A participação popular nos processos decisórios
*Hildebrando Souza Menezes Filho
O direito de cidadania* se exerce numa sociedade verdadeiramente democrática pela assimilação do conhecimento como patrimônio da humanidade. Os recursos públicos bem direcionados, através da escolha de prioridades sociais, consolidam as políticas públicas em C&T e estimulam a responsabilidade dos cidadãos na participação política em defesa de melhores condições de vida.
A participação política dos cidadãos sofreu, durante muito tempo, de uma espécie de afastamento decorrente do racionalismo científico** que transforma o homem comum, pelos meios de comunicação de massa, em mero espectador e consumidor das inovações.
As políticas de Estado, em especial as de C&T, são difíceis de serem observadas e de sentir-se sua aplicação por estarem desconectadas, dispersas ou embutidas em outras políticas. Convém dizer também que não faz parte da cultura nacional a divulgação dos dados numéricos dos recursos públicos destinados a viabilizar essas políticas através do desenvolvimento científico e tecnológico.
Há indícios da existência de uma “não cultura democrática”, no curso da história, de transparecer para a sociedade as informações financeiras e orçamentárias, com clareza analítica dos recursos incorporados ao desenvolvimento científico e tecnológico.
O Executivo e seu aparato institucional complexo tem um poder de decisão que é concentrado, que não busca a participação e o envolvimento dos cidadãos como forma de exercício da cidadania. Os mecanismos, embora colegiados, são em geral pouco eficientes no sentido de induzir à participação popular. Não há dúvida de que a representatividade se dá através da comunidade científica e que esta demanda um tratamento de política. Mas é comum perceber-se que a participação na construção das políticas de C&T pelos diversos grupos de interesse ainda é muito tímida e limitada.
Notas:
*Há alguns verbetes de Buarque (1999) sobre essa questão nos quais ele faz a seguinte divisão: cidadania do povo na rua, onde há movimentos em defesa do povo vivendo na rua (direitos humanos) mas aceitando essa diferença entre incluídos e excluídos; cidadania partida, onde a cidadania parece estendida a todos, mas se apresenta diferenciada conforme a posição social do indivíduo; cidadania proporcional, como a do acesso diferenciado dos cidadãos à esperança da vida, à qualidade da saúde, entre outros.
**Outro verbete de Buarque (1999) se refere a “Ciência da Apartação” onde ele diz que a ideologia da civilização industrial criou uma ciência onde todos teriam o mesmo potencial intelectual, na sociedade de apartação a ciência se transforma em instrumento de racismo e em conseqüência da defesa da lógica da exclusão.
Numa viagem pela história recorda-se da proibição feita por dona Maria, a louca, rainha de Portugal, para a existência de teares na colônia brasileira, sob pena de deportação do proprietário para Angola. Agora, como em 2001 (quando esboçamos este texto) tomam vulto as discussões sobre a Sociedade da Informação, utilizando-se a Internet como veículo nessa estrada de comunicação (infovia), convém relembrar que só existe fabricação de computadores tendo o minério de silício como matéria-prima, que é o responsável pela principal peça (ship).
Pois bem, da mesma forma que o Brasil foi explorado pela proibição dos teares, da exportação do tório à época de Álvaro Alberto (energia nuclear), hoje é exportado para todo o mundo o quilo do melhor quartzo a R$0,35. Sem o silício (extraído do quartzo) não há computadores. Sem o minério de ferro não há como fabricar o aço. A tonelada do ferro é exportada a 8 dólares o quilo. Nossos produtos como o café, o cacau e a soja estão desvalorizados no mercado internacional.
O que é que isso significa?! É que para mandar um brasileiro passear no exterior, EUA, por exemplo, gastam-se 4.500 dólares, e significa que o nosso país tem de mandar 500 toneladas de minério de ferro para fazer frente aos dólares gastos no passeio.
No Debate Nacional de Ciência e Tecnologia Numa Sociedade Democrática(1986) foram colocadas algumas questões, que permanecem atuais apesar de já decorridos quase 25 anos daquele evento e que podem orientar e fornecer diretrizes básicas para o tipo de participação social no processo de construção da política científica e tecnológica .
