Positivismo lógico e outras abordagens da filosofia das ciências
No contexto da segunda revolução industrial e em face dos avanços técnicos e científicos verificados durante o século XIX, há uma crença na ciência e na técnica como instrumentos que promoveriam o bem-estar e o progresso. Essa crença se impõe a todo o século XX, e cria-se uma mística onde a ciência e a técnica são valores universais e ocorre uma especialização dos saberes. Os positivistas acreditavam no desenvolvimento científico e defendiam um método único para as ciências. Um contraponto ao positivismo dos fins do século XIX deu-se com os neokantianos, que se afastam do positivismo e elaboram enfoques mais interpretativos que buscavam ligar os princípios da filosofia kantiana ao desenvolvimento das ciências exatas, notadamente da física. Ernest Cassirer é o expoente principal do neokantismo.
De outro lado, a partir da segunda metade do século XX, ocorre a chamada revolução tecnocientífica que forma uma espécie de hibrido da ciência com a tecnologia introduzindo questões novas a reflexão filosófica sobre a ciência e a tecnologia. A seguir faremos um sucinto panorama da filosofia da ciência a partir da concepção de alguns de seus principais representantes, seja do positivismo lógico, seja das correntes críticas desta concepção, em seguida abordaremos especificamente a questão da revolução tecnocientífica.
A Filosofia da Ciência emerge como disciplina nos fins do século XIX e mais tarde, vai ser fortemente influenciada pelo positivismo lógico. O Circulo de Viena, também denominado de “positivismo lógico”, tendo como inspiradores Gottlob Frege (1848-1925), Bertrand Russel (1872-1970) e Alfred N. Whitehead (1861-1947) fundadores da lógica e da matemática moderna. A obra de Frege foi o ponto de partida para as investigações lógicas da linguagem realizadas por Ludwig Wittgenstein (1889-1951). O positivismo lógico foi por muito tempo a corrente hegemônica da filosofia das ciências. Seus principais expoentes foram: Rudolf Carnap (1891-1970); Otto Neurath (1882-1945); e o grupo de Berlim, liderado por Hans Reichenbach (1891-1953) A esse grupo se juntam depois da Segunda Guerra Mundial: Ernest Nagel (1901-1985) ; Karl Popper (1902-1994), e Carl G. Hempel (1905-1977). Karl Popper, Ernest Nagel e Hempel são os mais influentes filósofos da ciência dessa segunda fase do positivismo lógico.
Rudolf Carnap (1891-1970) defendia uma linguagem protocolar para a ciência e, numa perspectiva linguística, procurava dar respostas aos problemas científicos e filosóficos. Carnap fazia uma distinção da linguagem da ciência, entre vocabulário observacional e vocabulário teórico. Ele compreendia que a fundamentação do conhecimento na experiência ocorria a partir daquilo que era dado pela observação direta dos fenomênicos observáveis captados pelos termos observáveis. Termos como observável e inobservável são fundamentais para Carnap . Ele distingue dois tipos de leis: as leis empíricas e as leis teóricas. As primeiras contem termos diretamente observáveis pelos sentidos e podem ser confirmadas diretamente. As leis teóricas não podem ser observadas diretamente, desse modo o vocabulário observacional se refere apenas aquilo que é observável. Para Carnap, só haveria experiência através da observação direta. Como desprendimento de suas concepções ele rejeita a metafísica por se tratar de um conhecimento inútil e reduz as diferentes ciências à física.
Ernest Nagel (1901-1985) é um dos mais importantes representantes do positivismo lógico. Ele defendia uma concepção reducionista. Para Abbagnano o reducionismo se refere a “[...] concepções consideradas unilaterais ou parciais, ou que se acredite não respeitarem a complexidade ou a articulação de um fenômeno ou de uma teoria [...] Para Nagel, redução seria: "[...] a explicação de uma teoria ou um conjunto de leis experimentais estabelecidas em uma área de pesquisa, por uma teoria geralmente, embora não invariavelmente, formulada para algum outro domínio".
O reducionismo tanto epistemológico como teórico tem suscitado amplos debates na medida em que a realidade é muito complexa para ser reduzida apenas a um aspecto, como por exemplo, a teoria marxista ou freudiana que reduzem as suas teorias a aspectos econômicos (Marx) e a sexualidade (Freud), o reducionismo ontológico da biologia que reduz a vida a estrutura molecular, o reducionismo metodológico que reduz o todo pelas partes.
Karl Popper (1902-1994), um dos mais importantes representantes do positivismo lógico em sua segunda fase, propôs que as teorias científicas se distinguem das teorias pseudocientíficas justamente por sua falseabilidade. Só assim pode-se progredir na direção de um melhor conhecimento do mundo, por um processo incessante de conjeturas e refutações . Segundo Popper, o falseacionismo foi uma tentativa de demarcação científica, pois o que define o estatuto de cientificidade teórica é ela se submeter a um teste, ou seja, ser falseada. Para Popper existe uma distinção entre observação e teoria. O contexto da justificação separa-se do contexto da descoberta, havendo um método científico único, o das ciências da natureza ou o método experimental.
Para Carl G. Hempel (1905-1977), as teorias são a chave para a compreensão cientifica dos fenômenos empíricos . Elas são construídas normalmente só quando uma investigação prévia em um determinado campo tem produzido um corpo de conhecimentos, que inclui generalizações empíricas ou supostas leis acerca dos fenômenos investigados. Para Hempel, a teoria se propõe a ter um conhecimento mais profundo construindo os fenômenos como manifestação de certos processos subjacentes governados por leis que dão conta das regularidades previamente estudadas.
Para Habermas, as ciências positivas, compartilham com a tradição da grande filosofia o conceito de teoria; mas destroem a pretensão clássica desta tradição, em dois momentos herdados da tradição filosófica: o sentido metódico da atitude teórica e a suposição fundamental de uma estrutura do mundo independente do cognoscente. Por outro lado, a conexão, instaurada desde Platão a Husserl, de theoria e cosmos, de mimeses e bios theoretikós, tem se perdido. A concepção da teoria como um processo educativo se torna apócrifa. Aquela assimilação mimética da alma das aparentemente contempladas proporções do universo não havia feito mais que pôr o conhecimento teórico a serviço de uma internalização de normas.
Numa linha que se aproxima de Popper, Habermas pensa a racionalidade através de seu vínculo com a linguagem e ela é passível de refutações. A racionalidade expressada através da linguagem nos caracteriza como seres da linguagem e sua validade se revela no próprio ato da comunicação, seja ela científica ou ordinária.
