A sociedade ante o progresso técnico-científico - 1° Parte: O caminho percorrido
Pensar a ciência e os resultados advindos dela é fazer uma grande reflexão a respeito das necessidades e interesses do homem, pois é claro que a ciência está a serviço dele para poder melhorar a sua vida. Mas qual a real importância do pensamento científico para a humanidade? Nessa primeira abordagem apresentarei resumidamente as principais contribuições da ciência na formação do nosso pensamento ocidental acerca do mundo e seus fenômenos, assim como algumas considerações acerca do desenvolvimento da razão como motriz das investigações.
Cessa o ciclo da evolução física da raça humana, a partir daí o mundo perde sua estabilidade (na verdade nunca foi estável); o homem agora evolui através de suas ações e criações impulsionadas pela razão. Sabemos que o pensamento bem arquitetado, planejador é uma novidade ao homem. Nos primeiros tempos, precisamente no período paleolítico e mesolítico, as organizações tribais nômades eram formadas por indivíduos cuja maior preocupação era o presente. Vivia-se os momentos imediatos da realidade com pouca ou nenhuma perspectiva voltada para o futuro.
Tudo o que envolvia a emoção e os fatos concretos da realidade eram absolutamente verdadeiros; não era contestado nenhum acontecimento por mais aleatório que fosse. Embora em algumas tribos houvesse a necessidade de consultar oráculos ou sábios – aqueles que estavam em contato direto com os espíritos ancestrais – para “enxergar” o futuro referente à caça, casamento, catástrofes, o presente por eles vivido era aceito sem um questionamento permanente. Isso não significa dizer que o pensamento primitivo (antigo) estivesse isento de abstração, apenas não via necessidade de duvidar deus sentimentos perante a natureza. O povo estava enlaçado aos acontecimentos da natureza e tudo advinha dela (Tellus Mater). Outro aspecto notável era a posição da mulher nesse período: ela era vista como sagrada por se capaz de gerar sozinha a vida, também era temida e adorada, pois era ela (Terra) quem recebia os mortos. A figura da mulher era análoga à da natureza. Respeito, companheirismo e adoração faziam parte das relações internas dessas tribos primordiais. Com a transformação do modo de seguir o curso da vida (na transição do mesolítico para o neolítico), e mais adiante com a ascensão do deus semita e do surgimento do patriarcado – resultado da descoberta da participação masculina no processo de fecundação – houve um abalo na estruturas da ordem natural do mundo.
O homem forçosamente assumiu o trono da mulher e como não era a “natureza personificada”, passou a subjugá-la, molestá-la a seu bem querer. Não entendo por qual motivo as mulheres se renderam aos homens (aqui me refiro ao período já relatado), talvez por os amarem e respeitarem ou por talvez por temerem o timbre grave de sua voz e sua altura e musculatura avantajada. É certo que a partir de então, o homem quis ser o deus da terra, formulando os conceitos gerais da cultura sob sua ótica (por detrás dos conceitos há sempre uma referência oculta à sua superioridade viril). E com o homem agora sendo o responsável pela criação dos ideais que vigoram na sociedade – pois em muitos países ele é historicamente a figura dominante da família –, fora estabelecido um novo paradigma: não mais guiar-se pela intuição e sim pelo intelecto. Enquanto o homem se via como um conjunto integrado de partes físicas dependentes, a própria relação dele com o coletivo era assemelhada a esse aspecto; o indivíduo servia ao todo sem entregar-se ao seu ego. Mas a ruptura com tal forma de vivência – efeito do patriarcado e do recente pensamento cartesiano (veja que já avançamos bastante) – gerou uma nova concepção da realidade e uma nova forma de enxergar sua posição no mundo.
