1175-O BODE ESPIATÓRIO
O BODE ESPIATÓRIO
— Vovó, hoje cedo, na padaria do seu Zezé Sovado escutei um homem falando que não queria ser bode expiatório no caso da prefeitura. Ele estava muito brabo. Que é ser bode expiatório?
A noite estava fresca, a lua pela metade ia lentamente na direção do oeste, os grilos cri-crilavam no Jardim Na varanda da casa, de frente para a rua, Vovó Bia e Dorinha estavam sentadas, observando o nenhum movimento da rua e ouvindo os sons da noite.
Vovó Bia pensou: Lá vem a Dorinha com sua curiosidade.
— Bode expiatório...?
— É, bode expiatório, foi isto que o homem falou alto. Parecia que queria que todo mudo que estava na padaria escutasse o que ele estava falando.
— Bode expiatório ... bode expiatório. . . que coisa, hein?
Parecia que vovó Bia vasculhava a memória, em busca de alguma lembrança. Sua memória ainda era boa, mas de vez em quando, precisava de uns instantes para responder as demandas dos netos.
— Dorinha, porque você não vai procurar o Toninho e o Carlinhos? Acho que eles irão gostar desta história.
Dorinha levantou-se e dirigiu-se para o interior da casa e voltou logo em seguida.
—Não querem vir. Estão jogando damas.
Os netos já não se interessavam tanto pelas histórias de vovó Bia quanto apreciavam quando ela contava na Fazenda Palmital. Na cidade, tinham outros meios de se distraírem.
—Esses garotos... - disse vovó Bia, não demonstrando censura nem elogio. — Mas vamos lá com o seu bode expiatório.
E descansando os braços e mão sobre os braços da poltrona, começou a contar.
— Esta é uma das histórias da Bíblia, do tempo em que os hebreus erraram durante quarenta anos no deserto, em busca da Terra Prometida. Eram guiados por Moisés, que recebeu de Jeová os dez mandamentos e que fazia o possível e o impossível para manter os errantes na crença de um deus único, impessoal, não representado por nenhuma imagem. Mas quarenta anos de andar errando no deserto é muito tempo, considerando que eles não tinham um templo para se reunir e orar e fazer sacrifícios, o que era importante para manter a fé e a fidelidade a Jeová.
— Jeová é o mesmo Deus que nós acreditamos?
— Sim. Um pouco diferente . Jeová, como é descrito na Bíblia, é um deus poderoso, que exigia sacrifícios de animais, e impunha tarefas pesadas e castigos severos aos hebreus. Enquanto que Jesus, que também era judeu, pregou a ideia de um deus pai, amoroso, que não obriga ninguém a fazer coisas impossíveis; pelo contrário, ajuda sempre aos seus filhos e quer que sejamos felizes, sem condições a não ser o cumprimento do maior mandamento, que é “amai-vos uns aos outros como eu (Jesus) vos amei”.
— E o bode expiatório, vovó?
— Ah! Sim, voltemos os hebreus ou israelitas, vagando sem destino e sem esperanças pelo deserto. Seus rebanhos de carneiros e cabras eram grandes. Tinham uma ideia fixa no pecado, qualquer coisinha que faziam diferente da lei, era considerada como pecado, pelo qual deviam oferecer sacrifícios, sob a forma de um carneiro, uma ovelha, um cordeiro. Então imaginaram o seguinte: em vez de cada “pecador” pagar seus pegados com um sacrifício individual, o fariam coletivamente. Como foi isso? Na simplicidade ou na malícia, faziam o seguinte: pegavam um bode e o amarravam no centro da tribo. Aí, cada “pecador” aproximava-se, colocava a mão sobre a cabeça do bode e confessava seus pecados. Pensavam que assim o fazendo, o bode ficaria o responsável, o depositário de todos os pecados confessados.
— Coitadinho do bode! — exclamou Dorinha.
— Pois é. Mas o pior está no que acontecia com o bode. Depois que todos tinham “confessado” os pecados ao bode, ele era levado pra longe, para um lugar mais árido e ruim, e lá, amarrado numa pedra, era deixado para expiar os pecados. Sem comida nem água.
— Credo, vovó! O bode, sem comer nem beber, acabava morrendo.
— Era isso mesmo que os “pecadores” queriam. Ofereciam um bode “carregado” de todos os pecados da tribo, e morria em sacrifício coletivo. Um BODE EXPIATÓRIO.
— Nossa Senhora! Que crueldade!
— Assim está escrito na Bíblia. Quando você for ler a Bíblia, irá encontrar esta história no livro do Gênesis.
— Vovó, a senhora acredita mesmo nesta história?
— Ara, Dorinha, agora você já está querendo saber demais.
E levantando-se, vovó Bia colocou um ponto final na história, dizendo:
— Vamos prá dentro, já está na hora de dormir.
ANTONIO ROQUE GOBBO -“O Senhor dos Contos”.
Sítio Estrela, Serra da Moeda, Chão de Minas.
Em 19 de setembro de 2022
Conto # 1175 da série INFINITAS HISTÓRIAS