Para Giddens:
Os positivistas lógicos classificaram inicialmente grande parte dos dilemas tradicionais e ontológicos da filosofia como pertinentes à metafísica e, assim, como externos ao escopo da discussão racional. As disputas entre o fenomenismo, o realismo, o idealismo e assim por diante, foram abandonadas como desprovidas de significação, na medida em que não havia nenhum modo pela qual elas pudessem ser submetidas a qualquer caracterização do princípio de verificação. Contudo, acreditavam que algumas questões relevantes destes debates de longa data poderiam ser sustentadas e resolvidas se fossem tratadas como debates sobre linguagens filosóficas apropriadas. (GIDDENS, 1997, 187-188)
9.1 WITTGENSTEIN E A VIRADA LINGUÍSTICA
Em um primeiro momento Ludwig Wittgenstein (1889-1951), esteve vinculado ao Circulo de Viena e isto fica patente com o Tractatus Logico Philosophicus (1921), através de uma linguagem tomada emprestada da lógica de Frege e de Russel. Nada que escapasse a linguagem protocolar e idealizada que seria considerada conhecimento válido, mas apenas aquilo que caberia em seu propósito lógico e de combinação. Essa linguagem ideal procura descrever a estrutura objetiva da realidade e a sua correspondência em termos linguísticos. Na introdução do tratado ele afirma:
Trata de problemas filosóficos e mostra, creio eu, que o questionar desses problemas repousa na má compreensão da lógica de nossa linguagem. Poder-se-ia apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: em geral o que se pode ser dito, o pode ser claramente, mas o que não se pode falar deve-se calar (WITTGEINSTEN, 1969, 53)
Sobre a verdade de suas proposições ele afirma:
No entanto a verdade dos pensamentos comunicados aqui me parece intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os problemas no que é essencial. Se não me engano, o segundo valor desse trabalho é mostrar quão pouco se consegue quando se resolvem tais problemas. (Idem, 1969, 53)
Wittgenstein, nessa obra, através da lógica e da linguagem procura resolver os problemas da subjetividade já que a linguagem deveria guardar correspondência objetiva com o mundo e com isto a metafísica perde sentido.
Em uma mudança radical de seu pensamento, Wittgenstein se afasta do projeto neopositivista de uma linguagem ideal e cunha os termos jogos de linguagem. É nas Investigações Filosóficas que Wittgenstein, influenciado pela teoria dos jogos e pelas leis probabilísticas, vai constatar que a realidade não guarda uma relação necessária com a linguagem. A realidade fornece possibilidades de jogos de linguagem que guardam igualdades de família e alguma semelhança entre eles. Wittgenstein vai de encontro à noção de uma linguagem privada, pois não haveria uma linguagem exclusiva do sujeito falante. A linguagem é imprecisa e nem sempre tem correspondência com aquilo a que se refere. Ao afirmar que não há linguagem privada ele faz uma critica ao sujeito moderno, a tradição cartesiana e as filosofias do sujeito.
Ele buscava na lógica e na linguagem uma saída para resolver a questão da subjetividade. Deste modo, os problemas filosóficos passaram cada vez mais a ser problemas da linguagem. Nietzsche e Wittgenstein foram principais expoentes da critica ao sujeito moderno.
9.2 CRÍTICAS A TRADIÇÃO HERDADA
No pós-guerra surge toda uma discussão em torno do poder das tecnociência e consequentemente do padrão vigente de ciências e das teorias que as sustentam no plano metodológico. Nesse período surgem duas correntes na filosofia das ciências: a corrente historicista e a semântica. A corrente historicista representada por Thomas Kuhn (1922-1996), Paul K. Feyerabend (1924-1994) e Imre Lakatos (1922-1974). Estas duas concepções rompem com a chamada tradição herdada da filosofia da ciência.
Imre Lakatos (1922-1974), filósofo da ciência húngaro de ascendência judia, um dos mais importantes representantes da filosofia das ciências do pós-guerra, herdeiro da chamada tradição herdada, sobretudo de Karl Popper de quem vai afirmar que:
A sua filosofia me ajudou a romper, de forma definitiva, com a perspectiva hegeliana que eu havia retido durante quase vinte anos, e, o que é ainda mais importante, me forneceu um conjunto muito fértil de problemas, um autêntico programa de pesquisa. (LAKATOS, 1989, 18)
Apesar de reconhecer a influencia de Popper em sua formação teórica, ele irá absorver as críticas feitas a ale por Kuhn e Feyerabend. Para Lakatos, a avaliação objetiva do crescimento do conhecimento científico, deve ser realizada em termos de mudanças, progressivas ou regressivas, para séries de teorias científicas dentro de um Programa de Pesquisa. Para ele, a história da ciência deve ser vista como a história dos programas de pesquisa e não das teorias isoladas. Em sua concepção de programa de pesquisa há um núcleo duro, composto por teorias irrefutáveis e em seu entorno há um cinturão protetor, constituído por hipóteses e teoria auxiliares, que podem ser refutadas sem que se modifique o núcleo duro, ou a teoria principal. A anomalia do cinturão protetor de um programa de pesquisa pode sofrer ajustes ad-hoc, ou post-hoc. Ao contrário do irracionalismo de Kuhn, quanto às rupturas ocasionadas pelas revoluções científicas, Lakatos vai defender que estas rupturas são racionais e marcadas pela substituição de um programa por outro.
Para Lakatos as ciências progridem pela pluralidade de programas de pesquisas concorrentes. A superação de um programa só acontece quanto houver um programa melhor. Lakatos é considerado um racionalista crítico e nisto ele compartilha das ideias de Popper e Feyerabend, de que a ciência avança a partir de um método de conjectura e de refutações, como defendia Popper, embora Lakatos veja o método científico de Popper como ingênuo, na medida em que, as teorias refutadas deveriam ser descartadas.
9.3 THOMAS KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
Um dos questionamentos mais radicais do modelo de ciências vigente até então foi feito por Thomas Kuhn, em sua obra já clássica A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), Kuhn faz uma crítica interna ao padrão vigente de ciência e de como ela era vista e concebida pelos filósofos e cientistas. Para ele, não há uma certeza infalível sobre o objeto estudado bem como distinção entre a observação e a teoria; por outro lado, a ciência não é cumulativa como entendiam os positivistas lógicos e não há um método único de se fazer ciência, a ciência é um empreendimento humano, suscetível de erros e de equívocos. Kuhn transforma radicalmente a história e a filosofia da ciência. Antes dele os mais notáveis filósofos do Círculo de Viena, como Rudolf Carnap e Karl Popper, apesar de algumas divergências, acreditavam que o progresso e o êxito da ciência eram decorrentes de um método próprio, rigoroso, válido para todas as ciências e aplicável a todas as contingências históricas e culturais. Kuhn vai criticar o método do falseacionismo de Popper por ser normativo e prescritivo, o que o liga a Carnap e a tradição herdada; ele também vai refutar o núcleo da teoria de Carnap, ao afirmar que a distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica não era tão evidente, pois as teorias são impregnadas de evidencias.
Desse modo a pretensa objetividade científica se esbarra nas incertezas e nos limites do conhecimento. Um ponto que suscitou amplos debates na comunidade cientifica foi o fato de Kuhn não ter se preocupado em estabelecer, à risca, uma linha fronteiriça entre ciência e não ciência. Para ele existiriam, no âmago da própria ciência, elementos que são claramente sociológicos, como autoridade, hierarquia e grupos de referência.
