A história dos ônibus espaciais americanos.
1- Introdução:
Os ônibus espaciais construídos e utilizados pela agencia espacial americana, a NASA, foram uma das realizações técnicas mais extraordinárias da segunda metade do século XX. As impressionantes imagens de seus lançamentos, rotineiramente transmitidas pelos noticiários da televisão, marcaram o imaginário de toda a humanidade, fixando de forma indelével duas idéias nas mentes de cada habitante civilizado do planeta Terra: A superioridade tecnológica dos Estados Unidos e a transformação das viagens espaciais praticamente em rotina. No entanto, apesar de terem sido durante décadas o esteio do programa espacial americano, em termos de engenharia estas naves não fazem muito sentido, e foram em última análise o principal motivo das poucas realizações alcançadas na pesquisa do espaço após o final das viagens à Lua efetuadas no escopo do programa Apollo.
Este artigo tem como objetivo justamente apresentar os conceitos por trás do desenvolvimento e utilização dos ônibus espaciais da NASA, suas características e limitações, e explicar o porque de seu efeito negativo sobre a exploração espacial para os estados Unidos e consequentemente para toda a humanidade.
2 – Histórico:
A idéia de desenvolver naves espaciais reutilizáveis surgiu durante a década de sessenta, antes mesmo da chegada do homem à Lua. Por esta época todas as cargas lançadas ao espaço faziam uso de foguetes descartáveis, que pesavam centenas ou mesmo milhares de toneladas no lançamento e podiam colocar apenas uma pequena fração de toda esta massa no espaço. Durante cada lançamento os componentes destes foguetes iam sendo abandonados para aliviar peso, caindo de volta à superfície e tornando-se sucata imprestável de alta tecnologia, ou ficando em órbita como lixo espacial. Imagens como as do foguete Saturno V usado nas missões lunares, majestoso na base de lançamentos com seus 110 metros de altura, e do pequeno módulo de comando com menos de 3 metros e meio que era a única parte dele que retornava à Terra para logo em seguida ser jogado fora, criavam um contraste que incomodava tanto os cidadãos comuns quanto os engenheiros responsáveis pelo desenvolvimento dos veículos espaciais, deixando uma forte impressão de desperdício. Era natural então que idéias relativas a veículos lançadores e naves espaciais reutilizáveis fossem consideradas como o próximo desenvolvimento lógico nas viagens espaciais.
Assim, ainda durante os anos sessenta do século passado tanto na antiga União Soviética quanto nos Estados Unidos iniciaram-se os primeiros estudos de veículos espaciais que não tivessem que ser descartados após completada cada missão. Nos Estados Unidos especificamente, a força aérea americana (USAF) iniciou o estudo de um veículo hipersônico/orbital derivado das tecnologias desenvolvidas durante o programa de “aviões experimentais X”, que se iniciara como X-1, primeira aeronave a ultrapassar a barreira do som, e chegara até o X-15, capaz de atingir quase sete vezes a velocidade do som e alcançar mais de 100Km de altitude, operando efetivamente como uma nave espacial embora sem a capacidade de entrar em órbita. Este novo projeto, que recebeu o nome de Dyna-Soar, levaria apenas 1 piloto e em princípio visava aplicações militares, embora estas jamais tenham sido definidas em detalhe. Diferentemente dos ônibus espaciais que viriam depois, ele não possuiria motores capazes de levá-lo ao espaço, e seria lançado por grandes foguetes descartáveis como as cápsulas Mercury e Gemini da NASA. Sua principal característica distintiva seria o fato de, ao contrário destas, ser reutilizável.
Ao mesmo tempo em que o Dyna-Soar era projetado pela USAF, as equipes de engenheiros da NASA começavam a planejar suas missões futuras, a serem implementadas após o fim do programa Apollo. Considerando o enorme orçamento que aquela agência espacial recebia para cumprir a missão de colocar astronautas na Lua, não parecia irreal imaginar vários outros objetivos a serem atingidos na sequência, como uma base lunar, uma estação espacial tripulada permanente e viagens tripuladas à Marte. Visualizando especificamente a estação espacial, os engenheiros imaginaram um veículo que pudesse colocar seus módulos em órbita, levar astronautas até ela e abastecê-la. E evidentemente este veículo, que substituiria os foguetes utilizados até então, deveria ser reutilizável. Os primeiros esboços do projeto consideravam um grande transportador sub-orbital com asas que levaria uma nave espacial parecida com uma versão menor dos atuais ônibus espaciais até uma certa altitude, e depois retornaria voando para sua base enquanto a nave prosseguiria por seus próprios meios até a órbita da Terra, levando os astronautas e a carga.
Logo ficou claro que o custo de desenvolvimento e principalmente de operação de um sistema assim seria muito elevado, e a melhor forma imaginada para reduzi-lo seria diluindo-o em um número bem maior de lançamentos. Daí surgiu a idéia de que os ônibus espaciais deveriam ser capazes de realizar todas as missões que eram cumpridas pelos foguetes descartáveis, ao invés de apenas as relacionadas com a estação orbital tripulada. Os lançamentos de satélites comerciais, científicos e militares, mais os componentes da prevista estação espacial e outras missões tripuladas deveriam ser todos efetuados pelos novos veículos. Inclusive as missões imaginadas pela USAF para o Dyna-Soar, cujo projeto foi cancelado, bem como o transporte dos enormes satélites de reconhecimento militar que estavam sendo desenvolvidos e que pesariam mais de vinte toneladas.
