O alfaiate
Cada dia, cada lida mal vivida, cada vida alheia em sua vida, vivia Orlando. Só não vestia a sua própria roupa, a roupa que lhe cabia. Mas aquela noite apertavam-lhe as estranhas roupas, apertava-lhe a vida. Ao ponto de gritar para si e ao mundo os conselhos freudianos que seu amigo Frank, em momentos oportunos lhe vestia, como roupas feitas na medida.
Embriagou-se de desejos... a cada um que sentia, uma garrafa se ia.
- O que houve Frank? Sou eu mesmo... sou teus conselhos hoje.
- Embriagado te tornas criança, e não digo que seja isto um mal, apenas não sabes brincar com a vida. E além disso, crianças são verdadeiras. Desculpe-me, percebo que o equívoco é meu, continuas a ser um adulto, imaturo como a maioria deles.
- Vejo que ao menos sabes que quero viver.
- Que tens feito amigo?
- Sobrevivido. Nisto sou bom.
- Espero que tuas roupas lhe apertem até a alma, gosto de lhe ver incomodado. Aliás, sempre que te encontro estás usando um terno que já não mais lhe cabe.
- Passo esta semana em sua alfaiataria.
- Não deixe de fazê-lo, percebo que precisas mesmo de novas roupas.
- he he he, amigo, alfaiate e filósofo. Como posso escapar de ti?
- Agora mesmo. Já está tarde e sei que deves ir, já bebemos o bastante.
Despediram-se, e cada um seguiu seu caminho. A hora era anunciada pelo céu cheio de estrelas e as casas em silêncio. Caiu Orlando sobre a grama da praça pedindo o outro dia, de forma que toda cidade era capaz de ouvir. Um instante depois, estava apenas sussurrando, mesmo assim, já não mais conseguiu evitar que a pequena e atenta cidade lhe ouvisse. Mesmo por que nem era a sua intenção, se é que existia alguma.
Vendo Orlando caído, dona Justiniana que morava logo em frente à praça, e que se sentia responsável em não deixar sequer um acontecimento escapar diante dos seus olhos, precipitou-se logo em presenciar o pobre Orlando caído e logo fazer o primeiro comentário, apesar de ninguém ainda presenciar o acontecimento.
- Orlando me parece um homem tão equilibrado. Mas vez por outra o vemos nesses despautérios. Logo aproximaram-se aqueles que, como em qualquer cidade pequena, são sempre conhecidos entre si.
- Ora, não o julgues por isto Justiniana, amanhã mesmo será o homem de sempre, é apenas passa tempo, lhe advertiu conceição.
- E por que não dizer que Orlando apenas quer viver e somente tem lesado os sentidos apurados em um tempo que sentiam o aroma que exalava da sua própria pele as vontades que tanto namorou quando mais jovem. Sua vida, talvez sua própria vida, já não mais a sente. Conhecemos bem o Orlando, ele é alguém que se nega para agradar a quem quer que seja, um pobre alienado. Observa Sócrates sobre o amigo.
- Amanhã mesmo estará de pé, amanhã será o meu Orlando, falava a esposa Catarina. Deixando exalar das suas palavras um aroma de posse.
No dia seguinte, providenciou Orlando de contrariar as expectativas. Sonhou alto, criou ideias, desejou outros sonhos que ninguém conhecia. Despediu-se da rotina, disse adeus a Catarina. Bom, assim parecia.
A cidade não podia acreditar. Orlando, tão dedicado aos costumes do seu dia a dia, agora vestido em covardia. Não queria mais os conselhos tão sábios que a vizinhança lhe sedia. Naquele mesmo dia encontrou-se com o Frank outra vez.
- Vamos! Hoje quero viver. Estou absurdamente cansado deste mundo.
- Por que este mundo te incomoda meu amigo?
- Não, não este mundo que pensas
- Sei que pensas em tua vida.
- Isto mesmo... minha vida sem conserto. Olho a minha volta e não vejo algo que me direcione onde quero chegar.
- Onde quer chegar?
- Quero ser respeitado, ter amigos de verdade, sim... quero escrever livros. Enfim, ser solicitado, quero que me vejam importante.
- Quer também que te deem este mundo que desejas de presente?
- Até você!?
- Lembre-se amigo, o mundo no qual queremos viver começa e termina em nós mesmos. Não sendo assim, é um mundo alheio no qual vivemos, um lugar onde apenas habitamos, um castelo onde somos apenas serviçais de inúmeros reis. Você quer tudo que está do lado de fora, concluído, para construir um mundo que, inacabado, existe aí dentro de você.
- Dentro de mim?
- Serei breve em explicar sobre o que sente, sobre o que quer. Aliás, nem mesmo estou com tanta paciência depois de ouvir tantas tolices.
- Então onde está este mundo em mim?
- Somente me aflige a dúvida.
- Do que duvida?
- Suportaria viver no mundo real?
- Pensas que vivo de fantasia?
- Penso que vives de projeções enganosas.
- Fantasias... saiba que tenho feito todo o possível para ter o mundo que sempre quis.
