Pesquisa hermenêutica e encontro com a alteridade

A sociedade humana é fundamentada na base do consenso de sentidos compartilhados e o ser humano constitui o sujeito que interpreta e simboliza. Os seres humanos são considerados atores sociais interpretando seus papéis e orientando suas ações de modo que tenham significado para eles. Partindo dessa concepção, o presente ensaio se insere no paradigma hermenêutico, considerando a realidade sob o ponto de vista simbólico e interpretativo. O aporte teórico tomado como ponto de partida para fundamentar esta orientação é o interacionismo simbólico.

Quem lançou as bases desta importante escola do pensamento sociológico americano, foi George Mead (1863-1931), durante o primeiro quartel do século XX. Mead (1982) concebia a interação como elemento constituinte das formas de comportamento humano e a natureza dos objetos do mundo social como sendo simbólica. O mundo onde os seres humanos vivem é percebido como um processo de desdobramentos do sujeito interpretante de seu ambiente e do sujeito atuante com base nessa interpretação. Assim a realidade empírica existe somente na experiência humana e aparece sob a forma em que estes a percebem.

Embora tenha sido Mead quem deu os primeiros passos, foi Herbert Blumer (1900-1987), seu sucessor no curso de Psicologia Social da Universidade de Chicago, quem estabeleceu as três premissas básicas do Interacionismo Simbólico: agimos com relação às coisas na base dos sentidos que eles têm para nós; o sentido é derivado da interação social que estabelecemos com os outros; os sentidos são manipulados e modificados através do processo interpretativo que usamos ao tratar as coisas que encontramos (GOULART, 1990).

Segundo Palma (2001) os princípios clássicos do interacionismo simbólico se completam do ponto de vista estrutural com o pensamento de John B. Thompson, através da concepção simbólico-estruturalista de cultura. Segundo o autor, que leciona sociologia na Universidade de Cambridge, a cultura pode ser entendida como forma simbólica em contextos estruturados. A análise cultural seria:

[...] o estudo das formas simbólicas – isto é, ações, objetos e expressões significativas de vários tipos – em relação a contextos e processos historicamente específicos e socialmente estruturados, dentro dos quais e por meio dos quais, essas formas simbólicas são produzidas, transmitidas e recebidas. (Thompson, 1995, p.175).

As formas simbólicas, nesta concepção, são caracterizadas por dois aspectos fundamentais: os aspectos intencionais, convencionais, ligados diretamente ao significado, ao sentido e à significação; e os aspectos contextuais diretamente relacionados a um contexto sócio-histórico específico. A constituição significativa das formas simbólicas e a sua contextualização social representam os dois pontos centrais da abordagem de Thompson. Dentro desta perspectiva, se aproxima de outro importante teórico do simbolismo da cultura: Glifford Geertz. Segundo o autor:

[...] a cultura enquanto sistema entrelaçado de signos interpretáveis não é um poder, algo ao qual possam ser atribuídos casualmente os acontecimentos sociais, os comportamentos, as instituições e os processos; ela é um contexto, algo dentro do qual eles podem ser descritos com densidade. (Geertz, 1989, p. 24)

A formação delineada por Thompson e o pensamento de Gerrtz se sustentam na concepção de que os fenômenos simbólicos inscrevem-se a partir de contextos sociais estruturados. A etnografia constitui um caminho trilhado pelos antropólogos para interpretar estes contextos simbólicos.

A palavra etnografia é composta por dois vocábulos de origem grega. Etno vem de etnoe, termo para designar os outros povos que não eram gregos. A palavra grega elenoe designava o povo grego e etnoe todos os outros povos; grafia vem do grego graf(o) significa escrever sobre. Juntando os vocábulos temos: escrever sobre outros povos. Dentro desta perspectiva, a etnografia surge como um campo da Antropologia que dirige seu olhar para o outro. Não constitui um método, mas um conjunto de procedimentos que envolvem a investigação de campo como produto final dos trabalhos. Estes procedimentos não são fechados, não constituem um caminho seguro a ser seguido, mas são princípios que o pesquisador deverá utilizar de acordo com sua sensibilidade e percepção (GEERTZ, 1989).

