FRAGMENTO DE UMA NOVELA COSMOLÓGICA

Numa bucólica foto tirada em um congresso patrocinado pelo inventor da soda, uma mulher, sinônimo de integridade intelecto-moral, recosta a cabeça na palma de sua mão direita, enquanto o último matemático universal parece lhe explicar algumas coisas. Todos que estão atrás da dupla parecem festivos, menos uma pessoa, com um olhar devaneado. O mais jovem entre o seleto grupo de cientistas ali reunidos parece observar com os “fragmentos de luz” sensibilizando seu solitário olho direito, o que o desajeitado francês explica para a incansável polonesa. Seu cabelo e bigode ainda exibem regularidade no corte e no tom preto. Transpira confiança.

Por essa época o jovem andava com o estômago na terra, mas as órbitas oculares gravitavam de forma estranha. Deixe disso – aconselhara o diretor do jornal onde publicara seus famosos artigos. Ninguém pode resolver esse problema, é difícil demais – asseverava. O jovem era do tipo viajante, gostava de imaginar experiências ondeadas em acordes de violino. Ignorou o conselho do velho professor na proporção em que ignorava sua família. Sabia que possuía algo grande e indefinido em seus pensamentos, embora a penumbra fosse esfíngica. Prestando contas por seu descaso com a “linguagem do livro da natureza”, como outro relativista, séculos antes a denominara, pediu auxílio a um amigo que não faltara às aulas de matemática para ler filosofia e teoria da evolução.

Morde, assopra, morde, assopra; uma fugaz imagem de um elevador em queda (será que eu sentiria meu peso?), foi revelando que (não, não saberia). O edifício do espaço e do tempo construído com a régua absoluta de um alquimista desconfiado, já anteriormente selado num conúbio espaço-tempo, parecia se curvar nas mãos do panteísta enrustido. Para duplicar o drama, outro inglês novamente farejou a gravidade, um dos seus lemas era mais ou menos “a física é importante demais para ficar somente nas mãos dos físicos”. Um sopro frio pinicou a espinha do spinozista. O matemático inglês, maior daquela época, notou fuligens em sua teoria: o campo de batalha estava armado. Não havia mais tempo para morder e assoprar o chacra das equações; o tempo antes tão familiar, agora era um cáustico estrangeiro. Finalmente solucionou o problema que o comprimia, pôde concluir o trabalho/arquitetura, mas a luz da descoberta teve um risco fúnebre. O tempo dilatado no esforço consumiu-lhe a energia de tal sorte que o espaço de seu corpo contraiu-se na enfermidade. Recuperou-se, e enquanto suas equações eram denominadas de elegantes, seu cabelo começou a adquirir a inusitada estampa consagrada no mundo pop. Pela primeira vez a física moderna possuía um “mapa” que poderia descrever a forma do Universo...

O nosso jovem cientista é agora um homem amadurecido. Ao se debater na flamante luta com a ciência de Pitágoras, viu-se na situação de tornar o universo que estava sendo modulado em seu lápis transcorrer nas paisagens platônicas ao sabor do Parmênides. Tínhamos agora um cosmos em que o espaço possuía limites, mas o tempo era ilimitado; o espaço era finito, e o tempo, infinito. Tentado, talvez, por um sentido psicológico/metafísico de equilíbrio, desconfiou do cosmos em expansão que sua intuição equacional apontava, e pôs ordem ao tormento aplicando um “élan matemático” que tornava do mais simples átomo a mais longínqua galáxia, purpurinas e lantejoulas incrustadas na superfície rugosa de um gigantesco balão imóvel.

Tempos depois, como numa ponte entre dois espaços, na pátria de Dostoiévski, um circunspecto matemático decifrava os hieróglifos daquela estranha arquitetura, notando que, apesar do esforço titânico do demiurgo alemão, um erro em seus cálculos revelava que seu bem talhado balão cósmico era realmente assoprado por uma força misteriosa. Por descuido, o iconoclasta alemão deixou escapar de ser o pai do universo em expansão. Mas quem poderá com a Fortuna mediante o réquiem do Destino? Ao esfacelar o “élan matemático” que freava o cosmos de ganhar a imensidão dentro de si mesmo ou de se comprimir num espetacular colapso, o gênio russo, tempos após, tombou sob a implacável rudeza dos canhões. O tempo da guerra venceu aquele que percebeu o espaço invencível. O segundo drama se consumou, jamais pôde observar o quanto seu resultado estava além dos demais em muitos, muitos anos, na medida exata em que seus cálculos foram ignorados. “Perde-se a vida, ganha-se a batalha”, seu feito preencheria o desafio machadiano.

Posteriormente, em meio ao jazz pulsante das nebulosas, numa noite cálida, um astrônomo estadunidense com olhos imperturbáveis nos aglomerados de galáxias, observa as lantejoulas brilhantes do balão imóvel num minucioso telescópio fixado no silêncio de um Monte. Elas pareciam vivas, e como se nutridas pela força que move a antipatia entre as pessoas, iam se afastando umas das outras. Da mesma forma que quanto maior é a diferença entre os ideais de dois seres, mais veloz é a vontade de se manterem longe, ele verificava que quanto mais distantes essas galáxias estivessem umas das outras, maior seria a velocidade de afastamento entre elas. Mas não eram as galáxias que estavam fugindo umas das outras numa reta, como duas pessoas brigadas correndo em sentido contrário numa rua plana, era o espaço entre elas que se encurvava, ou seja, a dilatação da superfície rugosa do balão provocava o distanciamento. A arquitetura teórica precisou se render às evidências, parecia que o balão de fato estava sendo assoprado, o “élan matemático”, a constante cosmológica que impedia a força gravitacional de “murchar o balão”, declarou o demiurgo alemão alguns anos depois, “foi o maior erro da minha vida”. Como gesto de nobre reconhecimento, sobe as escadas que o leva ao observatório onde a fuga das galáxias foi descoberta pelo astrônomo brilhante, e podemos observar o aperto de mão entre dois homens solitários, um na solidão da caça aos tesouros cósmicos, e o outro na solidão da imaginação criadora.

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Personagens (por ondem de aparecimento no texto)

Ernst Solvay (1838 – 1922)

Marie Curie (1867 – 1934)

Henri Poincaré (1854 – 1912)

Albert Einstein (1879 – 1955)

Max Planck (1858 – 1947)

Galileu Galilei (1564 – 1642)

Isaac Newton (1642 – 1727)

David Hilbert (1862 – 1943)

Alexander Friedmann (1888 – 1925)

Edwin Hubble (1889 – 1953)