De volta à diagonal de Cantor

1- Sobre o tamanho do mundo

Quando comecei a perceber o mundo, ele tinha o tamanho de meu quintal. Transcorrido um enorme tempo, ampliou-se vastamente, abarcando todo o quarteirão. Depois disso, ainda se expandiu muitas vezes, abrangendo sucessivamente as redondezas, a cidade, chegando a abarcar inclusive outras localidades!

Lembro que cada uma dessas descobertas correspondeu a uma enorme surpresa, e a uma alegria inerente a esse reconhecimento, como se eu mesmo crescesse juntamente com o mundo. Acho que é sempre assim, sempre crescemos quando expandimos nosso mundo.

Posteriormente, meu mundo passou a se ampliar de maneiras diferentes, mais abstratas. Pude ter conhecimento da existência de outros países e povos de línguas estranhas, de oceanos imensos separando continentes inteiros muito além de nossa linha de visão.

Depois, também soube que as estrelas eram mundos, e o céu ilimitado. Soube da existência do sol, da lua e dos planetas, mundos tão extensos quanto o nosso. Imensidão e surpresa maiores ainda vieram da descoberta das galáxias, descomunais agregados de mundos, e de suas distâncias miraculosas.

 

2- Sobre a dimensão do próprio tamanho

A diagonal de Cantor foi para mim uma revelação tão grande quanto tinha sido, no passado, a constatação do prolongamento do mundo além dos muros do quintal. Ela demonstrava que o mundo era muito maior do que até então podia sonhar, embora não sugerisse uma expansão lateral do mundo, como todas as outras. A diagonal mostrava que o mundo era mais denso, que havia nele mais coisas, que a infinitude era muito maior do que antes se pensava. De fato, ela trata exatamente de infinitudes, revela imensidões anteriormente impensáveis, comparadas com as quais, as imensidões anteriores parecem minúsculas.

O argumento matemático é de uma simplicidade contundente, suas consequências extraordinárias. Consiste em mostrar a existência de “coisas” tão extensas que não podem ser listadas, e nem ao menos indicadas, nem ao menos esboçadas em uma lista infinita! Quero dizer, a lista: 1, 2, 3, 4, 5... , se prolongada indefinidamente, englobará todos os números naturais (os números comuns que conhecemos, com esse formato simples acima). No entanto, ainda que infinita, essa lista é incapaz de listar agrupamentos infinitamente maiores que ela, parecendo minúscula ao lado de tais agrupamentos!

O que a diagonal de Cantor demonstra é exatamente isso: a existência de um agrupamento impossível de ser listado, um conjunto tão imenso que transbordaria de qualquer lista!

Podemos apresentar todas as frações em uma tabela com o seguinte formato:

 

 

Caso a tabela se estenda infinitamente, todas as frações estarão ali (por favor, confira isso).

 

Estas mesmas frações podem ser representadas pela seguinte lista, construída a partir das linhas diagonais traçadas pela tabela (siga as flechas e veja):

 

1, 2/1, 1/2, 3/1, 2/2, 1/3, 4/1, 3/2, 2/3, ¼, 5/1...

 

Assim, todas as frações estarão nessa lista, caso ela seja estendida indefinidamente. Essa construção demonstra que o conjunto de todas as frações cabe em uma lista.

 

Agora tentemos listar todos os números reais existentes no pequeno intervalo entre zero e um. Nesse intervalo, todos eles começam com “0, ” , e têm o seguinte formato:

 

0, a1 a2 a3 a4 a5 a6...

 

Onde cada letra representa um algarismo.

 

Por exemplo, em 0,75, a1 representa 7, a2 representa 5, e a3 a4 a5 a6... representam 0, cada um deles.

 

Em 0,8045 , a1 representa 8, a2 representa 0, a3 representa 4, a4 representa 5, e todos os outros, a5 , a6... representam zero.

 

Em 0,3333... cada um dos algarismos: a1 a2 a3 a4 a5 a6... representa 3.

Utilizando esse formato de representação dos números, uma lista contendo todos os números entre 0, e 1 ficará assim:


A lista prossegue indefinidamente para baixo...

Pareceria razoável supor ser possível listar todos os números entre 0 e 1 assim, em uma folha de papel, ou tela de computador. No entanto, o que Cantor provou foi que os números contidos entre 0 e 1 (de fato, em qualquer intervalo fixo, mesmo o mais ínfimo) “transbordam” de qualquer lista, ou seja, eles são tão numerosos que não cabem em nenhuma lista, nem mesmo em listas infinitas!

Note que a coisa é realmente surpreendente. Parece estranho, mas eles são numerosos demais e transbordam, não cabem na lista! O leitor pensará que bastará estender a lista mais e mais, até caberem todos os números do intervalo, mas isso é impossível como veremos.

Considere a seguinte diagonal.

Agora construa o número composto por cada um dos algarismos marcados na diagonal. Esse número será:

0, a1 b2 c3 d4 e5 f6...

Em seguida um construa um número que difere do primeiro quanto ao primeiro algarismo, do segundo quanto ao segundo, do terceiro quanto ao terceiro... e assim sucessivamente.

Assim: pegue
x1 diferente de a1,   x2 ≠ b2 ,  x3 ≠ c3 , x4 ≠ d4  e etc.

Terá construído, então, o número:

0, x1 x2 x3 x4 x5 x6...

onde cada algarismo difere do algarismo da diagonal vermelha traçada na figura acima.

Agora perceba que tal número não pode estar na lista, já que ele difere de todos os que lá estão! Pois como x1 ≠ a1 , o número construído é diferente do primeiro da lista. Como x2 ≠ a2 , o número construído é diferente do segundo da lista, e assim, sucessivamente, diferente de todos os infinitos números da lista! Portanto, ele não pode estar nela!

Note que o número assim construído transborda da lista! Agora perceba como são inúmeros os que assim o fazem!

Isso demonstrou a existência de uma infinitude anteriormente inimaginável! Pensava-se que todas as grandezas infinitas eram da mesma ordem, de uma mesma magnitude. Cantor demonstrou, dessa maneira, que existem verdadeiras ordens de infinitude, e que, em certo sentido, algumas infinitudes são infinitamente maiores que outras!

De certo modo, isso mostra que , permita-me dizer, o tamanho era maior do que se pensava, refiro-me ao próprio tamanho! Como se o espaço fosse mais denso do que se tinha imaginado, como se existissem infinitamente mais pontos que o anteriormente suposto!

Penso que essa estranha constatação ampliou o mundo de uma maneira extraordinária, ele é infinitamente maior do que pensávamos! Infinitamente mais denso!

Dessa maneira, o quintal da humanidade, nosso mundinho, ainda continua a crescer.

Não me espantarei excessivamente se vier a descobrir uma vez mais que o mundo é muito maior do que eu pensava. É mesmo provável que o mundo seja do tamanho de nossos olhos.