Contra modelos definitivos, Kuhn defende a ideia de que a ciência se constitui de modelos provisórios, os paradigmas, que é um conjunto de crenças, valores e de técnicas compartilhados por grupos de pesquisadores; é sempre um modelo provisório que pode ou não ser confirmado pela experiência. As anomalias de um paradigma permitem a emergência de outros paradigmas que, ao contrário dos positivistas, não são remendos ao paradigma antigo: “(...) para ser aceita como um paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isto nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”.
Numa situação de crise, a disputa entre o paradigma até então dominante e o candidato a novo não pode ser decidida por critérios unicamente racionais, como queria Popper. Para Kuhn, a substituição da antiga pela nova abordagem assume a natureza de uma conversão quase que religiosa, envolvendo uma mudança ou Gestalt.
Um ponto polêmico da teoria de Kuhn, e isto vai gerar um debate acalorados entre ele e Karl Popper é que, ao blindar as teorias, elas não se submetem ao teste de falseamento e isto afastaria a ciência de Kuhn da ciência de “prática superior”, ou seja, aquele recorte da realidade submetido à lógica da refutação.
9.4 PAUL FEYERABEND E O ANARQUISMO METODOLÓGICO
Paul Feyerabend (1924-1994) vai afirmar que a ciência não tem características especiais que a tornam superior a outros saberes humanos. Ela deve seu prestigio ao fato de ser uma espécie de religião moderna desempenhando a mesma função que desempenhou a religião na idade média, além do que os métodos científicos não foram exitosos em oferecer regras adequadas para orientar os cientistas e estabelecer as fronteiras da ciência e da não ciência:
É possível naturalmente simplificar o meio em que o cientista atua, através da simplificação de seus principais fatores. Afinal de contas, a história das ciências não consiste apenas de fatos e de conclusões retiradas dos fatos. Contem, a par disso, ideias, interpretação de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante. Análise mais profunda mostra que a ciência não conhece “fatos nus”, pois os fatos de que tomamos conhecimento já são vistos sob certo ângulo, sendo, em consequência, essencialmente ideativos. Se assim é, a história da ciência será tão complexa, caótica, permeada de enganos e diversificada quanto o sejam as ideias que encerra; e essas ideias, por sua vez, serão tão complexas, caóticas, permeadas de enganos e diversificadas quanto às mentes dos que a inventaram. (FEYRABEND, 1989,20)
Sobre a educação cientifica Feyerabend observa que:
A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo define-se um campo de pesquisa; esse campo é desligado do resto da história (a Física por exemplo, é separada da metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo, nesse tipo de ‘lógica’, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniforme as ações de tais pessoas, ao mesmo tempo em que congela grandes porções de processos históricos. (IDEM, 21)
Ele critica Popper, quanto a sua pretensão de estabelecer um método científico unificado, capaz de definir se certa prática era científica ou não. Assim a ciência teria que obedecer a um método. O anarquismo epistemológico de Feyerabend pode ser compreendido como um critica ao método único de Popper e seu “anarquismo metodológico” pode ser compreendido como um pluralismo metodológico.
Na esteira da crítica radical realizada por Khun e da tradição herdada da filosofia da ciência e do modelo de ciência vigente, surgem à concepção estruturalista representada por Adams e Supppes e a corrente sociológica das ciências com D. Bloor e S. Fuller, a corrente antropológica de Bruno Latour. Na concepção estruturalista, Adams/Suppes defendem que a parte formal e a parte aplicativa de uma teoria se articulam em diversos níveis de especificidades e se expressam pela noção de rede teórica . Eles fazem uma análise e reconstrução das teorias mediante o instrumental modelo/teórico da teoria informal dos conjuntos, onde se analisam as teorias como entidades estruturalmente complexas e susceptíveis de evolução, com um “núcleo” central imutável e com um entorno complementar mutável. Nesta concepção, abole-se a distinção teórico/observacional ou a dependência que a teoria tem da observação, concepção tão cara aos positivistas lógicos.
No presente, a filosofia da ciência se abre para outras perspectivas, com abordagens mais abrangentes que a enriquecem como um saber, não sobre um determinado padrão hegemônico de ciência, como a filosofia da ciência de orientação positivista; mas como a ciência é também entendida e realizada pelos cientistas, como ela é projetada e como se torna um projeto social, a quem serve e por quê. Esse deslocamento dos objetos de estudo da filosofia da ciência permitiu o resgate da dimensão humana do fazer ciência. Hoje, há áreas de pesquisa sobre como os cientistas são formados, qual a mentalidade de ciência que é difundida nas escolas e universidades, a análise de gênero no fazer ciência, pesquisas sobre a comunicação científica. Esse outro olhar não exclui o rigor desta disciplina e nem a diminui enquanto saber, muito pelo contrário, ao seu forte viés cientificista, leia-se positivista, têm surgido outros enfoques que possibilitam uma análise mais abrangente do fazer ciência e dos seus impactos na sociedade.
9.5 A CIÊNCIA E SEU HÍBRIDO: A TECNOCIÊNCIA
Na atualidade ocorre o entrelaçamento da filosofia da ciência com a filosofia da tecnologia, formando aquilo que Latour (1983) denominará de tecnociência, ou seja, a hibridização da ciência com a técnica para formar a tecnociência. Javier Echeverría ao analisar o fenômeno observa que não se trata mais de uma revolução interna no âmbito das ciências, como a que ocorreu no século XVII, em termos Kuhniano; mas de uma mudança radical da atividade científica, na própria estrutura do que fazem os cientistas e engenheiros e se manifesta na investigação, no desenvolvimento e a inovação: “[...] Es dicir, ya no solo se trata de investigar, sino que hay que generar desarrollos tecnológicos que deriven em innovaciones que se pongan en prática em el mercado, em la empresa, en la sociedad”.
Esse processo converge, segundo Echeverría, para uma espécie de ente simbólico denominado por ele de tecnociência onde o prestigio social dos cientistas e dos engenheiros cresce: “Dos claros ejemplos do que Ilamo tecnociencia,-esta convergência entre nanotecnologia, biotecnologia, tecnologías de la información y ciencias cognitivas [...]” Numa perspectiva evolutiva, Echeverría afirma que ciência e tecnologia seguem sendo entes separados mas tem ocorrido uma hibridização destes entes e surge um novo ramo evolutivo fruto dessa hibridação: a tecnociência.
