Memórias Póstumas de uma Cuba
Eu, que agora vos falo do além, jamais poderia imaginar que minha vida terminaria de forma tão... indigesta. E, sim, sou uma cuba, aquela peça fundamental em qualquer cozinha, mas minha história está longe de ser comum. Permitam-me contar como fui de um simples recipiente a testemunha silenciosa dos maiores dramas culinários.
Nasci de um aço inoxidável impecável. Reluzente, pura, destinada a grandes feitos. Minha primeira residência foi na cozinha de um renomado chef. Ah, os tempos áureos! Vi cortes precisos, carnes marinadas com esmero, peixes frescos sendo banhados em limão, tudo meticulosamente realizado em mim. Cada dia era uma nova obra-prima da gastronomia, e eu era o palco onde cada peça se montava. Modéstia à parte, fui a musa inspiradora de pratos que arrancaram aplausos em jantares memoráveis. Tudo era tão belo e... limpo. O auge, eu pensava.
Mas, como dizem, "o tempo passa, o tempo voa, e a poupança... já era". A glória passou, e fui vendida numa feira de usados para um destino menos glamouroso. Caí nas mãos de um certo Seu Zé, um cozinheiro de botequim famoso pela sua habilidade em fazer coxinhas oleosas e linguiças defumadas de procedência duvidosa. Adeus, azeites importados; olá, óleo de soja barato.
Foi aí que minha verdadeira saga começou. Ah, se vocês soubessem o que é a vida de uma cuba numa cozinha de boteco! Vi coisas que fariam qualquer livro de terror parecer uma comédia. Cebolas jogadas sem piedade, carnes que, de frescas, só tinham a lembrança, e – o golpe mais cruel – o tal do "temperinho secreto" do Seu Zé, que era mais uma mistura de mistério e mofo.
A gota d'água foi o feijão tropeiro. Ele estava há três dias repousando em mim, esperando o calor de uma panela que nunca chegava. Aos poucos, os feijões começaram a criar vida própria, formando uma espécie de... comunidade. Pensei que estava alucinando, mas não. As ervilhas também se juntaram à rebelião. Uma verdadeira revolução alimentícia começou dentro de mim! O feijão-rei ordenou: "Avante, marchamos rumo à panela!" E lá iam eles, descendo minhas laterais com um propósito.
Mas aí veio o grande dia. O Seu Zé, em um dos seus raros momentos de sobriedade, resolveu finalmente me esvaziar para preparar o famoso churrasco de domingo. Tudo estava indo bem, até que um acidente cósmico aconteceu. Um leve escorregão... e Seu Zé, com todos os seus quilos, despencou para dentro de mim.
Sim, caros leitores, Seu Zé foi derrotado pela própria cuba. Enfiei-me nele com toda a dignidade que ainda restava. A cozinha parou. Os clientes, atônitos, correram para salvar o cozinheiro, mas era tarde demais. Ali, no chão oleoso, repousava o Seu Zé, com a cabeça enfiada dentro de mim.
E foi assim que minha vida terminou. Não na glória de um prato cinco estrelas, mas como a assassina acidental de um cozinheiro de boteco.
Agora, do além das cubas, lembro-me desses dias com uma mistura de melancolia e alívio. Afinal, quem poderia imaginar que o último ato de uma humilde cuba seria protagonizar uma tragédia digna de uma comédia?
Descanse em paz, Seu Zé.
E a mim, só restam as memórias póstumas.