A contribuição de Descartes, que se estendeu para diversos campos, fora a sua certeza da supremacia da racionalidade como a forma mais apta a questionar e inferir clara e distintamente sobre o universo. Ele também apresentou a idéia – já tratada por Platão – de que a mente era uma estrutura independente do corpo e vice-versa. Sua visão mecanicista de tudo o que existe, afirmando que o mundo é uma maquina governada por leis mecânicas, semelhante a um relógio movido por diversas engrenagens, também atravessou as barreiras do pensamento de sua época. Claro que desde a civilização helênica, na Grécia Antiga, o pensamento racionalista atuava na elucidação de questões da Physis, mas eles ficavam fixos no plano teórico e não procuravam experimentar suas conjecturas; o experimento é uma característica do método moderno científico de análise.
A Filosofia, embora trouxesse para si algumas questões relacionadas com a realidade, também não conseguia sair do plano teórico. Mas muitos dos seus problemas metafísicos nunca foram deixados de lado, pois tratavam da natureza em si e posteriormente os anseios filosóficos foram incorporados à investigação científica, por exemplo: a idéia de átomo; o pensamento ordenado na elucidação de qualquer espécie (metodologia científica) e etc. A Religião ainda tinha certa influência sobre os conceitos acerca da origem do mundo, mas logo perdeu força devido às constantes descobertas feita pelos físicos. Por isso o pensamento científico e a física praticamente reinavam – mesmo às escondidas – na descrição objetiva do mundo entre os séculos XVII e XIX, até hoje reina é obvio.
Pensadores de origem filosófica, mística, matemática como Bacon, Kepler, Galileu, Descartes e principalmente Newton, fundamentaram teoremas cujos princípios baseavam-se na descoberta das leis (fórmulas matemáticas) que agem no mundo. Esses pensadores queriam explicar racionalmente – cientificamente falando – cada fato sempre se baseando pelas leis da causalidade e do movimento dos corpos. Na concepção clássica da física, os acontecimentos ocorrem no espaço – que é absoluto, ou seja, não sofre influência dos acontecimentos, ele é inalterável, imóvel – e no tempo (igualmente absoluto como o espaço); os fatos que ocorrem na realidade física são provenientes dos elementos materiais que sofrem a ação da gravidade ou de forças motrizes; todos os fenômenos de ordem física é conseqüência dos movimentos da matéria. Isso enfatiza a noção de “ordem perfeita” do universo, uma idéia muito difundida no séc. XVII e XVIII que idealizava o mundo como uma grande máquina onde cada parte que a compõe tem seu papel específico no funcionamento dela.
Nadando contra os paradigmas vigentes da física mecânica, pesquisadores se esbarraram com outros tipos de fenômenos: elétricos e magnéticos. Aqui a mecânica clássica (o conceito de força newtoniano) não pode ser aplicada. Tais energias atuam não no espaço físico, mas no campo de força, ou como alguns imaginaram, no éter. O novo estudo gerou a eletrodinâmica, mostrando que a luz é um campo eletromagnético que percorre o espaço vazio em formas de ondas e partículas e nenhum cálculo antigo da física, cuja base era a matéria, poderia tratar do estudo dela. Outro fator que serviu como uma tendência ao rompimento com as teorias clássicas da física foi o surgimento da mecânica quântica a partir do século XX. O foco agora era desvendar a estrutura do átomo a partir da radioatividade, que ao bombardeá-lo possibilitaria estudá-lo em suas propriedades elétricas. O relevante nisso tudo foi a certeza de que as convicções cartesianas e newtonianas não eram absolutas; não havia mais a “certeza” e sim “probabilidades” no mundo da matéria.
Ficou claro que as influências acima se estenderam para outras áreas do conhecimento como a biologia. Essa, ao adotar o sistema mecanicista, se preocupou apenas em entender a estrutura fisiológica dos seres, sem dar importância ao conjunto, à terra como um todo. A grande novidade da biologia foi a descoberta das células e a base molecular dos cromossomos (genes), deslocando o estudo dos animais – o homem também entra aqui – não como sendo o resultado dos diversos aspectos sociais, ambientais, sensoriais e sim para sua estrutura genética.