Echeverría aponta duas fases da revolução tecnocientífica: a primeira dá-se à época da Segunda Guerra Mundial (1939-45) que ocorreu nos EUA com a montagem de megaprojetos amparados numa tecnoburocracia militar, voltada para o esforço de guerra, que teve como síntese o Projeto Manhattan (1942-47), que tinha como objetivo intensificar pesquisa na área nuclear com o objetivo de produzir uma bomba atômica. Echeverría ressalta que essa revolução tecnológica é levada a cabo por cientistas. Esse modelo de pesquisa e aplicação da tecnociência foi expandido a outras partes do globo, como a Europa, notadamente a URSS. Foi a tecnociência que permitiu o lançamento do Sputnik, o primeiro satélite artificial posto em orbita pelo homem, como também, graças aos seus desdobramentos nas décadas de 50 de 60, permitiu a Guerra Fria, o conflito entre as duas superpotências, marcado pelo desenvolvimento de pesquisas voltadas para a criação de arsenais de guerra, tendo como eixo a corrida espacial e a corrida armamentista e pela disputa tecnocientífica. Outra fase da revolução tecnocientífica, apontada por Echeverría, ocorre com a crise da big ciência militarizada em decorrência dos protestos acadêmicos ocorridos, sobretudo nos EUA e Europa central. Um aspecto relevante da revolução tecnocientífica, apontado por Echeverría, é que inicialmente a relação dos cientistas com a sociedade era relativamente amistosa, com o desenvolvimento da tecnociência e com seu enorme poder, a sociedade passou a desconfiar dos especialistas. Para Echeverría:
La tecnociencia como tal es una segunda fase estrechamente ligada a megaciencia; esta última sigue existiendo, pero há ocurrido una mutación a partir de los años ochenta que tiene que ver con el proyecto Genoma, e con empresas como Microsoft, Intel e Google. (ECHEVERRÍA, 12)
Echeverría afirma ainda que é difícil conceituar a tecnociência para ele “tecnociencia es una metodología de rasgos distintivos, de diferencias entre ciencia y tecnología, por un lado, y entre tecnología y tecnociencia, por outro”. Ele observa que a revolução científica em termos Kuhniano sempre falava de paradigma e de suas mudanças e que o paradigma era basicamente uma estrutura epistêmica, de conhecimento, teorias e generalizações simbólicas relacionadas ao conhecimento científico, o que não ocorre com a revolução tecnocientífica que demanda inversões em investigação. Entretanto, Echeverría observa que, embora restrito ao âmbito da ciência, a concepção de paradigma de Kuhn pode ser utilizada para compreender a prática dos cientistas e engenheiros. A tecnociência está vinculada de alguma maneira a uma comunidade cientifica, mas ela se integra a um novo tipo de organização que são as empresas de tecnociência que podem ser públicas ou privadas. Para Echeverría as teorias da racionalidade científica e tecnológica se baseiam em objetivos ligados ao avanço do conhecimento, busca de novos conhecimentos, busca da verdade ou a aproximação da verdade.
9.6 CIÊNCIA E PÓS-MODERNIDADE
Para Alfredo Marcos, a aspiração à “certeza” e a “autonomia” são a “chave” para o entendimento da modernidade. Para ele, estas duas aspirações estão conectadas e se constituem em valores. Mas o problema é quando cada uma destes valores se desconectam do mundo da vida e tornam-se fins em si mesmos que é o que tem acontecido com a razão instrumental que a despeito de todas as suas conquistas, tem colonizado o mundo da vida. Ou como adverte Marcos, quando a autonomia se torna um valor absoluto quando não se faz a conexão necessária entre seus distintos âmbitos. Marcos vai abordar dois filósofos que partem de uma visão sistêmica da ciência, Jürgen Habermas e Evandro Agazzi, que para ele são dois projetos originais e influentes na análise do conjunto da vida humana. Ele observa que Agazzi toca em questões de filosofia social, partindo de um interesse original pela filosofia da ciência e Habermas, partindo de uma analise da filosofia social, toca em questões fundamentais da filosofia da ciência. Esta confluência é hoje inevitável já que a tecnociência é na atualidade um elemento fundamental de configuração social, pois não se pode entender a sociedade atual sem o fator tecnocientífico. Na perspectiva sistêmica, ciência e técnica são vistas como subsistemas sociais. A vantagem desta concepção é colocar a ciência e a técnica como parte de um sistema social mais amplo, evitando-se a sua absolutização, a sua reificação, como se fossem entes separados do resto dos sistemas sociais, econômicos, políticos e ambientais. Ele cita Agazzi e sua observação quanto ao fato de que certa visão fechada de autonomia pode reduzir à esfera moral a intimidade dos indivíduos, sem a possibilidade de discussão pública reduzida a uma questão de preferências ou de fé. De outro lado, Marcos observa que Habermas afirma que à esfera intelectual foi se impondo uma visão científica do mundo e de uma racionalidade da eficiência tecnológica que é sintetizada na expressão “colonização do mundo da vida".
Para Marcos, o debate atual sobre a autonomia da ciência não deve ser feito a partir de preconceitos e prejuízos e nem reduzi-los ao horizonte moral, mas a questões de fundo sistêmico que fatalmente conduzem a questões de ordem ética. A perspectiva sistêmica pode ajudar a superar a oposição entre os distintos âmbitos da autonomia sem anular a diferença entre eles e nem a sua própria condição de autonomia. O enfoque sistêmico vê a tecnociência como um sistema de ação humana, ou seja, um subsistema do sistema social; e todos esses subsistemas, formam-se em torno do meio ambiente social onde a tecnociência se move. Trata-se de um sistema adaptativo, pois é capaz de modificar-se ou de modificar seu entorno em certo grau para reequilibrar-se ou para se desenvolver. Para ele, estaríamos, assim, diante de um sistema de ações humanas, social, aberto e adaptativo. Marcos cita Evandro Agazzi que fala das “variáveis essências” de um sistema necessárias ao seu funcionamento. O fracasso dessas funções pode se dar por tensões internas ou por pressões externas ao sistema.
Fala da obra de Thomas Khun a La tensión esencial , onde ele afirma que certas tensões são essenciais para a preservação do sistema e para o seu funcionamento. Marcos observa que as tensões internas de um sistema estão submetidas também a pressões externas. Para ele, dificilmente a história e a filosofia da ciência poderiam se desconectar dos fatores externos. Observa ainda que o debate sobre autonomia conecta Habermas a pós-modernidade. Fala sobre a necessidade de se ir além das querelas sobre o debate entre modernidade e pós-modernidade. Da necessidade da “certeza” na emancipação e racionalização que são desejos perseguidos por todo o gênero humano desde Sócrates. Para Marcos, no lugar de esvaziar completamente o conceito de modernidade para seguir declarando-se moderno, pode-se optar por reter a aspiração à certeza, a busca da autonomia e a confiança na ciência como aspecto da modernidade.
Neste sentido, a tarefa que se impõe a filosofia da ciência no contexto pós-moderno, é o de procurar a continuidade da ciência e para isto, faz-se necessário buscar na filosofia da tecnologia, novas fontes de legitimidade epistêmica e social da ciência. Seria possível um filosofia da ciência pós-moderna, sem que se abrace o contextualismo radical, e nem outros modos de relativismo. Para ele, o enfoque sistêmico que reflete sobre as relações entre a tecnociência e outro âmbitos da vida humana, se constitui, num importante passo a ser dado.