(...)“Como poderão os diversos grupos sociais ampliar sua participação no processo de definição da política de C&T?
Qual o papel esperado das várias instâncias executoras dessa política para alcançar-se a transparência desejada na definição e administração dos recursos públicos destinados a esse setor?
Qual a ordenação e articulação desejáveis entre os vários organismos públicos envolvidos na formulação da política de C&T, de modo que se possa atingir maior eficiência e otimização dos recursos públicos?” (...)
Uma das perguntas existentes na comunidade de técnicos do CNPq, na comunidade científica, entre grupos organizados da sociedade civil, especificamente entre os servidores públicos da área de C&T, é a seguinte: é possível construir um espaço no CNPq para reflexões e análises críticas dos impactos da ciência e da tecnologia na sociedade? Nesse espaço poder-se-ia encontrar um meio de interação entre a produção científica e tecnológica, a ação do Estado, a demanda social sobre o progresso técnico e científico?
Entende-se que a Plataforma Lattes poderá ser um espaço virtual que permitirá essa interação. No entanto, os seus contornos ainda são de ordem técnica, falta-lhe emprestar uma dimensão ética, do tipo da que foi proposta no Consea Conselho de Segurança Alimentar do saudoso Herbert de Souza (Betinho*), que propunha democratizar a sociedade civil usando a “tecnologia de ponta”; a informática, com finalidade social, através do Ibase.
Nota: *Betinho se transformou, com seu Movimento contra a Fome, a Miséria e Pela Vida, através do Consea, em um exemplo de vida e de luta contra a apartação no Brasil. Como era hemofílico, acabou contraindo a Aids e veio a falecer dessa doença. O primeiro Comitê do Consea foi instalado lá no CNPq.
Imbricada nessa, há outra questão de suma importância, e que se refere ao processo decisório do CNPq e da própria política de ciência e tecnologia, questão que está restrita ao debate apenas da comunidade científica. A sociedade civil organizada pouco tem sido ouvida e considerada nesse processo.
Albagli (1988) perguntava:
(...) ”Como é o diálogo entre leigos, técnicos e governo com respeito a questões específicas relacionadas à política de ciência e tecnologia? Como é que se ausculta realmente as diversas posições com respeito a um determinado problema tecnológico? E ainda, como se organizam as informações? A sociedade tem acesso, existem bancos de dados? (...)”.
Notas:
*Infovia é uma via de comunicação entre computadores, utilizada para permuta de informações que interligam, conectam, controlam e compatibilizam as informações e os serviços do meio eletrônico da Internet.
**Esse período que sucedeu a ditadura tem se caracterizado como aquilo que Buarque (1999) considera como “Desmocracia”: uma democracia limitada aos incluídos, como era a democracia sul - africana, durante o apartheid; ou a democracia da Grécia clássica.
Essas questões que estão colocadas nos Anais do Seminário Internacional Prospectiva, Avaliação de Impactos e Participação Social no Desenvolvimento Científico e Tecnológico(1988) ainda ecoam nos dias de hoje.
Nesse mesmo seminário, Freibergs (1988:23) responde à questão contando a experiência canadense:
“ Infelizmente não temos recursos para manter bases de dados permanentes, de qualquer tipo, para atualizá-las e para controlar os vários setores. Nossa técnica é “bater e correr”. Nós tomamos um problema, fazemos o melhor que podemos, levamos os resultados para o domínio público, e então pegamos o nosso pequeno balde e corremos para jogar um pouco de água no próximo incêndio. Muitas vezes somos criticados, porque não damos continuidade à análise de determinados assuntos. Seria muito satisfatório fazer isso, mas sentimos que há outras questões que devemos tratar. Tentamos alertar as pessoas para o incêndio, para o que precisa ser feito; jogamos o primeiro balde de água para que outras pessoas despertem e continuem o trabalho.(...)”.
A isso ela chama de “esforços catalisadores”. O que os canadenses** propõem, então, é a necessidade de chamar a participar outros atores nesse processo. Há uma atenção especial aos meios de comunicação social, com estratégias de divulgação e esclarecimento à opinião pública, usado também para induzir à participação e o financiamento a C&T.
