ALGUMA CONSIDERAÇÕES SOBRE A TÉCNICA
A TÉCNICA COMO NECESSIDADE HUMANA
A TÉCNICA COMO NECESSIDADE HUMANA
Em Ortega y Gasset, o conceito antropológico de necessidade humana é de fundamental importância para compreender a evolução da técnica. Ele vê a técnica a partir de três estágios: a técnica do acaso, a praticada pelos homens primitivos, que se destinava a solucionar os problemas cotidianos; a técnica dos artesãos, onde cresce o repertório de atos técnicos, onde o homem ainda não teria consciência do poder dessas técnicas como traço distintivo, prevalece o trabalho artesanal dirigido a fabricação de ferramentas e de utensílios e não de máquinas; Já com a técnica dos técnicos o homem passa a ter consciência do saber especifico que tem ao seu alcance, a máquina substitui a manufatura artesanal e ocorre a divisão do trabalho
Para Gasset, o ser humano busca satisfazer suas necessidades básicas de modo a assegurar a sua existência, bem como intervém na natureza, remodelando-a de modo que, através da técnica, as adversidades do meio natural sejam transformadas para além do estar e do sobreviver, mas do bem-estar. Ao contrario do animal “ que não pode retirar-se do seu repertório de atos naturais, da natureza, porque não é senão ela e ao distanciar-se dela não teria onde meter-se” O homem, ao contrario dos animais, não é a sua circunstância e embora esteja submerso na natureza ele pode sair dela e ensimesma-se e ocupar-se de atividades que não estariam necessariamente voltadas para as suas necessidades mais imediatas. É assim que “Neste momento extra ou sobrenaturais de ensimesmamento e retração em si, inventa e executa esse segundo repositório de atos: faz fogo, faz uma casa, cultiva o campo e monta o automóvel "
Originalmente, essa atividade humana tinha uma aplicação que não separava atos naturais dos atos técnicos e seus resultados tinham um caráter mágico até a fase em que os seres humanos têm consciência de que tem habilidades específicas graças às quais permitem uma maior intervenção da natureza, a fim de moldá-la em seu favor:
Dai decorre que estes atos reformam a circunstância e a natureza, conseguindo que nela haja o que não há-seja o que não há aqui e agora quando se necessita, seja o que em absoluto não há. Pois bem; estes são os atos técnicos, específicos do homem. (ORTEGA & GASSET, 2009, 31)
Ortega & Gasset define a técnica como sendo:
A reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação das suas necessidades.[...] é a reação enérgica contra a natureza ou circunstância que leva a criar entre esta e o homem uma nova natureza, posta sobre aquela. Um sobrenatureza. (IDEM, 2009,30)
Gasset Observa que quatro invenções fundamentais possibilitaram o encurtamento do espaço e do tempo que aproximaram o ser humano do distante:
Obtém a união do homem com o distante - são a técnica do actio in distans – que é o subsolo da técnica atual. O canhão põe em contato imediato os inimigos distantes; a bússola e o compasso, o homem com o astro e os pontos cardeais; a imprensa, o indivíduo, solitário, ensimesmado, com essa periferia infinita – em espaço e tempo - infinita no sentido de não finito - que é a humanidade de possíveis leitores.
(IDEM,2009, 31)
Na medida em que há uma expansão da atividade técnica e de suas aplicações, a especialização substitui o trabalho artesanal e a máquina se impõe: é a “técnica dos técnicos”. Inicia-se um predomínio da técnica e dos técnicos e de uma ciência que empresta seu método experimental à atividade técnica. Neste aspecto, Ortega y Gasset tem uma visão menos otimista da técnica, na medida em que vê com preocupação e desconfiança o entrelaçamento da técnica moderna com a ciência experimental:
Porque ser técnico e só técnico é poder ser tudo e consequentemente não ser nada determinado. De tão cheia de possibilidades, a técnica é mera forma oca-como a lógica mais formalista; é incapaz de determinar o conteúdo da vida. Por isso estes anos em que vivemos, os mais intensamente técnicos que houve na história humana, são dos mais vazios. (IDEM, 2009,80)
Ao se referir ao triunfo da técnica, ele utiliza uma metáfora da medicina, ao se referir ao mundo como um gigantesco aparelho ortopédico.