De outro lado, a partir da segunda metade do século XX, ocorre a chamada revolução tecnocientífica que forma uma espécie de hibrido da ciência com a tecnologia introduzindo questões novas a reflexão filosófica sobre a ciência e a tecnologia. A seguir faremos um sucinto panorama da filosofia da ciência a partir da concepção de alguns de seus principais representantes, seja do positivismo lógico, seja das correntes críticas desta concepção, em seguida abordaremos especificamente a questão da revolução tecnocientífica.
A Filosofia da Ciência emerge como disciplina nos fins do século XIX e mais tarde, vai ser fortemente influenciada pelo positivismo lógico. O Circulo de Viena, também denominado de “positivismo lógico”, tendo como inspiradores Gottlob Frege (1848-1925), Bertrand Russel (1872-1970) e Alfred N. Whitehead (1861-1947) fundadores da lógica e da matemática moderna. A obra de Frege foi o ponto de partida para as investigações lógicas da linguagem realizadas por Ludwig Wittgenstein (1889-1951). O positivismo lógico foi por muito tempo a corrente hegemônica da filosofia das ciências. Seus principais expoentes foram: Rudolf Carnap (1891-1970); Otto Neurath (1882-1945); e o grupo de Berlim, liderado por Hans Reichenbach (1891-1953) A esse grupo se juntam depois da Segunda Guerra Mundial: Ernest Nagel (1901-1985) ; Karl Popper (1902-1994), e Carl G. Hempel (1905-1977). Karl Popper, Ernest Nagel e Hempel são os mais influentes filósofos da ciência dessa segunda fase do positivismo lógico.
Rudolf Carnap (1891-1970) defendia uma linguagem protocolar para a ciência e, numa perspectiva linguística, procurava dar respostas aos problemas científicos e filosóficos. Carnap fazia uma distinção da linguagem da ciência, entre vocabulário observacional e vocabulário teórico. Ele compreendia que a fundamentação do conhecimento na experiência ocorria a partir daquilo que era dado pela observação direta dos fenomênicos observáveis captados pelos termos observáveis. Termos como observável e inobservável são fundamentais para Carnap . Ele distingue dois tipos de leis: as leis empíricas e as leis teóricas. As primeiras contem termos diretamente observáveis pelos sentidos e podem ser confirmadas diretamente. As leis teóricas não podem ser observadas diretamente, desse modo o vocabulário observacional se refere apenas aquilo que é observável. Para Carnap, só haveria experiência através da observação direta. Como desprendimento de suas concepções ele rejeita a metafísica por se tratar de um conhecimento inútil e reduz as diferentes ciências à física.
Ernest Nagel (1901-1985) é um dos mais importantes representantes do positivismo lógico. Ele defendia uma concepção reducionista. Para Abbagnano o reducionismo se refere a “[...] concepções consideradas unilaterais ou parciais, ou que se acredite não respeitarem a complexidade ou a articulação de um fenômeno ou de uma teoria [...] Para Nagel, redução seria: "[...] a explicação de uma teoria ou um conjunto de leis experimentais estabelecidas em uma área de pesquisa, por uma teoria geralmente, embora não invariavelmente, formulada para algum outro domínio".
O reducionismo tanto epistemológico como teórico tem suscitado amplos debates na medida em que a realidade é muito complexa para ser reduzida apenas a um aspecto, como por exemplo, a teoria marxista ou freudiana que reduzem as suas teorias a aspectos econômicos (Marx) e a sexualidade (Freud), o reducionismo ontológico da biologia que reduz a vida a estrutura molecular, o reducionismo metodológico que reduz o todo pelas partes.
Karl Popper (1902-1994), um dos mais importantes representantes do positivismo lógico em sua segunda fase, propôs que as teorias científicas se distinguem das teorias pseudocientíficas justamente por sua falseabilidade. Só assim pode-se progredir na direção de um melhor conhecimento do mundo, por um processo incessante de conjeturas e refutações . Segundo Popper, o falseacionismo foi uma tentativa de demarcação científica, pois o que define o estatuto de cientificidade teórica é ela se submeter a um teste, ou seja, ser falseada. Para Popper existe uma distinção entre observação e teoria. O contexto da justificação separa-se do contexto da descoberta, havendo um método científico único, o das ciências da natureza ou o método experimental.
Para Carl G. Hempel (1905-1977), as teorias são a chave para a compreensão cientifica dos fenômenos empíricos . Elas são construídas normalmente só quando uma investigação prévia em um determinado campo tem produzido um corpo de conhecimentos, que inclui generalizações empíricas ou supostas leis acerca dos fenômenos investigados. Para Hempel, a teoria se propõe a ter um conhecimento mais profundo construindo os fenômenos como manifestação de certos processos subjacentes governados por leis que dão conta das regularidades previamente estudadas.
Para Habermas, as ciências positivas, compartilham com a tradição da grande filosofia o conceito de teoria; mas destroem a pretensão clássica desta tradição, em dois momentos herdados da tradição filosófica: o sentido metódico da atitude teórica e a suposição fundamental de uma estrutura do mundo independente do cognoscente. Por outro lado, a conexão, instaurada desde Platão a Husserl, de theoria e cosmos, de mimeses e bios theoretikós, tem se perdido. A concepção da teoria como um processo educativo se torna apócrifa. Aquela assimilação mimética da alma das aparentemente contempladas proporções do universo não havia feito mais que pôr o conhecimento teórico a serviço de uma internalização de normas.
Numa linha que se aproxima de Popper, Habermas pensa a racionalidade através de seu vínculo com a linguagem e ela é passível de refutações. A racionalidade expressada através da linguagem nos caracteriza como seres da linguagem e sua validade se revela no próprio ato da comunicação, seja ela científica ou ordinária.
Para Giddens:
Os positivistas lógicos classificaram inicialmente grande parte dos dilemas tradicionais e ontológicos da filosofia como pertinentes à metafísica e, assim, como externos ao escopo da discussão racional. As disputas entre o fenomenismo, o realismo, o idealismo e assim por diante, foram abandonadas como desprovidas de significação, na medida em que não havia nenhum modo pela qual elas pudessem ser submetidas a qualquer caracterização do princípio de verificação. Contudo, acreditavam que algumas questões relevantes destes debates de longa data poderiam ser sustentadas e resolvidas se fossem tratadas como debates sobre linguagens filosóficas apropriadas. (GIDDENS, 1997, 187-188)
9.1 WITTGENSTEIN E A VIRADA LINGUÍSTICA
Em um primeiro momento Ludwig Wittgenstein (1889-1951), esteve vinculado ao Circulo de Viena e isto fica patente com o Tractatus Logico Philosophicus (1921), através de uma linguagem tomada emprestada da lógica de Frege e de Russel. Nada que escapasse a linguagem protocolar e idealizada que seria considerada conhecimento válido, mas apenas aquilo que caberia em seu propósito lógico e de combinação. Essa linguagem ideal procura descrever a estrutura objetiva da realidade e a sua correspondência em termos linguísticos. Na introdução do tratado ele afirma:
Trata de problemas filosóficos e mostra, creio eu, que o questionar desses problemas repousa na má compreensão da lógica de nossa linguagem. Poder-se-ia apanhar todo o sentido do livro com estas palavras: em geral o que se pode ser dito, o pode ser claramente, mas o que não se pode falar deve-se calar (WITTGEINSTEN, 1969, 53)
Sobre a verdade de suas proposições ele afirma:
No entanto a verdade dos pensamentos comunicados aqui me parece intocável e definitiva, de modo que penso ter resolvido os problemas no que é essencial. Se não me engano, o segundo valor desse trabalho é mostrar quão pouco se consegue quando se resolvem tais problemas. (Idem, 1969, 53)
Wittgenstein, nessa obra, através da lógica e da linguagem procura resolver os problemas da subjetividade já que a linguagem deveria guardar correspondência objetiva com o mundo e com isto a metafísica perde sentido.
