Da oralidade primária à escrita
Sabe-se que todas as nações estiveram ou estão pautadas em uma tradição oral, pondo a oralidade em primeiro lugar, numa escala cronológica, em relação à escrita, uma vez que o ser humano, antes de desenvolvê-la, desenvolveu a capacidade de falar.
“O homem tem inerentemente uma necessidade individual de se expressar e uma necessidade social de se comunicar” (KATO, 2004, p.12), utilizando-se, para tanto, da linguagem oral e/ou escrita. No entanto, na oralidade primária , a palavra não possui o estatuto de comunicação ou expressão do pensamento, pois atua, basicamente, como guardiã da memória social.
Em uma sociedade oral primária, quase todo o edifício cultural está fundado sobre as lembranças dos indivíduos. A inteligência, nestas sociedades, encontra-se muitas vezes identificada com a memória, sobretudo com a auditiva (LÉVY, 1993). Logo, o homem, nos primórdios de sua existência, expressava seus pensamentos por meio de desenhos, sendo que a fala servia, unicamente, para a expressão auditiva. “Com o passar do tempo, a expressão visual desenvolve-se em duas direções distintas: o desenho como arte e o sistema pictográfico na comunicação” (KATO, 2004, p.13).
Na fase inicial, o sistema pictográfico não objetivava representar a fala, no entanto, termina por fazê-lo. Posteriormente, com a estilização e convencionalização das formas do sistema pictográfico, surgem os ideogramas ou logogramas que possuíam representação fonética, surgindo assim a foneticização da escrita. Neste período surgem também os sinais de pontuação.
Posteriormente, passamos do sistema logográfico-silábico ao sistema silábico, por meio da representação de palavras ou sílabas a partir da utilização de pictogramas, também denominado rébus, em que se utilizam apenas os sons representados pelos desenhos para assim formar as palavras. Embora a representação de palavras dessa maneira não fosse fácil, foi assim que o homem descobriu a escrita silábica.
Os ideogramas continuaram a ter mais prestígio em todas as escritas, com exceção da cuneiforme, que se constituiu, desde o início, de uma porcentagem mais alta de elementos de natureza silábica do que de logogramas ( KATO, 2004).
Da escrita lexical-silábica, que pertencia aos egípcios, os fenícios extraíram os vinte e quatro símbolos mais simples para formar o silabário, utilizando apenas consoantes.
“Foi o silabário fenício que os gregos tomaram emprestado para a base de sua escrita. Mas o que era feito apenas esporadicamente pelos fenícios, isto é, a colocação da vogal depois da consoante, firmou-se entre os gregos como norma. Passou-se assim da escrita silábica para a escrita alfabética [...] Depois da descoberta desse sistema, segundo Gelb, nenhuma inovação significativa ocorreu na história da escrita. Embora haja inúmeras variedades de alfabeto no mundo, que apresentam diferenças formais externas, todos ainda usam os mesmos princípios estabelecidos pela escrita grega (KATO, 2004, p. 16).
O homem então descobriu que poderia desenhar não apenas as coisas, mas também a própria fala. Deste modo, o surgimento da escrita acarretou mudanças na relação entre os indivíduos e a memória social, uma vez que as pessoas passaram a registrar, por meio da graficação da linguagem, seus pensamentos, experiências, cultura, vivências, enfim, uma gama de saberes e conhecimentos construídos ao longo dos tempos e que, uma vez registrados, não mais se perdiam com a morte dos seus guardiões, geralmente, os mais velhos. Assim:
A escrita em geral, os diversos sistemas de representação e notação inventados pelo homem ao longo dos séculos têm por função semiotizar, reduzir a uns poucos símbolos ou a alguns poucos traços os grandes novelos confusos da linguagem, sensação e memória que formam o nosso real (LÉVY, 1993, p. 70).
O registro gráfico do pensamento, seja ele inscrito em pedra, bronze, argila ou papiro, fixou a história, traçou linhas cronológicas, atividade antes irrealizável no constante devir da oralidade, em que a cada nova transmissão surgia uma nova criação. “A partir do momento em que uma relação é inscrita na matéria resistente de uma ferramenta, de uma arma, de um edifício ou de uma estrada, torna-se permanente. Linguagem e técnica contribuem para produzir e moldurar o tempo” (LÉVY, 1993).
Logo, somente a partir da escrita a ciência se configurou como conhecimento dominante, pois todo o saber se imortalizou, em épocas mais remotas, no couro ou papiro, em formato de rolos, que facilitava o armazenamento e organização; um pouco mais tarde, no códice, adquirindo formato semelhante aos livros que hoje conhecemos, para mais tarde, serem impressos no papel.