Nos cenários atuais existe uma grande diversidade de correntes metodológicas e epistemológicas que abordam a etnografia de maneiras próprias, encerrando um constante debate sobre suas fronteiras. Rockwell (2009) delimita o uso do termo etnografia a certas investigações que, embora possam admitir uma diversidade de recursos técnicos e analíticos, não podem prescindir de cinco condições básicas: 1) A primeira se relaciona a tarefa de “cronista” cujo objetivo é documentar o não documentado da realidade social: o cotidiano, o oculto, o inconsciente, a história dos resistentes à dominação, bem como os bastidores do poder, os interesse que não se revelam; 2) A análise etnográfica escreve um texto que é, antes de tudo, uma descrição - os resultados da investigação são expostos de maneira descritiva para conservar a riqueza das relações particulares do local que aconteceu o estudo. Este aspecto pressupõe um trabalho teórico prévio considerado necessário para uma boa descrição; 3) A centralidade do etnógrafo como sujeito social e sua experiência direta, prolongada, em uma localidade - ou seja, um estudo etnográfico se inscreve no horizonte das interações cotidianas, pessoais e possíveis entre o investigador e os habitantes da localidade, seja um povo ou determinado grupo social. 4) Uma outra característica comum é à importância dos significados - qualquer que seja o objeto de estudo e a perspectiva teórica, a etnografia visa compreender o que Malinowski chamava de “ponto de vista do nativo” e Geertz denomina “saber local”, que implica no caráter local de nossos próprios conhecimentos. 5) Apesar de todas as dúvidas geradas e todas as complicações que acarreta, a etnografia constrói conhecimento.

Bogdan & Biklen (1994) consideram o estudo de caso etnográfico como estudo de um caso de observação, cujo foco de estudo volta-se para uma organização particular ou algum aspecto particular dessa organização. O foco pode ser: algum local específico dentro da organização, ou algum grupo, ou atividade. Os sujeitos são os atores sociais, ou o grupo natural, ou a microcultura: pessoas que interagem, que se identificam e partilham expectativas do comportamento umas com as das outras – partilham uma identidade de grupo.

André (2005) afirma que existem três características consideradas básicas para um estudo de caso ser considerado tipo etnográfico: a relativização, o estranhamento e a observação participante. A relativização implica em colocar o eixo de referências no universo pesquisado, o que exige o estranhamento – um certo distanciamento da situação investigada para tentar apreender os modos de ser dos grupos estudados. A observação é considerada participante porque concebe um grau de interação do pesquisador com o contexto, que em certa medida será afetado pela presença do mesmo, que por sua vez também será afetado pelo contexto. Isto exige uma constante vigilância epistemológica (termo criado por Bachelard), para marcar o cuidado que o trabalho de campo exige com as crenças e opiniões daqueles que pesquisam.

Considerando esta questão, Da Matta (1978) descreve dois princípios considerados básicos: (a) transformar o exótico em familiar e/ou (b) transformar o familiar em exótico. Segundo o autor, a primeira transformação corresponde ao movimento original da antropologia, “quando os etnólogos conjugam seu esforço na busca deliberada dos enigmas sociais situados em universos de significação sabidamente incompreendidos pelos meios sociais do seu tempo” (p.28).

Neste contexto, o pesquisador precisa ficar atento para não classificar e rotular estas realidades a partir dos princípios através dos quais foi socializado. A segunda transformação acontece quando o olhar volta-se para a própria sociedade. O problema neste caso é “tirar a capa de membro de uma classe e de um grupo social específico, para poder – como etnólogo – estranhar alguma regra social, familiar e assim descobrir o exótico no que está petrificado dentro de nós pela reificação e pelos mecanismos de legitimação” (DA MATTA, 1978, p.28).

Na primeira transformação, o antropólogo precisa se tornar familiar com o que lhe é estranho e no segundo deve se afastar do que é familiar. Velho (1978) relativiza estas transformações, ao lembrar que aquilo que vemos e encontramos pode ser familiar, mas não significa ser, necessariamente, conhecido, e aquilo que não vemos ou encontramos, pode ser exótico, mas de certa forma, conhecido. O pesquisador pode está acostumado com uma certa paisagem social, onde a disposição dos atores lhe é familiar, as hierarquias e distribuição do poder, contudo isto não significa que ele compreenda suas relações que aí se estabelecem.

Tanto o grau de familiaridade como o de conhecimento não são homogêneos, ainda que os atores envolvidos na cena sejam todos contemporâneos. Segundo o autor, dispomos de um mapa que torna familiar as diferentes situações e cenários sociais do cotidiano, dando nome, lugar e posição ao indivíduo. Por outro lado, isto não leva a conhecer o ponto de vista e a visão de mundo dos diferentes atores em uma situação social nem as regras que envolvem estas interações. Isto lança um problema inevitável para quem pesquisa a própria sociedade. A questão do seu lugar e de suas possibilidades de relativizá-lo ou transcendê-lo e poder se colocar “no lugar do outro”.