8.5 SPENGLER E A TÉCNICA COMO ESTRATÉGIA DE VIDA
Oswald Spengler (1880-1936) vê a técnica como condição de existência, meio de sobrevivência na luta constante do homem pela sua autoafirmação. Seu livro mais contundente é a Decadência do Ocidente (1918) onde vai criticar a tradição iluminista e seu “humanismo de gabinete”. A civilização, segundo ele, era fruto da vontade de homens de raça e não de ideias, de homens que conhecem apenas fatos sobre os quais calcula e opera. A humanidade seria uma abstração, ou uma frase sem sentido.
Em sua concepção filosófica da história, que se aproxima do historicismo de Dilthey (1833-1911), ele vê uma oposição entre Natureza e História na qual a cada uma, caberiam métodos específicos. Spengler se afasta das posições positivistas de um método único para todas as ciências. Segundo ele, uma história de inspiração positivista preocupa-se apenas em acumular fatos sem a interpretação dos mesmos, sendo necessário ir além dos nexos causais dos fatos e buscar o Destino que conduz os homens a uma ordem histórica. O Destino que é comum aos seres vivos: nascimento, vida, declínio e morte. Sua concepção de história se baseia nesses ciclos.
Em Spengler, cultura e civilização são termos fundamentais para o seu devir histórico. Considera que a cultura ocidental inicia seu declínio a partir do século XIX com o surgimento da metrópole com sua tendência a absorver as particularidades culturais e onde impera o desenraisamento, o niilismo e o culto à técnica se tornam a religião moderna. O poder das máquinas sobre os homens é o caminho para o seu destino, a sua decadência. Ele fala de uma tecnocracia que opera o aparato “ [...] é o engenheiro sábio sacerdote da máquina” que são as peças fundamentais do sistema. Sobre esse quadro, ele fala das massas amorfas das grandes cidades e sua manipulação pela grande imprensa e o perigo da apropriação da técnica pelo capital; eis a derrocada final, a degeneração dá-se no plano político pela emergência de um governo pessoal destituído de legitimidade, o Cesarismo.''
A técnica em Spengler é estratégia de vida, vontade de poder. Ele afirma que “a técnica é tão antiga quanto a vida que se movimenta livremente no espaço” . Embora a técnica seja um característica geral da espécie animal, incluindo o gênero homo, é a vontade de poder no sentido de Nietzsche que faz o homem livrar-se da coação da espécie onde ele torna a técnica uma tática de vida. Ao unir a mão ao instrumento o homem transmuta-se do mundo da natureza para o mundo da cultura, esse processo dá ao homem poder sobre a natureza, mas também dá inicio ao processo de decadência.
Jeffrey Herf em seu livro o Modernismo Reacionário (1993), aborda a questão do nacionalismo conservador na Alemanha do período entre guerra (1918-1939) , que ele denominará de modernismo reacionário. Ele irá afirmar sobre a visão política de Spengler:
A originalidade de Spengler situava-se na amálgama de um panorama do passado com uma visão de mito e símbolo que indicava a possibilidade de uma nova era de política estetizada amanhecendo no futuro. Mais ainda, ver os avanços da técnica moderna através dos prismas de semelhante simbolismo transformava fatos profanos da vida cotidiana em fatos sagrados e transcendentais. (HERF, 1993, 69)
Essa visão estabelecia um tipo de anticapitalismo de direita, cujo principal elemento a ser criticado não era a máquina, mas o dinheiro, enquanto fator desenraizado, e parasitário.
