nos termos de um modo fragmentário de pensamento. O resultado é que essas dificuldades se espalham no contexto mais amplo e eventualmente voltam para criar problemas que podem ser piores do que aqueles com os quais começamos. Por exemplo, ao explorar recursos naturais de forma fragmentária, a sociedade trouxe à tona a destruição de florestas e terras agrícolas, criou desertos e lida com a ameaça de derretimento dos pólos.
Peat: Lembro de examinar a questão do desenvolvimento de colheitas mais produtivas. Não está claro de forma alguma se esse processo foi totalmente benéfico. Para começar, há o problema da grande vulnerabilidade dos cultivos geneticamente limitados. Além disso, há uma dependência crescente de fertilizantes, pesticidas, herbicidas e maturadores. Se você leva tudo isso em conta, junto às técnicas agrícolas mais eficientes que essas novas culturas demandam, são produzidas mudanças radicais, sem controle, nas sociedades agrárias, as quais passam a depender cada vez mais de bases industriais. Por fim, toda a sociedade se transforma de modo incontrolado e a sua economia se torna dependente de importações, que são vulneráveis às instabilidades globais.
Bohm: Claro, muitas pessoas pensam que a solução para esse tipo de problema reside em simplesmente estudar ecologia ou outra especialidade. A ecologia certamente começa pelo reconhecimento da dependência complexa de cada atividade no contexto mais amplo. No entanto, o problema é tanto da ecologia quanto da economia, e isso leva à política, à estrutura da sociedade e à natureza dos seres humanos em geral.
A questão principal é esta: como é possível subordinar todos esses fatores a prognósticos e ao controle, de modo a manipular o sistema, proporcionando uma boa ordem? Claro que é impossível atender a essa demanda. Para começar, há uma infinita complexidade envolvida e uma instabilidade extrema desses sistemas, os quais requerem graus de controle quase perfeitos, provavelmente inatingíveis. Mais importante ainda, o próprio sistema depende de seres humanos. Então como a ciência pode fazer para que os seres humanos controlem a si próprios? De que forma os cientistas propõem o controle do ódio entre nações, religiões e ideologias, se a própria ciência é fundamentalmente limitada e controlada por essas mesmas coisas? E o que dizer da tensão psicológica crescente de uma sociedade que é tão insensível a necessidades humanas básicas, ao ponto de, para muitos, a vida ter perdido seu sentido? Diante de tudo isso, algumas pessoas desabam mentalmente ou se tornam dependentes de drogas variadas, enquanto outras se engajam em uma violência insensata.
Peat: Parece impossível sonhar que por meio de alguma nova descoberta da química, da biologia ou das ciências comportamentais esses problemas sejam controlados. Eles são tão inalcançáveis e disseminados. Como a ciência pretende acabar com o perigo de aniquilação mútua que existe no mundo? Afinal, isso tem origem no medo, na desconfiança e no ódio entre nações. Tenho a impressão de que quanto mais a ciência e a tecnologia se desenvolvem, mais perigosa se torna toda essa situação.
Bohm: Claro, há mais ou menos um século, os benefícios da ciência, em geral, sobrepunham-se aos efeitos negativos, mesmo quando o ambiente todo era levado sem preocupações em relação às consequências de longo prazo. Mas o mundo moderno é finito e nós temos um poder de destruição praticamente ilimitado. É claro que o mundo atingiu um ponto sem volta. Essa é uma das razões pela qual temos que parar e considerar a possibilidade de uma mudança fundamental e extensiva em relação a forma como entendemos a ciência.
Peat: O que necessitamos não são tanto novas ideias científicas, muito embora elas sigam sendo de grande interesse. A questão é: como a ciência, quando baseada em uma atitude fragmentária diante da vida, pode entender a essência de problemas reais que dependem de um contexto indefinidamente amplo? A resposta não recai na acumulação de mais e mais conhecimento. Há uma necessidade de sabedoria. Não é a falta de conhecimento, e sim a falta de sabedoria que causa a maior parte dos nossos problemas mais sérios.
Bohm: Mas isso também implica boa vontade e colaboração. Isso parece faltar hoje em dia entre os cientistas, bem como entre o público geral.
Peat: Claro, boa vontade e colaboração são importantes para pessoas que vão trabalhar juntas pelo bem comum. Mas a longo prazo, penso que seja necessário sacrificar alguns dos valores que atualmente prezamos tanto. Por exemplo, temos que questionar o aumento indeterminado do conforto e da prosperidade individual, bem como a preeminência do espírito competitivo, que é basicamente divisor e fragmentário.
Bohm: Sim, e é arbitrário limitar para sempre a ciência em relação ao que ela se tornou hoje. Afinal, isso foi o resultado de um processo histórico que envolveu muitos elementos fortuitos. Temos que explorar de forma criativa o que uma nova noção de ciência pode ser, uma noção que seja adequada ao nosso momento presente. Isso significa que todos os assuntos que estivemos abordando terão de vir a debate.
Peat: Penso que, se entendermos esse chamado a uma nova mobilização criativa na ciência, teremos então que entender a perspectiva histórica da qual você tem falado. Precisamos compreender como surgiu nossa atual abordagem fragmentária. Por exemplo, seria interessante pensar sobre o que teria acontecido se outros caminhos, disponíveis em outros momentos, tivessem sido totalmente explorados.
Bohm: Mas esse tipo de discussão não pode se restringir à ciência. Temos que incluir toda a gama de atividades humanas. Nosso objetivo é lançar luz sobre a natureza da criatividade e a como ela pode ser incentivada, não somente na ciência, mas também na sociedade e na vida de cada indivíduo. Essa é a natureza fundamental da mobilização que estamos convocando.
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