Da bomba à rosa: uma antítese histórica.

Da bomba à rosa: uma antítese histórica.

* Hildebrando Souza Menezes Filho

Ao relato histórico da trajetória institucional do CNPq, é necessário fazer algumas reflexões sobre o que nunca é dito, e dificilmente consta dos relatórios oficiais. Uma espécie de história embutida na história, vista e contada numa tentativa de inovação, porque a democracia, por mais limitada que seja,permite essa espécie de dialógica, do contraponto, da antítese, das opiniões contraditórias onde há a possibilidade de buscar novos conhecimentos para fazer frente ao determinismo, ao controle dos cidadãos e da política.

O setor de C&T, em geral, e mais ainda o CNPq, em particular, vêm sendo objeto de estudos de pesquisadores sem conta, em especial na última década, e não são poucos os trabalhos que procuram apresentar resumos históricos da evolução e/ou involução dos aportes financeiros para a C&T. O intuito, nem sempre confessável, é o de garantir recursos financeiros para a sobrevivência do sistema, tantas vezes maltratado pelos governos que têm pressa e não enxergam além dos seus mandatos.

O presente estudo é um esforço nesse sentido, com o intuito de procurar entender o processo e pensar junto, para depois “escapar” um pouco dos padrões habituais registrados pela história oficial.

Considera-se que esse exercício “apimenta”, dá tempero, possibilita agregar outras informações, ou mesmo recontar essa história, de forma a permitir um entendimento que transcenda a oficialidade dos relatórios que serviram de base à pesquisa.

Anos 50 - Os disfarces na origem do CNPq

A Lei nº1.310, de 1951, foi apresentada pelo almirante Álvaro Alberto à comunidade científica como a “Lei Áurea da pesquisa”, ao criar o CNPq (então Conselho Nacional de Pesquisas) na perspectiva do desenvolvimento amplo das ciências - mas é um erro não destacar peremptoriamente o principal objetivo da criação do Conselho, no pós-guerra, ainda sob o impacto do assombroso poder nuclear; do controle daquela fantástica fonte de energia, o átomo. Mal disfarçado, sob o manto do amplo progresso científico, revela-se então a razão primordial da criação dessa instituição: construir a bomba atômica tupiniquim. Ou não foi apenas nos anos 90 que viemos a assinar tratados internacionais de não proliferação de armas nucleares?

Conforme relatado por Cagnin et al. (1996) sobre a razão da demissão de Álvaro Alberto da presidência do CNPq, reforçam-se aqui com fatos que comprovam que o interesse brasileiro era o de construir a bomba atômica - que Álvaro Alberto, em depoimento na Comissão Parlamentar de Inquérito sobre a Energia Atômica, chamava misteriosamente de “coisa”.

Outra fonte importante que confirma a verdadeira história encontra-se em Salles (1958) que de forma sagaz assim escreve:

(...) “Fato espantoso nos anais da História do Brasil foi o ocorrido durante o governo de Joaquim Silvério de Café Filho, quando a Embaixada Americana se queixou ao Juarez de que o Almirante Álvaro Alberto era, afinal, patriota brasileiro e não patriota ianque, conforme ela supunha. Que se tornava, pois, urgentíssimo, demiti-lo e, se possível, desmoralizá-lo.

Eu conto o caso. Procurava o Almirante, como presidente do Conselho Nacional de Pesquisas, instalar no Brasil indústrias essenciais à obtenção da energia atômica, valendo-se da boa vontade dos Estados Unidos. Em vão! Declararam oficialmente os Estados Unidos que não cederiam coisa alguma de valor ao Brasil... Só ferro velho.

- Impossível!

- É o que consta do Relatório, leitor, em depoimento prestado por Álvaro Alberto “ Desde que iniciamos nossas conversações com a Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos, foi-nos invariavelmente afirmada a impossibilidade de qualquer forma interessante de cooperação no terreno da tecnologia de reatores, - a não ser o que já fora desclassificado” (...) (Gondin (1958:4)..