Não resta dúvida de que seus dois repetitivos volumes estejam cheios de queixas antimodernistas padrão. Mas a obra [A Decadência do Ocidente] não termina em nota de desespero e resignação. É um apelo à ação, o manifesto de um modernismo fendido. A política, o sangue, e tradição devem se levantar para derrotar o poder da Geist e do Geld. (IDEM, 71)
O historiador Herf afirma sobre A Decadência do Ocidente:
A obra está repleta de conhecidos itens do repertório antimodernista, mas também apresenta um tema que recebia menor atenção, qual seja, a conciliação de sentimentos românticos e irracionalistas com o entusiasmo pelo avanço técnico. Os íntimos laços pessoais de Spengler com os industriais alemães e os revolucionários conservadores do Clube de Junho alimentavam sua síntese ambígua de técnica e irracionalismo, que mais tarde propiciou aos engenheiros papel fundamental dentro da nova elite cuja tarefa era resgatar a Alemanha do liberalismo da República de Weimar. (IDEM, 63)
8.6 HEIDEGGER E A TÉCNICA COMO ESQUECIMENTO DO SER
Martin Heidegger, numa perspectiva ontológica, fará uma crítica radical da modernidade, tendo como foco a racionalidade a partir de uma releitura dos clássicos, e como ponto de partida a tradição metafísica grega, notadamente a de Platão. Os gregos, ao explicar o real como totalidade esqueceram o Ser em detrimento do “ser do ente”, dando início a uma concepção de conhecimento que buscava explicar o real em sua totalidade, sem atentar para o fato de que o Ser não se revela em sua plenitude, mas apenas induz o pensamento.
Na modernidade houve um deslocamento da tradição grega e assim os entes foram objetivados e a realidade torna-se objetiva em consonância com um sujeito. A realidade torna-se um objeto a ser conhecido e a verdade se restringe aos limites dessa objetividade. Para Heidegger, Descartes inicia a tradição da razão instrumental e do domínio da natureza pela ciência e pela técnica e isto se traduziu numa dominação planetária da natureza. Essa dominação coloca os objetos inanimados e o próprio ser humano disponível ao afã da tecnociência.
Nos capítulos iniciais da sua obra Ser e Tempo descreve os três aspectos fundamentais para a compreensão do ser-no-mundo, o “dasein” o ser-aí: a facticidade, a existencialidade e a ruína. A facticidade é o estar lançado no mundo alheio a sua vontade; a existencialidade é a relação do eu com o mundo. A ruína do homem dá-se quando ocorre o seu afastamento do projeto essencial como individuo, quando lhe é retirada a possibilidade de dispor de si mesmo, e ao se diluir na massa coletiva, tem sua existência reduzida ao coletivo ao ser-em-comum: “todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo [...]” essa sujeição ao coletivo torna a existência inautêntica. Para Heidegger a alienação do individuo se dá pelo esquecimento de sua essência mais profunda - o Ser. Esse esquecimento da verdade do Ser, que modernamente é operado pela essência da técnica e da metafísica, tem contribuído para a alienação dos indivíduos, para o afastamento do “ser-aí”, de sua vida autêntica.
Para Heidegger, o desastre impetrado pelo primado da técnica é o de nos aprisionar no mundo da atividade, do fazer, sem deixar lugar para a nossa possibilidade de ação, própria da atitude do pro-duzir, que é a capacidade simultânea de agir e se colocar em repouso à espera do surgimento de algo como faziam os gregos.
O desencobrimento que domina a técnica moderna possui, como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar é todos modos de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento não se dá simplesmente. Tampouco, perde-se no indeterminado. pelo controle, o desencobrimento abre para si mesmo suas próprias pistas, entrelaçadas numa trança múltipla e diversa. Por toda parte, assegura-se o controle. Pois controle e segurança constituem as marcas fundamentais do desencobrimento explorador. Que desencobrimento se apropria do que surge e aparece no pôr da exploração? Em toda parte, se dis-põe a estar a postos e assim estar a fim de tornar-se a vir a ser dis-ponível para ulterior dis-ponibilidade. O disponível tem seu próprio esteio. Nós o chamamos de disponibilidade. (HEIDDEGER, 2002, 20)
Por outro lado, a visão de Heidegger que reduz a contemporaneidade ao domínio tecnológico e ao esquecimento do ser não leva em consideração as tensões que existem no âmbito da própria ciência, como observa Castoriadis :
A mesma cegueira conduz Heidegger a ver no período contemporâneo apenas o domínio da técnica e da ‘ciência’ – e nos dois casos, com uma aceitação incrivelmente ingênua da sua pretensa onipotência – e o toma incapaz de ver a crise interna do universo tecnocientífico e, ainda mais importante, as atividades dos seres humanos dirigidos contra o sistema estabelecido e as possibilidades que essas atividades contem. (CASTORIADIS, 1987, 241)
Podemos inferir que o diagnóstico de Heidegger é pertinente quanto ao espaço ocupado pelas tecnologias na atualidade, mas quando não vê saídas para a dominação planetária da técnica, acaba levando a uma paralisia que o impede de ver que há possibilidades de usos emancipatórios dessas tecnologias e que a ciência e os cientistas também se deparam com impasses de ordem epistemológica, metodológica e moral. Há uma crise no interior da própria ciência.