Para cumprir todas estas missões os requisitos operacionais das naves reutilizáveis da NASA cresceram e se complicaram bastante, levando a um aumento do seu tamanho e da sua sofisticação. Contudo, a situação política e econômica dos Estados Unidos na virada da década de 70 começou a mostrar sinais de forte deterioração. Atolado no lodaçal do Vietnã desde o final da década anterior e enfrentando a primeira crise do petróleo à partir de 1973, o governo americano decidiu cortar profundamente as verbas destinadas à NASA após o sucesso das primeiras missões Apollo, e a agência espacial teve que escolher entre os diversos programas que ela estudava apenas um para ser de fato levado em frente. Abandonando as pretensões de montar uma base na Lua e enviar homens à Marte, os administradores da agência decidiram manter apenas o projeto da estação orbital tripulada, bem como o do ônibus espacial que a atenderia. O crescimento da complexidade deste último projeto e cortes ainda maiores do orçamento obrigaram a que se escolhesse apenas um destes projetos, e pensando que a disponibilidade dos ônibus espaciais facilitaria a posterior retomada da construção da estação orbital, escolheu-se por manter apenas o desenvolvimento das naves reutilizáveis.
O conceito inicial de um sistema totalmente recuperável logo se mostrou caro demais se fossem mantidos todos os novos requisitos operacionais estipulados para o projeto, e a redução destes diminuiria também as missões que poderiam ser cumpridas e por consequência a quantidade prevista de lançamentos, o que tornaria todo o sistema anti-econômico se comparado ao uso de foguetes convencionais. Decidiu-se então adotar uma nova configuração não totalmente recuperável, que mantivesse as capacidades desejadas por um custo sensivelmente mais baixo. O transportador sub-orbital com asas foi abandonado, substituído por dois foguetes convencionais de combustível sólido que desceriam de pára-quedas no mar e seriam recuperados para reutilização, e por um enorme tanque de combustível descartável a ser levado na barriga da nave orbital. Os motores principais do sistema ficariam instalados na própria nave. Assim chegou-se a configuração hoje conhecida dos ônibus espaciais.
3 – Características e limitações:
Após o início das suas operações, os ônibus espaciais tornaram-se rapidamente o principal esteio do programa espacial americano. No entanto, desde o começo eles tinham um sério problema relativo à questão dos custos. Não deixa de ser irônico que em princípio eles tenham sido imaginados justamente para reduzir o custo da colocação de cargas em órbita através da reutilização do "hardware" (ou pelo menos da maior parte dele) utilizado no lançamento, ao contrário do que acontecia com os foguetes descartáveis utilizados anteriormente. Mas este conceito colocou o primeiro problema, pois para recuperar os motores principais e outros itens menores de equipamento foi necessário desenvolver uma nave com asas, blindagem térmica, trem de pouso, etc..., o que acabou por elevar o peso a ser colocado em órbita de forma absurda. Para orbitar as 25 ton de carga útil que cada ônibus espacial pode carregar, as 56 toneladas do próprio ônibus tem que ser colocadas em órbita também, mais do que triplicando a massa total a ser levada ao espaço.
Outro problema é que a NASA não confiava em sistemas automáticos de pouso à época em que os ônibus espaciais estavam sendo desenvolvidos, e portanto eles tiveram que ser projetados para pilotagem manual. Cada lançamento teria que levar pelo menos dois astronautas/pilotos para trazer a espaçonave de volta a Terra e pousá-la como um avião em segurança. Para isso todos os sistemas das naves e procedimentos de lançamento tiveram que ser desenvolvidos com um nível de segurança muito maior que o necessário para levar apenas carga, causando um aumento brutal nos custos por lançamento. Outro resultado foi que as revisões após cada missão teriam que ser muito mais cuidadosas, e vários itens das naves tem que ser praticamente desmontados e reconstruídos antes de cada vôo, tornando inviáveis as estimativas iniciais da NASA de que seriam efetuadas até 4 missões dos ônibus espaciais por mês. O número jamais chegou a mais que 1/4 desta estimativa na melhor época, o que fez com que os custos unitários por lançamento ficassem ainda maiores.
Para complicar mais a coisa, após o início das operações dos ônibus espaciais a NASA descobriu que simplesmente não havia "clientes" para eles que justificassem um número maior de lançamentos. Devido às suas próprias características de projeto os ônibus espaciais só podem levar cargas até órbitas baixas, e simplesmente não existem muitas cargas úteis na faixa das 25 ton para serem colocadas nesta órbita. Em uma tentativa de aumentar a quantidade de lançamentos e assim evitar custos unitários ainda mais altos a NASA desenvolveu sistemas de transferência orbital, e começou a oferecer os ônibus espaciais para o lançamento de satélites de comunicação e outras aplicações civis a custos subsidiados, tirando encomendas das empresas que fabricavam foguetes tradicionais para o mercado comercial e quase levando-as à falência nos EUA. Para evitar que estas importantes empresas falissem e os americanos perdessem a capacidade de desenvolver novos foguetes a NASA acabou cancelando os lançamentos comerciais, ainda mais depois das tragédias da Challenger e da Columbia, que reduziram o tamanho da frota.
