Memórias de um Ipê Amarelo.

Nus ou cobertos; no inverno ou na primavera, passa por debaixo dos meus galhos ruços todos os talentos retorcidos; num nó de garganta, de gravata, num coque apanhado ao cume -- de mulher -- ou nos braços cruzados de Luíza.

É vital que vos apresente Luíza fora das sombras de árvores para que a conheças à altura dos olhos, na perspectiva de gente. Era moça ilibada, reclusa para qualquer um. Assim havia sido gravado em seu coração: que fosse discreta e imperceptível aos "qualqueres"; como quem poupa o brilho unicamente ao extraordinário.

Aconteceu que eu vi os olhos de Luíza sem enxerga-los. Eram úmidos e castanhos; lembram-me toda a felicidade sentida no pouco, e também todo o muito que nunca vivi -- e que anelei com ganas de um trem em alta velocidade. Sei disso tudo porque tanto era o brilho recluso que quase escapava entre as unhas da moça quando apanhava a florzinha do enfio e salvava -- como fosse jóia -- nas folhas duma bíblia. É importante dizer que os lampejos resguardavam-se, em suma, no fundo de seu peito; mas que em dias de sol -- só de sol -- escapava aquela luz pela garganta em refrões de fado e cantigas. E toda a beleza, principalmente cintilante, rubricava naquele momento "Luíza Baggio" ao rodapé. Se o céu era cinza, eu enxotava os pássaros e borboletas de meus galhos até que Luíza passasse porque era então que pedia por abraço e quietude. Poderia eu abraçar-te, Luíza? Dei jeito: chovi todas as minhas flores aos seus saltinhos dourados . Bastava estes floreios para que ela esquecesse a manhã descorada; catava ramalhetes a reuni-los num buquê, e despedia-se a pé: "até amanhã, primavera!". Os ramalhetes iam escondidos.

"E torceu-se por quê? Falavas de enrolações e nós na garganta." -- é o que dizem as mexeriqueiras do jardim, acostumadas a ouvir-me murmurando "Luíza" feito reza(...) Senhoras, o que lhes conto agora é com pesar maior que todo o luto das viúvas e todo o impiedoso inverno despidor de galhos. Compreendam: se a mais chistosa romã do alto das árvores não for alimento aos famintos, o tempo a fará intragável em semanas, e que qualidade de boia tem o fruto podre? Verterá também ao pó toda a vida que teve por abundância e não quis partilhar. Se não havia receptáculo para a doçura -- que poderia maturar os engenhos em exercícios diários de sensibilidade e compaixão --; se Luíza não encontrara alguém com quem pudesse repartir a ceia, que faria com o que guardava dentro de si? Não apodreceria a florzinha em sua bíblia até que esbarrasse ao sujeito para ela "extraordinário"? (...)

Morreu como a fruta cevada no alto do arvoredo, Luíza. E foi se não pelo mais desastroso desastre de sua autonomia: apodreceu só. Lá se foram os lampejos e dotes adubar a terra. Levei um susto e angustiei-me por anos, mas compreendi por isso o quão importante é chover flores e ceder os galhos aos bem-te-vis ordinários, de todo dia. Nunca mais os enxotei, e nem a borboleta comum; essencial em toda a sua singeleza.

Se a leitora chegou até o fim destas memórias meio alongadas por detalhes que talvez sejam importantes só para mim, perdoai este pobre Ipê caduco, e leves embora um presente -- mas não o enfies em páginas de bíblia! Toma, pegue e distribua aos amigos e irmãos este folhetim de esgalho que diz:

Não detenhas do ordinário a tua magia,

Teus cuidados e mestrias;

Afã aos filhos de Deus!

Pois, sabeis que o vosso engenho é emprestado;

Os mangues e os grãos dos prados

São só pra o sustento teu.

E o sustento teu é pra o sustento d'outro

Portanto, não só teu ouro;

Teu sorriso e teu trabalho

Despende hoje! Rega a boa vontade

Que é a genuína piedade.

Cede o trigo, o grão, e o abraço.