Em uma mudança radical de seu pensamento, Wittgenstein se afasta do projeto neopositivista de uma linguagem ideal e cunha os termos jogos de linguagem. É nas Investigações Filosóficas que Wittgenstein, influenciado pela teoria dos jogos e pelas leis probabilísticas, vai constatar que a realidade não guarda uma relação necessária com a linguagem. A realidade fornece possibilidades de jogos de linguagem que guardam igualdades de família e alguma semelhança entre eles. Wittgenstein vai de encontro à noção de uma linguagem privada, pois não haveria uma linguagem exclusiva do sujeito falante. A linguagem é imprecisa e nem sempre tem correspondência com aquilo a que se refere. Ao afirmar que não há linguagem privada ele faz uma critica ao sujeito moderno, a tradição cartesiana e as filosofias do sujeito.
Ele buscava na lógica e na linguagem uma saída para resolver a questão da subjetividade. Deste modo, os problemas filosóficos passaram cada vez mais a ser problemas da linguagem. Nietzsche e Wittgenstein foram principais expoentes da critica ao sujeito moderno.
9.2 CRÍTICAS A TRADIÇÃO HERDADA
No pós-guerra surge toda uma discussão em torno do poder das tecnociência e consequentemente do padrão vigente de ciências e das teorias que as sustentam no plano metodológico. Nesse período surgem duas correntes na filosofia das ciências: a corrente historicista e a semântica. A corrente historicista representada por Thomas Kuhn (1922-1996), Paul K. Feyerabend (1924-1994) e Imre Lakatos (1922-1974). Estas duas concepções rompem com a chamada tradição herdada da filosofia da ciência.
Imre Lakatos (1922-1974), filósofo da ciência húngaro de ascendência judia, um dos mais importantes representantes da filosofia das ciências do pós-guerra, herdeiro da chamada tradição herdada, sobretudo de Karl Popper de quem vai afirmar que:
A sua filosofia me ajudou a romper, de forma definitiva, com a perspectiva hegeliana que eu havia retido durante quase vinte anos, e, o que é ainda mais importante, me forneceu um conjunto muito fértil de problemas, um autêntico programa de pesquisa. (LAKATOS, 1989, 18)
Apesar de reconhecer a influencia de Popper em sua formação teórica, ele irá absorver as críticas feitas a ale por Kuhn e Feyerabend. Para Lakatos, a avaliação objetiva do crescimento do conhecimento científico, deve ser realizada em termos de mudanças, progressivas ou regressivas, para séries de teorias científicas dentro de um Programa de Pesquisa. Para ele, a história da ciência deve ser vista como a história dos programas de pesquisa e não das teorias isoladas. Em sua concepção de programa de pesquisa há um núcleo duro, composto por teorias irrefutáveis e em seu entorno há um cinturão protetor, constituído por hipóteses e teoria auxiliares, que podem ser refutadas sem que se modifique o núcleo duro, ou a teoria principal. A anomalia do cinturão protetor de um programa de pesquisa pode sofrer ajustes ad-hoc, ou post-hoc. Ao contrário do irracionalismo de Kuhn, quanto às rupturas ocasionadas pelas revoluções científicas, Lakatos vai defender que estas rupturas são racionais e marcadas pela substituição de um programa por outro.
Para Lakatos as ciências progridem pela pluralidade de programas de pesquisas concorrentes. A superação de um programa só acontece quanto houver um programa melhor. Lakatos é considerado um racionalista crítico e nisto ele compartilha das ideias de Popper e Feyerabend, de que a ciência avança a partir de um método de conjectura e de refutações, como defendia Popper, embora Lakatos veja o método científico de Popper como ingênuo, na medida em que, as teorias refutadas deveriam ser descartadas.
9.3 THOMAS KUHN E A ESTRUTURA DAS REVOLUÇÕES CIENTÍFICAS
Um dos questionamentos mais radicais do modelo de ciências vigente até então foi feito por Thomas Kuhn, em sua obra já clássica A Estrutura das Revoluções Científicas (1962), Kuhn faz uma crítica interna ao padrão vigente de ciência e de como ela era vista e concebida pelos filósofos e cientistas. Para ele, não há uma certeza infalível sobre o objeto estudado bem como distinção entre a observação e a teoria; por outro lado, a ciência não é cumulativa como entendiam os positivistas lógicos e não há um método único de se fazer ciência, a ciência é um empreendimento humano, suscetível de erros e de equívocos. Kuhn transforma radicalmente a história e a filosofia da ciência. Antes dele os mais notáveis filósofos do Círculo de Viena, como Rudolf Carnap e Karl Popper, apesar de algumas divergências, acreditavam que o progresso e o êxito da ciência eram decorrentes de um método próprio, rigoroso, válido para todas as ciências e aplicável a todas as contingências históricas e culturais. Kuhn vai criticar o método do falseacionismo de Popper por ser normativo e prescritivo, o que o liga a Carnap e a tradição herdada; ele também vai refutar o núcleo da teoria de Carnap, ao afirmar que a distinção entre linguagem observacional e linguagem teórica não era tão evidente, pois as teorias são impregnadas de evidencias.
Desse modo a pretensa objetividade científica se esbarra nas incertezas e nos limites do conhecimento. Um ponto que suscitou amplos debates na comunidade cientifica foi o fato de Kuhn não ter se preocupado em estabelecer, à risca, uma linha fronteiriça entre ciência e não ciência. Para ele existiriam, no âmago da própria ciência, elementos que são claramente sociológicos, como autoridade, hierarquia e grupos de referência.
Contra modelos definitivos, Kuhn defende a ideia de que a ciência se constitui de modelos provisórios, os paradigmas, que é um conjunto de crenças, valores e de técnicas compartilhados por grupos de pesquisadores; é sempre um modelo provisório que pode ou não ser confirmado pela experiência. As anomalias de um paradigma permitem a emergência de outros paradigmas que, ao contrário dos positivistas, não são remendos ao paradigma antigo: “(...) para ser aceita como um paradigma, uma teoria deve parecer melhor que suas competidoras, mas não precisa (e de fato isto nunca acontece) explicar todos os fatos com os quais pode ser confrontada”.