Para justificar a manutenção dos ônibus espaciais em vôo o projeto da estação espacial Freedom (depois ISS) foi feito baseando-se em módulos adequados para lançamento por estas naves, levando a um conceito de base espacial que muitos afirmam ser muito mais complexo e caro do que seria realmente necessário. A montagem desta estação da forma como foi feita fez excelente uso das capacidades de manobra dos ônibus espaciais e do fato deles poderem levar um braço robótico capaz de operar com cargas pesadas, dando a justificativa que a NASA desejava para a que eles fossem mantidos em serviço por um período mais extenso. Afinal, a própria ideia dos ônibus espaciais estava desde o início ligada à da construção de uma estação espacial. Só que quando esta finalmente começou a ser construída a frota naves reutilizáveis já estava bastante velha, e para manter-se em vôo exigia manutenções cada vez mais caras e demoradas.
Tudo isso levou o custo unitário por lançamento literalmente para o espaço, estando ele hoje oficialmente calculado em pelo menos 1,4 bilhão de dólares por lançamento. Mas na verdade esta conta considera os valores nominais utilizados desde o início dos lançamentos décadas atrás, e se for levada em conta a inflação o custo atual de cada lançamento está com certeza bem acima dos dois bilhões de dólares. A título de comparação, um Ariane-V europeu pode colocar cerca de 16 ton em órbita baixa por 250 milhões de dólares, e um Próton russo leva mais de 20 ton por menos de 150 milhões. Estima-se também que o foguete russo Energia, que foi lançado apenas duas vezes no final da década de 1980 mas pode ser ainda construído e lançado se solicitado, seria capaz de colocar 100 toneladas de carga em órbita baixa por cerca de um bilhão de dólares.
Mesmo considerando-se apenas os foguetes lançadores construídos nos Estados Unidos, cujo custo é maior, as opções atuais para cargas pesadas seriam o Atlas-V, capaz de orbitar 20 ton com um custo de cerca de 400 milhões, e o Delta-IV, que pode colocar mais de 30 ton em órbita baixa por um preço equivalente. Mas nenhum destes foguetes está apto a lançar naves tripuladas com o nível de segurança requerido, e se os ônibus espaciais fossem aposentados agora os americanos simplesmente não teriam nenhum veículo capaz de levar homens ao espaço, em uma época em que a Rússia e a China os possuem. Isto não é politicamente aceitável para os EUA, e por isso eles ainda voam até hoje (e há quem queira mantê-los em operação por mais alguns anos).
A comparação de custos deixa evidente que pelo mesmo preço de um único lançamento do ônibus espacial para colocar 25 ton de carga em órbita terrestre baixa seria possível lançar mais de 100 ton utilizando-se 5 vôos de outros lançadores americanos, ou até mais de 250 ton com foguetes russos. E deve-se ainda considerar que se tantos lançamentos destes foguetes descartáveis tivessem sido efetivamente contratados seus custos unitários teriam sido ainda menores que os mencionados. Fica claro portanto que a consequência da manutenção em operação dos ônibus espaciais foi o consumo de uma enorme quantidade de recursos financeiros para colocar apenas uma quantidade limitada de carga no espaço, e esta situação já perdura por mais de três décadas. Se a quantidade de recursos desperdiçada com as naves reutilizáveis durante todo este tempo tivesse sido gasta de forma mais racional, utilizando os comprovados foguetes descartáveis, a quantidade de realizações americanas em termos de pesquisa espacial poderia ter sido incomensuravelmente maior do que realmente obtido desde a década de 80, quando os ônibus espaciais entraram em operação. Daí a afirmação, feita na introdução deste artigo, de que o programa dos ônibus espaciais americanos acabou sendo um dos maiores entraves ao progresso da pesquisa espacial daquele país.
Não é de se admirar, portanto, que para a substituição dos ônibus espaciais a NASA tenha revertido para a solução dos foguetes e naves espaciais convencionais, apenas parcialmente reutilizáveis, muito embora a escolha de uma nave descartável como a Orion ao invés de um sistema reutilizável aos moldes do antigo conceito do Dyna-Soar, do Hermes europeu ou do Klipper russo esteja sendo criticada por alguns como por demais conservadora. De qualquer forma, a redução dos custos por lançamento esperada para após a aposentadoria dos ônibus espaciais deverá liberar verbas da NASA para muito mais missões tripuladas e automáticas do que foi possível durante o período em que os ônibus espaciais estavam em operação. Isto deverá permitir que o número de realizações e descobertas possa crescer muito após a aposentadoria destas naves, magníficas, mas em última análise economicamente pouco racionais.