- Mas que nunca teve.
- Sei que fui incapaz de conquista-lo. Mas quero tê-lo agora.
- Então cerque-se de tudo aquilo que faça parte do mundo que desejas, deseje teu mundo, e esqueças os reis. O castelo é seu, reine! Destitua-os de reinados que alienam a mente do verdadeiro rei em seu castelo.
O sol nascendo, e mesmo depois de tantos argumentos aferidos por Frank, ao contrário do que pensou este, Orlando calou-se por um tempo, enquanto Frank esperava uma reação, na verdade torcia por uma nova postura do amigo diante da vida. Levantou-se Orlando, e ausentou-se do amigo, as palavras eram verdadeiras, porém muito duras para quem acostumou-se às ternuras e afagos que seus dias de rotina lhes proporcionavam.
“A vida nos impõem prisões que se assemelham a paraísos, mesmo que encarcerados. Como a mordida de um morcego nos anestesia enquanto roubam nosso sangue, assim estamos, roubam nossas identidades como morcegos e nos fazem acreditar que somos felizes.
Orlando agora queria mais do que nunca seguir sua vida. Queria a rotina, dona maria, conceição...queria de volta sua lida, roupa desmedida”.
- Talvez eu seja mesmo uma dose amarga, talvez Orlando seja feliz e nem saiba. É melhor nem saber, o saber nos traz doses de amargura, mesmo que se assemelhem a doses de vinho envelhecido, que em seu tempo, mostra sabores especiais. Ausento-me então da sua vida, melhor assim, pensou o amigo Frank.
- Catarina! Gritou Orlando ao rever sua esposa, esquinas antes de chegar em sua casa.
- Deixou-me aqui em sofrimento, como um cacto exposto ao sol do deserto, agora queres meus afagos. Então, que não se atrevas mais a acostumar-me com tua ausência. Bradou Catarina.
Silenciou-se Orlando, em sinal de respeito e subserviência. Sentiu um respirar como se o diafragma estivesse novíssimo.
- Tens razão Catarina. Como pude abandonar o navio. Como capitão que sou, jamais verás outra vez as altas ondas me assustarem. Permanecerei ao teu lado.
Mas os castelos nunca se acalmam até que exista apenas um rei. Sim, um rei...não um capitão, e ainda mais um capitão de um navio parado em um porto deserto.
Nesta mesma hora apareceu Sócrates.
-Olá meus amigos. Recebi um convite de tua festa Orlando, e queremos, eu e a minha esposa, saber o local.
- Mas...
- Calma Orlando! Interrompeu Catarina... Sócrates! Não digo que a falta da especificação do local tenha sido algo proposital. Porém, fez com que os amigos nos procurassem. Sorriram os dois, não Orlando, que estava mais para marujo que capitão.
- Então, acontecerá uma festa!?
- Sim querido, a festa dos teus tão esperados, quarenta anos.
- Poxa querida. Então não sou novidade. Sabias até que estaria aqui para a minha festa...que bom, assim posso ver o quanto me tens em teus pensamentos.
Seguiram-se os dias... viveram um para o outro, Orlando e Catarina, com ânsia de viverem mais, a cada dia mais, Orlando seguia, e agora, já não se sentia rei ou capitão, queria apenas “viver sua vida”.
Mas todo rei só descansa até que seja ameaçado a não permanecer em seu trono, a não ver seu castelo como seu próprio domínio. Lhe inquietou as ondas, sendo o capitão...marujo, agora tanto faz, se nem vivia seu reinado, qualquer posto lhe servia. (completar este parágrafo)
Chegou o dia de sua festa. Só não esperava encontrar ali seu amigo alfaiate.
- Olá amigo! De quem se vestes hoje?
- Passei a não suportar a tua presença.
- Quando virá a sanidade sobre ti?
- Ainda não sei meu amigo. Gostaria de cometer a loucura de possuir apenas um traje, que fosse feio ou bonito, não me importaria.
- Nem sabes ainda o traje que te cabe? Os outros te vestem como bem querem.
- Esta festa está insuportável... tuas palavras sinceras, esta fumaça do charuto que fumas...
- E a bebida?
- A bebida me faz suportar esta roupa que me aperta, nem a sinto. Aperta-me por completo, até a alma. Nem mesmo da minha festa sou dono amigo.
- Que tal se vestires a roupa de um rei em seu próprio castelo, reinando a todos, reinando a si mesmo. E se quiseres, até viajando como capitão em seu navio, em mares...não marujo de um navio em um porto que nem mesmo conhece?! Alegrei-me em ver que andas incomodado e sentes vontade de viver. Freud se alegraria em ver isto. Sorriram os dois copiosamente.
- Te devo desculpas?
- Não te cobrem teus erros, defeitos e fracassos. São fatos. Roupas que não te servem mais. Aos tolos nada deves, aos sábios, és apenas um tolo compreendido. Apenas não regresse a vestir roupas alheias. Roupas novas lhes caberão muito bem. Novamente voltaram a sorrir.
- És um amigo de verdade, um verdadeiro alfaiate de almas.
- És um rei.