Numa situação de crise, a disputa entre o paradigma até então dominante e o candidato a novo não pode ser decidida por critérios unicamente racionais, como queria Popper. Para Kuhn, a substituição da antiga pela nova abordagem assume a natureza de uma conversão quase que religiosa, envolvendo uma mudança ou Gestalt.
Um ponto polêmico da teoria de Kuhn, e isto vai gerar um debate acalorados entre ele e Karl Popper é que, ao blindar as teorias, elas não se submetem ao teste de falseamento e isto afastaria a ciência de Kuhn da ciência de “prática superior”, ou seja, aquele recorte da realidade submetido à lógica da refutação.
9.4 PAUL FEYERABEND E O ANARQUISMO METODOLÓGICO
Paul Feyerabend (1924-1994) vai afirmar que a ciência não tem características especiais que a tornam superior a outros saberes humanos. Ela deve seu prestigio ao fato de ser uma espécie de religião moderna desempenhando a mesma função que desempenhou a religião na idade média, além do que os métodos científicos não foram exitosos em oferecer regras adequadas para orientar os cientistas e estabelecer as fronteiras da ciência e da não ciência:
É possível naturalmente simplificar o meio em que o cientista atua, através da simplificação de seus principais fatores. Afinal de contas, a história das ciências não consiste apenas de fatos e de conclusões retiradas dos fatos. Contem, a par disso, ideias, interpretação de fatos, problemas criados por interpretações conflitantes, erros e assim por diante. Análise mais profunda mostra que a ciência não conhece “fatos nus”, pois os fatos de que tomamos conhecimento já são vistos sob certo ângulo, sendo, em consequência, essencialmente ideativos. Se assim é, a história da ciência será tão complexa, caótica, permeada de enganos e diversificada quanto o sejam as ideias que encerra; e essas ideias, por sua vez, serão tão complexas, caóticas, permeadas de enganos e diversificadas quanto às mentes dos que a inventaram. (FEYRABEND, 1989,20)
Sobre a educação cientifica Feyerabend observa que:
A educação científica, tal como hoje a conhecemos, tem precisamente esse objetivo. Simplifica a ciência, simplificando seus elementos: antes de tudo define-se um campo de pesquisa; esse campo é desligado do resto da história (a Física por exemplo, é separada da metafísica e da Teologia) e recebe uma ‘lógica’ própria. Um treinamento completo, nesse tipo de ‘lógica’, leva ao condicionamento dos que trabalham no campo delimitado; isso torna mais uniforme as ações de tais pessoas, ao mesmo tempo em que congela grandes porções de processos históricos. (IDEM, 21)
Ele critica Popper, quanto a sua pretensão de estabelecer um método científico unificado, capaz de definir se certa prática era científica ou não. Assim a ciência teria que obedecer a um método. O anarquismo epistemológico de Feyerabend pode ser compreendido como um critica ao método único de Popper e seu “anarquismo metodológico” pode ser compreendido como um pluralismo metodológico.
Na esteira da crítica radical realizada por Khun e da tradição herdada da filosofia da ciência e do modelo de ciência vigente, surgem à concepção estruturalista representada por Adams e Supppes e a corrente sociológica das ciências com D. Bloor e S. Fuller, a corrente antropológica de Bruno Latour. Na concepção estruturalista, Adams/Suppes defendem que a parte formal e a parte aplicativa de uma teoria se articulam em diversos níveis de especificidades e se expressam pela noção de rede teórica . Eles fazem uma análise e reconstrução das teorias mediante o instrumental modelo/teórico da teoria informal dos conjuntos, onde se analisam as teorias como entidades estruturalmente complexas e susceptíveis de evolução, com um “núcleo” central imutável e com um entorno complementar mutável. Nesta concepção, abole-se a distinção teórico/observacional ou a dependência que a teoria tem da observação, concepção tão cara aos positivistas lógicos.
No presente, a filosofia da ciência se abre para outras perspectivas, com abordagens mais abrangentes que a enriquecem como um saber, não sobre um determinado padrão hegemônico de ciência, como a filosofia da ciência de orientação positivista; mas como a ciência é também entendida e realizada pelos cientistas, como ela é projetada e como se torna um projeto social, a quem serve e por quê. Esse deslocamento dos objetos de estudo da filosofia da ciência permitiu o resgate da dimensão humana do fazer ciência. Hoje, há áreas de pesquisa sobre como os cientistas são formados, qual a mentalidade de ciência que é difundida nas escolas e universidades, a análise de gênero no fazer ciência, pesquisas sobre a comunicação científica. Esse outro olhar não exclui o rigor desta disciplina e nem a diminui enquanto saber, muito pelo contrário, ao seu forte viés cientificista, leia-se positivista, têm surgido outros enfoques que possibilitam uma análise mais abrangente do fazer ciência e dos seus impactos na sociedade.
9.5 A CIÊNCIA E SEU HÍBRIDO: A TECNOCIÊNCIA
Na atualidade ocorre o entrelaçamento da filosofia da ciência com a filosofia da tecnologia, formando aquilo que Latour (1983) denominará de tecnociência, ou seja, a hibridização da ciência com a técnica para formar a tecnociência. Javier Echeverría ao analisar o fenômeno observa que não se trata mais de uma revolução interna no âmbito das ciências, como a que ocorreu no século XVII, em termos Kuhniano; mas de uma mudança radical da atividade científica, na própria estrutura do que fazem os cientistas e engenheiros e se manifesta na investigação, no desenvolvimento e a inovação: “[...] Es dicir, ya no solo se trata de investigar, sino que hay que generar desarrollos tecnológicos que deriven em innovaciones que se pongan en prática em el mercado, em la empresa, en la sociedad”.
Esse processo converge, segundo Echeverría, para uma espécie de ente simbólico denominado por ele de tecnociência onde o prestigio social dos cientistas e dos engenheiros cresce: “Dos claros ejemplos do que Ilamo tecnociencia,-esta convergência entre nanotecnologia, biotecnologia, tecnologías de la información y ciencias cognitivas [...]” Numa perspectiva evolutiva, Echeverría afirma que ciência e tecnologia seguem sendo entes separados mas tem ocorrido uma hibridização destes entes e surge um novo ramo evolutivo fruto dessa hibridação: a tecnociência.