Segue um resumo explicativo desse imbróglio: Juarez Távora, (que era o chefe da Casa Militar em março de 1955 - o suicídio de Getúlio data de agosto de 1954) pediu a seu parente e membro da Comissão de Energia Atômica(CEA) do CNPq, Elysário Távora, que entrasse em contato com a Embaixada Americana para, segundo suas palavras “esclarecer os motivos por que não havíamos logrado, até então, uma colaboração mais efetiva, de seu governo, para o nosso desenvolvimento, no tocante à energia nuclear.”

Outra ponta da história está em Cagnin et al. (1996) ao descrever a participação de Távora, em agosto de 1955, como conselheiro do CEA. Távora atuou como membro da delegação brasileira na Conferência Internacional sobre Aplicação Pacífica da Energia Nuclear, em Genebra, considerada na época o maior congresso científico já realizado. Muitos cientistas brasileiros da área da física estiveram presentes, como José Leite Lopes, Marcelo Damy, José Goldemberg, entre outros. O Brasil, na área da física, destacava-se no mundo pelo nível de seus trabalhos científicos.

Um agravante nas relações diplomáticas Brasil/EUA daquela época estava ligado a negociações secretas, de governo a governo, tendo americanos pressionado para o envio de tropas militares brasileiras à Guerra da Coréia. Por outro lado, os brasileiros necessitavam de 500 milhões de dólares para o “Plano Nacional de Reaparelhamento Econômico”. Juarez Távora era contrário à política nacionalista de energia atômica defendida pelo CNPq e pelo Conselho de Segurança Nacional, e queria uma aproximação com os americanos.

Álvaro Alberto questionava os acordos com os Estados Unidos sobre as questões da energia nuclear, conforme se depreende em Cagnin, Albuquerque e Albagli (1986), quando foram escrevendo as próprias palavras de Álvaro Alberto que reclamava dos americanos a exigência de que o Brasil trabalhasse o tório, que, beneficiado, ia para os EUA, deixando aqui os resíduos nucleares.

(...)” Trata-se nada mais, nada menos, de um contrato que foi feito e a cujo propósito uma das partes contratantes resolve, a uma certa altura, ficar somente com aquilo que é mais conveniente a seus interesses e abandonar o bagaço e a casca para os outros”.

Na dissertação de mestrado de Albagli, reproduzida por Cagnin et al .(1996) vê-se que:

(...) “O presidente do CNPq, almejando o desenvolvimento do programa nuclear brasileiro e considerando as restrições impostas pelos Estados Unidos através da Lei Mc Mahon, foi apoiado pela maioria dos membros do Conselho Deliberativo na busca de novas parcerias, sem que isso representasse o abandono do Brasil ao bloco ocidental liderado pelos Estados Unidos. Em 1953 Álvaro Alberto parte para a Alemanha em operação sigilosa, onde encomenda três centrífugas, com financiamento concedido pelo presidente Getúlio Vargas. Na França, manteve contato com a firma Société des Produits Chimiques des Terres Rares para a construção de usinas para tratamento químico de minérios atômicos e a produção de urânio metálico nuclear puro, a serem instalados em Poços de Caldas, em terreno cedido pelo então governador Juscelino Kubitschek. Uma comissão composta pelos químicos Walther Ferreira, Willer Florêncio e Alexander Girotto sob a chefia deste último, obteve no início de 1954 urânio metálico nuclearmente puro.”

O CNPq iniciou também uma série de contatos com a Inglaterra e a Itália para o intercâmbio de especialistas em energia atômica. Ocorreram embaraços alfandegários pelos americanos quando as centrífugas encomendadas junto à Alemanha, foram depois embargadas na Alemanha Ocidental até o ano de 1956, pelo alto comissário americano James Connant, que comandava as forças de ocupação daquele país.

Como se percebe, o trabalho de Sarita Albagli e ainda de Vânya Sant’anna (1951) confirmam a pesquisa realizada para este trabalho, mostrando que as áreas de inteligência estrangeiras e nacional já estavam nos calcanhares do almirante Álvaro Alberto com o intuito de rastrear os seus passos.