As perguntas propostas são: a quem atingir? (com quê?) Qual o interlocutor? (de quê?). Quem deve ouvir a mensagem que foi construída para resolver um problema específico? Esse tipo de abordagem facilita o provimento e disseminação de informações de forma ágil e barata, entre os mais diferentes segmentos sociais.
O que se pode dizer à dona de casa, ao trabalhador comum das ruas? (sobre o quê?). Ao jovem da escola? (sobre o quê?).
Os canadenses colocam as pessoas falando umas com as outras (por quê? sobre o quê? em que circunstância? São questões que eles discutem entre si para mover e reverter em uma ação reflexiva) e essa intenção de aproximação nasce quando são organizados os workshops, sobre os mais diversos aspectos da vida - na troca de opiniões. Esses encontros, visando à aproximação das pessoas, em circunstâncias diversas, são realizados em quase todas as províncias, junto às associações escolares, e vão agregando outras pessoas, como uma bola de neve.
Essa questão da comunicação e da participação popular é fundamental, devendo-se ampliar seu debate usando-se a televisão e o rádio, numa perspectiva de transformá-los em instrumentos a serviço dos interesses populares.
Notas:
**A iniciativa dos canadenses ocorre também em 2000 com o nome de “Canarie”, que tem um papel catalisador através da iniciativa de rede nacional de P&D – organizada em consórcio entre o governo, a academia e a indústria.Também na Alemanha com a DFN e nos EUA com a National Science Foudation ( NSF) e a Next Generation Internet (NGI). Fonte: Livro Verde(2.000).
Há um verbete no dicionário de Buarque* (1999) denominado “Editeiros”, que mostra como os jornalistas diplomados substituíram o sentimento da notícia pelo cumprimento da pauta, tecnicamente definida pelo “editeiro”, que em geral é prisioneiro dos donos do poder.
Essa manipulação e controle dos meios de comunicação por grandes grupos econômicos ou por oligarquias regionais sempre foi uma característica do Terceiro Mundo**, tendo estado também presente na formação do capitalismo norte-americano.
No Brasil, este controle e domínio da elite sobre os órgãos de comunicação consolidam-se, cada vez mais, com a manutenção do sistema de concessão de canais de televisão e de rádios AM/FM, gerenciado pelo governo federal e que, ao longo da ditadura militar e dos últimos 25 anos, sempre “presenteou” membros das oligarquias em troca de alianças e favores políticos.
Salles apud Neder (2000) preferiu usar o termo oligarquia no lugar de elite como o fez recentemente o cineasta Salles (2000), pressupondo que a elite tenha compromissos com a realidade de seu país o que não é o caso do Brasil, onde a oligarquia é predatória. Esta situação gerou uma televisão sem vínculos com a realidade social brasileira e rádios cujas programações são de uma alienação cultural incomparável, salvo raras exceções.
A questão da comunicação está mesmo no cerne dessa dissertação e será mais bem explicitada quando do relato de outro estudo, onde pretenderemos mostrar que pode haver renovação da informação orientada, como pressuposto para encontrar uma nova equação de forças que vá ao encontro dos interesses da população.
Esse domínio dos meios de comunicação torna-se evidente quando apenas os assuntos de interesse das classes dominantes (emocionais, superficiais, de lucro) são levados ao público, sem um tratamento ou discussão dos temas de relevo para o interesse da população.
Quem domina a economia no Brasil? Bancos, supermercados, empresas de seguro, de assistência médica, transporte, engenharia? Há espaço para a cidadania? Para a salutar manifestação da indignação? Para combater a entrega dos sistemas de telefonia, elétrico, times de futebol, minérios, isenção de impostos para estrangeiros atuarem dentro do Brasil? Nenhum outro país do mundo aceita que seja feito com ele o que ocorre aqui.
Notas:
*O autor mostra que da mesma forma que na África do Sul o mundo dos negros não era um tema usual nos jornais dos brancos, o que ocorre no Brasil é que os jovens jornalistas, prisioneiros de editeiros, não têm a menor liberdade de explorar os fatos que vêem, e perderam a capacidade de vê-los. (In: Buarque - 1999).