Para Gasset, o ser humano busca satisfazer suas necessidades básicas de modo a assegurar a sua existência, bem como intervém na natureza, remodelando-a de modo que, através da técnica, as adversidades do meio natural sejam transformadas para além do estar e do sobreviver, mas do bem-estar. Ao contrario do animal “ que não pode retirar-se do seu repertório de atos naturais, da natureza, porque não é senão ela e ao distanciar-se dela não teria onde meter-se” O homem, ao contrario dos animais, não é a sua circunstância e embora esteja submerso na natureza ele pode sair dela e ensimesma-se e ocupar-se de atividades que não estariam necessariamente voltadas para as suas necessidades mais imediatas. É assim que “Neste momento extra ou sobrenaturais de ensimesmamento e retração em si, inventa e executa esse segundo repositório de atos: faz fogo, faz uma casa, cultiva o campo e monta o automóvel "
Originalmente, essa atividade humana tinha uma aplicação que não separava atos naturais dos atos técnicos e seus resultados tinham um caráter mágico até a fase em que os seres humanos têm consciência de que tem habilidades específicas graças às quais permitem uma maior intervenção da natureza, a fim de moldá-la em seu favor:
Dai decorre que estes atos reformam a circunstância e a natureza, conseguindo que nela haja o que não há-seja o que não há aqui e agora quando se necessita, seja o que em absoluto não há. Pois bem; estes são os atos técnicos, específicos do homem. (ORTEGA & GASSET, 2009, 31)
Ortega & Gasset define a técnica como sendo:
A reforma que o homem impõe à natureza em vista da satisfação das suas necessidades.[...] é a reação enérgica contra a natureza ou circunstância que leva a criar entre esta e o homem uma nova natureza, posta sobre aquela. Um sobrenatureza. (IDEM, 2009,30)
Gasset Observa que quatro invenções fundamentais possibilitaram o encurtamento do espaço e do tempo que aproximaram o ser humano do distante:
Obtém a união do homem com o distante - são a técnica do actio in distans – que é o subsolo da técnica atual. O canhão põe em contato imediato os inimigos distantes; a bússola e o compasso, o homem com o astro e os pontos cardeais; a imprensa, o indivíduo, solitário, ensimesmado, com essa periferia infinita – em espaço e tempo - infinita no sentido de não finito - que é a humanidade de possíveis leitores.
(IDEM,2009, 31)
Na medida em que há uma expansão da atividade técnica e de suas aplicações, a especialização substitui o trabalho artesanal e a máquina se impõe: é a “técnica dos técnicos”. Inicia-se um predomínio da técnica e dos técnicos e de uma ciência que empresta seu método experimental à atividade técnica. Neste aspecto, Ortega y Gasset tem uma visão menos otimista da técnica, na medida em que vê com preocupação e desconfiança o entrelaçamento da técnica moderna com a ciência experimental:
Porque ser técnico e só técnico é poder ser tudo e consequentemente não ser nada determinado. De tão cheia de possibilidades, a técnica é mera forma oca-como a lógica mais formalista; é incapaz de determinar o conteúdo da vida. Por isso estes anos em que vivemos, os mais intensamente técnicos que houve na história humana, são dos mais vazios. (IDEM, 2009,80)
Ao se referir ao triunfo da técnica, ele utiliza uma metáfora da medicina, ao se referir ao mundo como um gigantesco aparelho ortopédico.
8.5 SPENGLER E A TÉCNICA COMO ESTRATÉGIA DE VIDA
Oswald Spengler (1880-1936) vê a técnica como condição de existência, meio de sobrevivência na luta constante do homem pela sua autoafirmação. Seu livro mais contundente é a Decadência do Ocidente (1918) onde vai criticar a tradição iluminista e seu “humanismo de gabinete”. A civilização, segundo ele, era fruto da vontade de homens de raça e não de ideias, de homens que conhecem apenas fatos sobre os quais calcula e opera. A humanidade seria uma abstração, ou uma frase sem sentido.
