Sobre COMO FALAR DOS LIVROS QUE NÃO LEMOS?



Como falar de um livro que fala sobre como falar de livros que nunca lemos? A tarefa é tão árdua que prefiro não fazê-lo. Isso não quer dizer que não li o livro sobre o qual estou a falar: “Como falar dos livros que não lemos?”, de Pierre Bayard. Em verdade, não o li: devorei-o. Um dos motivos pelo qual a Literatura - e a Arte em geral – não cessa de conquistar fãs cada vez mais apaixonados é por sua capacidade de nos surpreender, seja positiva ou negativamente, a cada nova descoberta. O livro de Bayard me surpreendeu enormemente. Isso porque eu esperava encontrar um texto ácido, satirizando negativamente a literatura e sua crítica. Não é o que acontece. Nem é o que se esperaria de um autor que é professor de literatura francesa na Universidade de Paris e psicanalista. O livro de Bayard é inteligentíssimo, de um humor fino, no qual defende com maestria os seus pontos de vista, uma verdadeira tese irreverente acerca do universo dos livros, dos acadêmicos, dos escritores e dos críticos literários.

A primeira contribuição importante do livro é nos tranqüilizar quanto à “síndrome do esquecimento”. Todos aqueles que lêem bastante sabem que, depois de um certo tempo, pouco fica na memória de tudo que foi lido. Difícil é admitir isso! Bayard afirma, com propriedade que “no momento em que estou lendo, eu já começo a esquecer o que li, e este processo é inelutável, prolongando-se até o momento em que tudo se passa como se eu não tivesse lido o livro e em que eu passo a ser o não-leitor”. De tudo o que lemos, muito pouco nos resta. “Nunca lemos de um livro senão uma parte mais ou menos grande, e mesmo essa parte está condenada, em um prazo mais ou menos longo, ao desaparecimento”, afirma ele. É um “apagamento progressivo e sistemático”. Nesse ponto, ele nos revela a estratégia de Montaigne: acrescentar, ao final de cada livro, o julgamento que dele fez, “a fim de poder guardar a impressão e a Idéia geral que concebi do autor no momento da leitura”. Alguns séculos se passaram desde Montaigne. A forma mudou, mas não a fórmula. Que fazemos, hoje, nas homepages e blogs (diários), senão deixar os registros mnemônicos do que lemos, ouvimos e assistimos, como estou a fazer aqui e agora?

Bayard também ressalta, numa imagem extremamente poética, o quanto somos – os leitores compulsivos - em grande parte resultado dos livros que lemos, “pois não nos contentamos em abrigar essas bibliotecas, somos também a totalidade desses livros acumulados, que os fabricaram pouco a pouco e que não podem mais, sem sofrimento, se separar de nós.” Ouvirmos alguém falar mal de um livro ou autor que adoramos não raro atinge o nível da ofensa pessoal!

O escritor, então, é assolado por um outro mal: a Busca do Livro Perfeito, similar à busca do homem ou da mulher perfeita, empreendida por alguns menos avisados. Alerta ele que “pode-se imaginar também que é para procurar e estabelecer seu livro interior que trabalha todo escritor, perpetuamente insatisfeito com os livros que encontra, inclusive com os seus, por mais concluídos que estejam.” Ainda nessa relação ilusória em que o livro se equipara ao ser amado, ele nos faz lembrar que “os livros amados desenham o conjunto de um universo que habitamos em segredo e no qual sonhamos que o outro possa vir ocupar um lugar na qualidade de personagem.” Ou seja, as idealizações se confundem, se mesclam com o “real”, onde o universo desejado e todos os seus integrantes atingiriam a nunca alcançada perfeição.

São várias as teorias defendidas por Bayard em seu livro, e seria repetitivo e monótono aqui repeti-las. Além do que, formam um todo tão íntegro, que abordar apenas uma das suas partes prejudicaria a defesa do autor. Quero concluir, então, falando da última das várias agradáveis surpresas (e certezas) que tive com essa obra. No último capítulo, intitulado “Falar de Si”, é citado que Oscar Wilde propôs a divisão dos livros em três categorias: os livros para se ler, livros que merecem ser relidos e livros que é importante dissuadir o público de ler, acrescentando sobre essa última categoria: “Aquele que selecionar, do caos de nossas listas modernas, ‘os cem piores livros’ concederá à jovem geração uma vantagem verdadeira e duradoura." Bayard complementa: “Desgraçadamente, Wilde não nos deixou a lista dos cem livros que seria importante manter a distância dos estudantes.” Ora, mantenho, há algum tempo, uma lista dos meus cem livros preferidos em minha homepage (www.goulartgomes.com). Essa lista é “móvel”, ou seja, é continuamente atualizada com novas entradas e, naturalmente, saídas. Alguns meses após implantá-la, resolvi criar outra, que intitulei “NÃO PERCA SEU TEMPO TENTANDO LER” que está, até agora, com poucas contra-indicações, mas que foi o bastante para ter recebido veementes objeções. Se Wilde a tivesse elaborado, em seu tempo, com certeza teria passado um tempo ainda maior no cárcere de Reading...

Enfim, como psicanalista que é, Bayard não poderia deixar de fazer duas observações de grande sensibilidade, sobre a relação entre o leitor e os livros. A primeira é que “o paradoxo da leitura é que o caminho em direção a SI MESMO passa pelo livro, mas deve continuar sendo uma passagem. É uma travessia de livros que o bom leitor realiza, sabendo que cada um deles é portador de uma parte dele mesmo e pode lhe abrir um caminho, se tiver a sabedoria de não parar ali.” E a segunda, mas não menos importante, é que “além da possibilidade de descoberta de si, o discurso sobre os livros não lidos nos coloca no cerne do processo criativo... propiciando, para aquele que o pratica, o momento inaugural da separação de si mesmo e dos livros em que o leitor, afinal liberado do peso da palavra dos outros, encontra em si a força para INVENTAR O PRÓPRIO TEXTO E SE TORNAR ESCRITOR”.

Quem irá condenar Pierre Bayard pelos livros que ele não leu?