A Esposa de Sócrates
A Esposa de Sócrates
Cardoso I
Xântipe suspirou. A luz alaranjada do entardecer entrava pelas janelas da pequena casa, lançando sombras alongadas sobre a mesa de madeira gasta. Sócrates estava lá, como sempre, absorto em pensamentos que pareciam pertencer mais ao mundo das ideias do que à realidade cotidiana. A sopa esfriava diante dele, intocada.
Ela cruzou os braços.
— Sócrates, vais comer ou continuar a questionar os deuses sobre a essência da cevada?
O filósofo ergueu os olhos, um meio sorriso nos lábios.
— Mas, minha querida, não é curioso que algo tão simples como a cevada possa ser ao mesmo tempo alimento e reflexão?
Xântipe bufou e puxou uma cadeira, sentando-se diante dele.
— Curioso seria se me ajudasses a carregar os jarros de água do poço. Isso sim seria uma reflexão digna.
Ele riu, e o som ecoou suave pelo pequeno cômodo. Para os discípulos e jovens atenienses, Sócrates era um mestre, um provocador de pensamentos, um sábio. Para ela, era um marido distraído, teimoso e, muitas vezes, irritante.
— Pergunta-me o que é a virtude, o que é a justiça, o que é o bem. Mas nunca me pergunta se preciso de ajuda com as crianças ou com os afazeres da casa — continuou ela, fitando-o com o olhar afiado.
Sócrates apoiou o queixo sobre as mãos, pensativo.
— Talvez porque a virtude seja um enigma maior do que a necessidade da água ou do fogo.
Xântipe fechou os olhos por um instante, respirando fundo. Havia dias em que sentia vontade de despejar uma ânfora de vinho sobre a cabeça dele — e havia rumores de que já o fizera. Mas não era apenas raiva que sentia. Havia amor ali, misturado à exasperação. Porque, apesar de tudo, Sócrates tinha uma honestidade quase infantil. Ele não desejava ouro, nem poder, nem glória. Só desejava pensar, questionar e entender o mundo.
E talvez fosse esse o maior desafio de sua vida: amar um homem que pertencia mais ao reino das ideias do que ao das coisas concretas.
— Os jovens te ouvem como se fosses um oráculo. Mas sabes o que ouço nas ruas? — perguntou ela.
— O que ouves?
— Que és um louco. Que és um perigo para a cidade. Que desafias os deuses e zombas dos poderosos.
Sócrates assentiu, sem demonstrar surpresa.
— Se pensar é um perigo, então talvez eu seja mesmo culpado.
Xântipe o olhou demoradamente. Sabia que um dia as palavras dele lhe trariam problemas. Atenas era uma cidade de glórias, mas também de ressentimentos. E não se desafiavam os homens poderosos impunemente.
Um silêncio caiu entre os dois, pesado como chumbo. Ela o conhecia o suficiente para saber que ele jamais fugiria de uma acusação, jamais tentaria agradar aqueles que exigiam sua obediência.
Xântipe se levantou e recolheu a sopa intocada.
— Um dia, quando não mais estiveres aqui para questionar o mundo, lembrarão de ti — murmurou.
Sócrates sorriu.
— E o que dirão sobre mim, minha esposa?
Ela o fitou nos olhos, séria.
— Que eras um grande homem. Mas que, no fim das contas, era eu quem te fazia descer dos céus e colocar os pés no chão.
E então saiu, deixando Sócrates sozinho com suas reflexões.