**Uma alternativa política viável para a solução dessa situação seria dada através de amplo apoio da sociedade na agilização dos processos de concessão de rádios e TVs comunitárias – de cunho cultural e artístico, ora em tramitação no Congresso Nacional. São milhares de pedidos de concessão tramitando no Legislativo.
Fonte: http:www.mc.gov.br
No Canadá, por exemplo, existem "malas diretas" para pessoas identificadas que se interessam por política científica, além dos membros do Parlamento, das associações científicas, dos movimentos trabalhistas, enfim, do espectro mais amplo possível da sociedade canadense.
Cada indivíduo que tenha uma questão é convidado a contar um pouco sobre ela e os organizadores (referidos anteriormente) transformam isso em algumas perguntas, como por exemplo: Vocês acham que devem existir mais mulheres nas ciências? Interessante é que uma pergunta banal pelo seu caráter provocativo pode levar, com baixo custo, a descobertas que uma enquete também faria, mas com custo alto, podendo dar elementos para construção e definição de uma política pública para o setor.
O Escritório de Avaliação Tecnológica dos Países Baixos* (1988), instalado na Holanda, informou que eles constituíram uma organização para oferecer ao público informações em ciência e tecnologia, para que a população possa entender as novas e velhas tecnologias disponíveis. Realizam 4 ou 5 programas de televisão sobre determinado assunto, (um deles sobre fertilização in vitro, por exemplo),como resultante da discussão sobre a questão de infertilidade, na Europa e na Holanda, especificamente, que agora em 2000 está enriquecida com a SURFnet, uma rede ligada a Internet. Esta organização apóia também grupos de interesse social.
Nos Estados Unidos, Procter **(1988) relata que o Congresso Americano faz estudos dos problemas internacionais por meio de comissões, as quais trataram, por exemplo, do tema "florestas tropicais na África"; outra tratou da questões de fertilizantes e pesticidas na agricultura e outra, ainda, abordou como as tecnologias são repassadas a países como a China e o Oriente Médio.
A preocupação dos americanos, de modo geral, segundo Procter (1988) é a de tentar ver as dificuldades e determinar as prioridades a serem tratadas em nível de estudos ou de
desenvolvimento tecnológico.
Notas:
*Sybren Christian de Hoo (1988) convidado para o debate a que reportou-se anteriormente, trabalha desde 1986, com análises de risco, estudos de defesa, pesquisas nas áreas de energia e do meio ambiente, estudos de formas de participação dos grupos sociais no processo de decisão tecnológica. In: Marcos Institucionais do Conselho Nacional de Pesquisas. Prospectiva, Avaliação de Impactos, e Participação Social no Desenvolvimento Científico e Tecnológico” - Anais do Seminário Internacional, Brasília: 1988, promovido pelo CNPq, página 73.
**Que integra, desde 1979, o staff do Office of Techonology Assessment - OTA (Escritório de Avaliação Tecnológica do Congresso Americano).
Petrella(1988) relatou que o problema com a negociação mundial entre os países está na definição dos termos de troca: "O país X dá isso e o país Y dá aquilo". Esta é uma negociação mundial em ciência e tecnologia. Outra medida que seria necessária é a de uma negociação mundial sobre educação, como uma proposta de iniciativa da Europa num novo programa a ser a dotado pela Unesco.
Na verdade, o que Petrella (1988) propôs para a Europa como iniciativa de ajuda naárea educacional, para os países pobres nada mais é que tudo aquilo que Cristovam Buarque tem efetivado na sua peregrinação pelo mundo, “vendendo” a idéia de usar-se a dívida externa dos países pobres, como moeda de troca pela Bolsa-Escola. Esse seria, então, um compro misso mútuo dos países ricos de perdoarem a dívida pela vida, através da educação das crianças.
Acredita-se que no Brasil, em específico, com essa idéia, uma segunda “abolição da escravatura está sendo gestada silenciosamente no “ventre” da democracia.
Este assunto da participação popular será re-abordado em novo tópico a seguir.
*Hildebrando Souza Menezes Filho
É aprendiz de poeta e mestre em desenvolvimento sustentável pela UnB