Em sua concepção filosófica da história, que se aproxima do historicismo de Dilthey (1833-1911), ele vê uma oposição entre Natureza e História na qual a cada uma, caberiam métodos específicos. Spengler se afasta das posições positivistas de um método único para todas as ciências. Segundo ele, uma história de inspiração positivista preocupa-se apenas em acumular fatos sem a interpretação dos mesmos, sendo necessário ir além dos nexos causais dos fatos e buscar o Destino que conduz os homens a uma ordem histórica. O Destino que é comum aos seres vivos: nascimento, vida, declínio e morte. Sua concepção de história se baseia nesses ciclos.
Em Spengler, cultura e civilização são termos fundamentais para o seu devir histórico. Considera que a cultura ocidental inicia seu declínio a partir do século XIX com o surgimento da metrópole com sua tendência a absorver as particularidades culturais e onde impera o desenraisamento, o niilismo e o culto à técnica se tornam a religião moderna. O poder das máquinas sobre os homens é o caminho para o seu destino, a sua decadência. Ele fala de uma tecnocracia que opera o aparato “ [...] é o engenheiro sábio sacerdote da máquina” que são as peças fundamentais do sistema. Sobre esse quadro, ele fala das massas amorfas das grandes cidades e sua manipulação pela grande imprensa e o perigo da apropriação da técnica pelo capital; eis a derrocada final, a degeneração dá-se no plano político pela emergência de um governo pessoal destituído de legitimidade, o Cesarismo.''
A técnica em Spengler é estratégia de vida, vontade de poder. Ele afirma que “a técnica é tão antiga quanto a vida que se movimenta livremente no espaço” . Embora a técnica seja um característica geral da espécie animal, incluindo o gênero homo, é a vontade de poder no sentido de Nietzsche que faz o homem livrar-se da coação da espécie onde ele torna a técnica uma tática de vida. Ao unir a mão ao instrumento o homem transmuta-se do mundo da natureza para o mundo da cultura, esse processo dá ao homem poder sobre a natureza, mas também dá inicio ao processo de decadência.
Jeffrey Herf em seu livro o Modernismo Reacionário (1993), aborda a questão do nacionalismo conservador na Alemanha do período entre guerra (1918-1939) , que ele denominará de modernismo reacionário. Ele irá afirmar sobre a visão política de Spengler:
A originalidade de Spengler situava-se na amálgama de um panorama do passado com uma visão de mito e símbolo que indicava a possibilidade de uma nova era de política estetizada amanhecendo no futuro. Mais ainda, ver os avanços da técnica moderna através dos prismas de semelhante simbolismo transformava fatos profanos da vida cotidiana em fatos sagrados e transcendentais. (HERF, 1993, 69)
Essa visão estabelecia um tipo de anticapitalismo de direita, cujo principal elemento a ser criticado não era a máquina, mas o dinheiro, enquanto fator desenraizado, e parasitário.
Não resta dúvida de que seus dois repetitivos volumes estejam cheios de queixas antimodernistas padrão. Mas a obra [A Decadência do Ocidente] não termina em nota de desespero e resignação. É um apelo à ação, o manifesto de um modernismo fendido. A política, o sangue, e tradição devem se levantar para derrotar o poder da Geist e do Geld. (IDEM, 71)
O historiador Herf afirma sobre A Decadência do Ocidente:
A obra está repleta de conhecidos itens do repertório antimodernista, mas também apresenta um tema que recebia menor atenção, qual seja, a conciliação de sentimentos românticos e irracionalistas com o entusiasmo pelo avanço técnico. Os íntimos laços pessoais de Spengler com os industriais alemães e os revolucionários conservadores do Clube de Junho alimentavam sua síntese ambígua de técnica e irracionalismo, que mais tarde propiciou aos engenheiros papel fundamental dentro da nova elite cuja tarefa era resgatar a Alemanha do liberalismo da República de Weimar. (IDEM, 63)
8.6 HEIDEGGER E A TÉCNICA COMO ESQUECIMENTO DO SER
Martin Heidegger, numa perspectiva ontológica, fará uma crítica radical da modernidade, tendo como foco a racionalidade a partir de uma releitura dos clássicos, e como ponto de partida a tradição metafísica grega, notadamente a de Platão. Os gregos, ao explicar o real como totalidade esqueceram o Ser em detrimento do “ser do ente”, dando início a uma concepção de conhecimento que buscava explicar o real em sua totalidade, sem atentar para o fato de que o Ser não se revela em sua plenitude, mas apenas induz o pensamento.