Echeverría aponta duas fases da revolução tecnocientífica: a primeira dá-se à época da Segunda Guerra Mundial (1939-45) que ocorreu nos EUA com a montagem de megaprojetos amparados numa tecnoburocracia militar, voltada para o esforço de guerra, que teve como síntese o Projeto Manhattan (1942-47), que tinha como objetivo intensificar pesquisa na área nuclear com o objetivo de produzir uma bomba atômica. Echeverría ressalta que essa revolução tecnológica é levada a cabo por cientistas. Esse modelo de pesquisa e aplicação da tecnociência foi expandido a outras partes do globo, como a Europa, notadamente a URSS. Foi a tecnociência que permitiu o lançamento do Sputnik, o primeiro satélite artificial posto em orbita pelo homem, como também, graças aos seus desdobramentos nas décadas de 50 de 60, permitiu a Guerra Fria, o conflito entre as duas superpotências, marcado pelo desenvolvimento de pesquisas voltadas para a criação de arsenais de guerra, tendo como eixo a corrida espacial e a corrida armamentista e pela disputa tecnocientífica. Outra fase da revolução tecnocientífica, apontada por Echeverría, ocorre com a crise da big ciência militarizada em decorrência dos protestos acadêmicos ocorridos, sobretudo nos EUA e Europa central. Um aspecto relevante da revolução tecnocientífica, apontado por Echeverría, é que inicialmente a relação dos cientistas com a sociedade era relativamente amistosa, com o desenvolvimento da tecnociência e com seu enorme poder, a sociedade passou a desconfiar dos especialistas. Para Echeverría:
La tecnociencia como tal es una segunda fase estrechamente ligada a megaciencia; esta última sigue existiendo, pero há ocurrido una mutación a partir de los años ochenta que tiene que ver con el proyecto Genoma, e con empresas como Microsoft, Intel e Google. (ECHEVERRÍA, 12)
Echeverría afirma ainda que é difícil conceituar a tecnociência para ele “tecnociencia es una metodología de rasgos distintivos, de diferencias entre ciencia y tecnología, por un lado, y entre tecnología y tecnociencia, por outro”. Ele observa que a revolução científica em termos Kuhniano sempre falava de paradigma e de suas mudanças e que o paradigma era basicamente uma estrutura epistêmica, de conhecimento, teorias e generalizações simbólicas relacionadas ao conhecimento científico, o que não ocorre com a revolução tecnocientífica que demanda inversões em investigação. Entretanto, Echeverría observa que, embora restrito ao âmbito da ciência, a concepção de paradigma de Kuhn pode ser utilizada para compreender a prática dos cientistas e engenheiros. A tecnociência está vinculada de alguma maneira a uma comunidade cientifica, mas ela se integra a um novo tipo de organização que são as empresas de tecnociência que podem ser públicas ou privadas. Para Echeverría as teorias da racionalidade científica e tecnológica se baseiam em objetivos ligados ao avanço do conhecimento, busca de novos conhecimentos, busca da verdade ou a aproximação da verdade.
9.6 CIÊNCIA E PÓS-MODERNIDADE
Para Alfredo Marcos, a aspiração à “certeza” e a “autonomia” são a “chave” para o entendimento da modernidade. Para ele, estas duas aspirações estão conectadas e se constituem em valores. Mas o problema é quando cada uma destes valores se desconectam do mundo da vida e tornam-se fins em si mesmos que é o que tem acontecido com a razão instrumental que a despeito de todas as suas conquistas, tem colonizado o mundo da vida. Ou como adverte Marcos, quando a autonomia se torna um valor absoluto quando não se faz a conexão necessária entre seus distintos âmbitos. Marcos vai abordar dois filósofos que partem de uma visão sistêmica da ciência, Jürgen Habermas e Evandro Agazzi, que para ele são dois projetos originais e influentes na análise do conjunto da vida humana. Ele observa que Agazzi toca em questões de filosofia social, partindo de um interesse original pela filosofia da ciência e Habermas, partindo de uma analise da filosofia social, toca em questões fundamentais da filosofia da ciência. Esta confluência é hoje inevitável já que a tecnociência é na atualidade um elemento fundamental de configuração social, pois não se pode entender a sociedade atual sem o fator tecnocientífico. Na perspectiva sistêmica, ciência e técnica são vistas como subsistemas sociais. A vantagem desta concepção é colocar a ciência e a técnica como parte de um sistema social mais amplo, evitando-se a sua absolutização, a sua reificação, como se fossem entes separados do resto dos sistemas sociais, econômicos, políticos e ambientais. Ele cita Agazzi e sua observação quanto ao fato de que certa visão fechada de autonomia pode reduzir à esfera moral a intimidade dos indivíduos, sem a possibilidade de discussão pública reduzida a uma questão de preferências ou de fé. De outro lado, Marcos observa que Habermas afirma que à esfera intelectual foi se impondo uma visão científica do mundo e de uma racionalidade da eficiência tecnológica que é sintetizada na expressão “colonização do mundo da vida".
Para Marcos, o debate atual sobre a autonomia da ciência não deve ser feito a partir de preconceitos e prejuízos e nem reduzi-los ao horizonte moral, mas a questões de fundo sistêmico que fatalmente conduzem a questões de ordem ética. A perspectiva sistêmica pode ajudar a superar a oposição entre os distintos âmbitos da autonomia sem anular a diferença entre eles e nem a sua própria condição de autonomia. O enfoque sistêmico vê a tecnociência como um sistema de ação humana, ou seja, um subsistema do sistema social; e todos esses subsistemas, formam-se em torno do meio ambiente social onde a tecnociência se move. Trata-se de um sistema adaptativo, pois é capaz de modificar-se ou de modificar seu entorno em certo grau para reequilibrar-se ou para se desenvolver. Para ele, estaríamos, assim, diante de um sistema de ações humanas, social, aberto e adaptativo. Marcos cita Evandro Agazzi que fala das “variáveis essências” de um sistema necessárias ao seu funcionamento. O fracasso dessas funções pode se dar por tensões internas ou por pressões externas ao sistema.
Fala da obra de Thomas Khun a La tensión esencial , onde ele afirma que certas tensões são essenciais para a preservação do sistema e para o seu funcionamento. Marcos observa que as tensões internas de um sistema estão submetidas também a pressões externas. Para ele, dificilmente a história e a filosofia da ciência poderiam se desconectar dos fatores externos. Observa ainda que o debate sobre autonomia conecta Habermas a pós-modernidade. Fala sobre a necessidade de se ir além das querelas sobre o debate entre modernidade e pós-modernidade. Da necessidade da “certeza” na emancipação e racionalização que são desejos perseguidos por todo o gênero humano desde Sócrates. Para Marcos, no lugar de esvaziar completamente o conceito de modernidade para seguir declarando-se moderno, pode-se optar por reter a aspiração à certeza, a busca da autonomia e a confiança na ciência como aspecto da modernidade.
Neste sentido, a tarefa que se impõe a filosofia da ciência no contexto pós-moderno, é o de procurar a continuidade da ciência e para isto, faz-se necessário buscar na filosofia da tecnologia, novas fontes de legitimidade epistêmica e social da ciência. Seria possível um filosofia da ciência pós-moderna, sem que se abrace o contextualismo radical, e nem outros modos de relativismo. Para ele, o enfoque sistêmico que reflete sobre as relações entre a tecnociência e outro âmbitos da vida humana, se constitui, num importante passo a ser dado.