A biologia molecular é atualmente a responsável por delimitar o organismo e extrair daí conclusões a respeito do funcionamento dele. O paradoxal nisso é que os próprios cientistas não são capazes de definir o motivo da ocorrência de tal funcionamento. Sabem que os genes determinam os traços hereditários a parir do processo de síntese enzimática, mas não entendem o motivo desse sistema funcionar assim. O homem em sua estrutura fisiológico-biológica pode ser desvendado, porém a razão de sua formação permanecerá uma incógnita. Poderão dizer que foi por acaso que ele foi constituído, ou que a partir da evolução de um simples organismo unicelular, passando por diversas modificações, ele se desenvolveu. É claro que falta muita coisa para ser descoberto sobre a natureza física humana; se depender dos cientistas isso será feito. Decompô-lo em partes unitárias é reviver a já ultrapassada noção mecanicista do corpo; o corpo não é uma máquina que funciona só por causa de suas partes internas, mas deve se levar em consideração a exterioridade. Para muitos é um grande avanço estudar as partes mais microscópicas do organismo, achando que tais partes são as únicas responsáveis pela formação de um ser.
A medicina, guiada pelos avanços da biologia molecular e celular, passou a se importar mais com a separação das partes que compõe todo o sistema biológico do homem, principalmente a partir da descoberta da relação entre bactéria e enfermidade por Louis Pasteur. Aí se mostra a influência cartesiana em se separar o corpo da mente, deslocando o eixo da investigação duma doença apenas ao seu âmbito físico, ignorando o sujeito e sua maneira de viver. Por exemplo: ao diagnosticar uma doença, os médicos logo a atribuem o problema a uma causa de ordem viral ou bacteriana, ou concluem que se trata do mau funcionamento orgânico; não se interessam tanto em compreender o lado psicológico, nem social do paciente. A doença persiste como efeito duma causa específica e não como conseqüência de distintos fatores. Saúde, na terminologia médica, significa ausência de doença. Mas outros problemas também deveriam ser inclusos nessa concepção limitada de saúde: alcoolismo, desnutrição, violência, depressão – que atualmente é levada a sério por seu grande avanço nos lares –, suicídio, ambos são doenças que afetam o caráter psicológico e social do indivíduo e consequentemente a saúde pública. E mesmo as novas máquinas sendo capazes de mostrar os causadores duma doença, nem todas as enfermidades são de ordem biológica e sim estão intrinsecamente relacionadas à alimentação, hábito de vida ou à própria imunidade do indivíduo, que muitas vezes está mais receptivo para qualquer contagio. Então está mais que certo que a “tecnologia médica é insuperável (John H)” em alguns aspectos, pois consegue diagnosticar com certa precisão os responsáveis por um sofrimento humano, ao mesmo tempo em que tal tecnologia está limitada aos mais ricos e gera altos gastos para uma nação. Enquanto poucos usufruírem de tal benefício, os avanços não serão sentidos pela população.
É irônico observar o progresso nas áreas da química, biologia, medicina e perceber que nem todos os espectadores serão inclusos nos resultados poderia estr em Londres fazendo um tratamento caríssimo para evitar a perda de cabelo, enquanto outros dez mil estariam se arrastando na penúria, cheio de verminoses, desnutridos e sem nenhuma assistência. Assistimos fascinados todos os avanços proporcionados pela ciência e pela tecnologia, e reconhecemos horrorizados que eles não mudam a triste realidade dos excluídos. O progresso foi apenas no lado material, servindo para aumentar o orgulho do homem envaidecido em sua capacidade criativa e construtiva. Resta saber se a questão é apenas de ordem econômica, pois cada avanço é acompanhado por muito dinheiro e esse deve ser recuperado, pelo menos assim o quer quem se propunha a evoluir seu arsenal de pesquisas médico-hospitalar. Se o dinheiro não tivesse importância, todos poderiam avançar em sua tecnologia e distribuí-la gratuitamente a quem realmente necessita de auxílio.
Aqui me limitei a relatar os avanços mais notórios da ciência relacionando-os a sua respectiva aceitação na sociedade. No próximo texto farei uma reflexão crítica sobre qual é a intenção do homem em sua crescente utilização científica e os seus possíveis efeitos para o futuro do mundo.