Pode-se interpretar pela análise dos estudos de Albagli (1988:82) que a motivação da criação da “bomba tupiniquim” tenha ocorrido durante a visita ao Brasil (1953) do físico norte-americano Robert Oppenheimer (ex-diretor do Laboratório de Los Alamos, quando lá se desenvolviam os estudos e a preparação da primeira bomba atômica; diretor do Instituto de Altos Estudos de Princeton; e presidente do Comitê Consultivo Geral da Comissão de Energia Atômica dos Estados Unidos). Esse físico iria exercer forte influência na elaboração, pelo CNPq, de um programa atômico mais detalhado, enfatizando a formação de recursos humanos. O programa apontava, dentre outras medidas, para a necessidade de aquisição imediata de centrífugas (para a produção de urânio enriquecido) e da contratação de técnicos americanos e alemães, com vista à construção de reatores atômicos no país.

Outro fato que comprova a idéia original do Brasil em direção à construção da bomba atômica brasileira. Tal fato pode ser comprovado pela passagem a seguir, feita em depoimento prestado em 1956 à Comissão Parlamentar de Inquérito, criada para averiguar as irregularidades no programa nuclear brasileiro.

Álvaro Alberto assim relatou sua viagem:

“(...) Finalmente, em 1953, dei um pulo à Alemanha. Estive ausente apenas dias e os secretas andavam me acompanhando por toda a parte, para saber o que eu fazia. Mas, naquela época, já as potências ocupantes estavam a par de que os alemães cogitavam de fazer ultracentrífugas, porque eles pediram licença para a sua construção e a licença foi negada.

(...) As potências ocupantes declaravam que não podiam dar a licença para serem feitas essas centrífugas, embora viessem para nações amigas, como eu disse ao professor James Connant, professor de química e presidente da Universidade de Harvard e que era o chefe da Comissão das Potências Ocupantes: “Os senhores em certas ocasiões têm memória fraca e o senhor então, que é professor de química orgânica, que faz apelo tão grande à memória, o senhor esquece de que o Brasil entrou em duas guerras ao seu lado? E o senhor acha que o Brasil não tem o direito de produzir uma coisa que os senhores produzem? Por que razão?

Qual o privilégio, o monopólio que lhes foi concedido pelo Criador para isso? Tanto mais que agora não são os senhores os únicos a fazer isso! Pois nós haveremos de fazer isso!” .

Mas àquele tempo, nosso país era essencialmente agrícola, artesanal, ainda nos trôpegos passos iniciais, à procura de um processo de industrialização mais efetiva, com enormes carências e a inexistência, quase total, de recursos de toda ordem.

Naqueles primeiros momentos, as pressões da incipiente comunidade científica eram por uma ação efetivamente ampla de apoio à pesquisa, e contribuíram decisivamente para que nosso destino fosse menos bombástico e mais construtivo. Assim, desde as primeiras liberações financeiras para apoio efetivo à pesquisa, o uso dos recursos públicos na órbita do CNPq esteve sempre mais associado ao saber que ao destruir.

Sob Vargas e o nacionalismo daqueles tempos, o CNPq se instituiu e ampliou seu espectro de atuação, deslocando rapidamente sua orientação institucional para o apoio ao desenvolvimento amplo das ciências, não sem o apoio de várias instituições, criadas simultaneamente à mesma época - a própria Capes, por exemplo. Mas naqueles tempos, também eram poucos os nossos cientistas, e o investimento na formação de novos quadros foi a linha de ação que maior aporte de recursos recebeu, sem condições de apresentação de resultados práticos que se faziam necessários ao emergente setor produtivo.

Vieram os “cinqüenta anos em cinco” do Governo JK, de visão desenvolvimentista, e com eles a opção pelo modelo de importação tecnológica, voltada para a indústria automobilística. Começou a evasão de cérebros, o que inviabilizaria qualquer possibilidade mais concreta de vinculação da pesquisa ao nascente setor produtivo industrial. Este período foi decisório para que a pesquisa em nosso país se aproximasse ainda mais da esfera das universidades, anunciando já naqueles tempos os contornos de uma situação que perdura até os dias atuais.

Hildebrando Souza Menezes Filho

* É mestre em desenvolvimento sustentável pela Universidade de Brasília e Analista em Ciência e Tecnologia do Conselho Nacional de Desenvolvimento Científico e Tecnológico – CNPq

Navegando Amor
Enviado por Navegando Amor em 15/05/2010
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