Na modernidade houve um deslocamento da tradição grega e assim os entes foram objetivados e a realidade torna-se objetiva em consonância com um sujeito. A realidade torna-se um objeto a ser conhecido e a verdade se restringe aos limites dessa objetividade. Para Heidegger, Descartes inicia a tradição da razão instrumental e do domínio da natureza pela ciência e pela técnica e isto se traduziu numa dominação planetária da natureza. Essa dominação coloca os objetos inanimados e o próprio ser humano disponível ao afã da tecnociência.
Nos capítulos iniciais da sua obra Ser e Tempo descreve os três aspectos fundamentais para a compreensão do ser-no-mundo, o “dasein” o ser-aí: a facticidade, a existencialidade e a ruína. A facticidade é o estar lançado no mundo alheio a sua vontade; a existencialidade é a relação do eu com o mundo. A ruína do homem dá-se quando ocorre o seu afastamento do projeto essencial como individuo, quando lhe é retirada a possibilidade de dispor de si mesmo, e ao se diluir na massa coletiva, tem sua existência reduzida ao coletivo ao ser-em-comum: “todo mundo é o outro e ninguém é si mesmo [...]” essa sujeição ao coletivo torna a existência inautêntica. Para Heidegger a alienação do individuo se dá pelo esquecimento de sua essência mais profunda - o Ser. Esse esquecimento da verdade do Ser, que modernamente é operado pela essência da técnica e da metafísica, tem contribuído para a alienação dos indivíduos, para o afastamento do “ser-aí”, de sua vida autêntica.
Para Heidegger, o desastre impetrado pelo primado da técnica é o de nos aprisionar no mundo da atividade, do fazer, sem deixar lugar para a nossa possibilidade de ação, própria da atitude do pro-duzir, que é a capacidade simultânea de agir e se colocar em repouso à espera do surgimento de algo como faziam os gregos.
O desencobrimento que domina a técnica moderna possui, como característica, o pôr, no sentido de explorar. Esta exploração se dá e acontece num múltiplo movimento: a energia escondida na natureza é extraída, o extraído vê-se transformado, o transformado estocado, o estocado, distribuído, o distribuído, reprocessado. Extrair, transformar, estocar, distribuir, reprocessar é todos modos de desencobrimento. Todavia, este desencobrimento não se dá simplesmente. Tampouco, perde-se no indeterminado. pelo controle, o desencobrimento abre para si mesmo suas próprias pistas, entrelaçadas numa trança múltipla e diversa. Por toda parte, assegura-se o controle. Pois controle e segurança constituem as marcas fundamentais do desencobrimento explorador. Que desencobrimento se apropria do que surge e aparece no pôr da exploração? Em toda parte, se dis-põe a estar a postos e assim estar a fim de tornar-se a vir a ser dis-ponível para ulterior dis-ponibilidade. O disponível tem seu próprio esteio. Nós o chamamos de disponibilidade. (HEIDDEGER, 2002, 20)
Por outro lado, a visão de Heidegger que reduz a contemporaneidade ao domínio tecnológico e ao esquecimento do ser não leva em consideração as tensões que existem no âmbito da própria ciência, como observa Castoriadis :
A mesma cegueira conduz Heidegger a ver no período contemporâneo apenas o domínio da técnica e da ‘ciência’ – e nos dois casos, com uma aceitação incrivelmente ingênua da sua pretensa onipotência – e o toma incapaz de ver a crise interna do universo tecnocientífico e, ainda mais importante, as atividades dos seres humanos dirigidos contra o sistema estabelecido e as possibilidades que essas atividades contem. (CASTORIADIS, 1987, 241)
Podemos inferir que o diagnóstico de Heidegger é pertinente quanto ao espaço ocupado pelas tecnologias na atualidade, mas quando não vê saídas para a dominação planetária da técnica, acaba levando a uma paralisia que o impede de ver que há possibilidades de usos emancipatórios dessas tecnologias e que a ciência e os cientistas também se deparam com impasses de ordem epistemológica, metodológica e moral. Há uma crise no interior da própria ciência.