O LIVRO DE UM HOMEM SÓ

 

 

 

Georges Perec, o premiado escritor francês falecido prematuramente, aos 46 anos de idade, em 1982, escreveu uma das obras mais densas e instigantes da literatura universal: Um homem que dorme (Nova Fronteira, 1988). Obra esgotada, encontrada apenas em sebos, narra a história de um único personagem, de nome ignorado, um jovem de 25 anos, prostrado num total estado de ataraxia. Ao utilizar a voz narrativa na segunda pessoa – você – o texto proporciona uma ainda maior simbiose entre o leitor e o personagem. Mas há de se ressaltar que não é um livro para ser lido por quem é propenso à depressão.

 

Ao longo das horas, dos dias, das semanas, das estações, você se desprende de tudo, desliga-se de tudo. Descobre, às vezes, quase com uma espécie de embriaguez, que você é livre, que nada lhe pesa, nada lhe agrada nem desagrada.

 

Mas essa liberdade não se reflete em felicidade.  Notadamente influenciado pelo pensamento existencialista, o jovem encontra-se em tal estado de lassidão que nada o comove. Um homem que acaba por estar desprovido de qualquer sentimento, nem alegre nem triste, ou poeta. Um homem que não vive, um sonâmbulo, transeunte morto-vivo nas ruas de uma das mais vivas cidades do mundo.

 

Encontra-se, nesta vida, sem usura e sem outro estremecimento além dos instantes suspensos provocados pelas cartas ou certos ruídos, certos espetáculos que você concede a si mesmo, uma felicidade quase perfeita, fascinante, às vezes cheia de emoções novas. Você experimenta um repouso total, e constantemente poupado, protegido. Vive numa bem-aventurada digressão, num vazio cheio de promessas e do qual você nada espera.

 

E assim ele passa todos os seus dias: como um eterno flâneur, perambulando sem tino e sem destino pelas ruas de Paris, pelos museus, pelos cinemas, pelos cafés, sem outra função que não a de testemunha ocular isenta de qualquer envolvimento com o que lhe cerca.

 

Você é invisível, límpido, transparente. Você não existe mais: a sucessão das horas, dos dias, a mudança das estações, o escoamento do tempo, você sobrevive, sem alegrias e sem tristeza, sem futuro e sem passado, assim, simplesmente, evidentemente, como uma gota d’água que pinga na torneira de um patamar, como seis pés de meia de molho numa bacia de matéria plástica rosa, como uma mosca ou como uma ostra, como uma vaca, como um caracol, como uma criança ou como um velho, como um rato.

 

No budismo e no hinduísmo existe o conceito de Nirvana, estado consciencial em que o praticante libera-se do apego dos sentidos, da ilusão do mundo (Maya). Mas esse estado conduz o indivíduo a uma identificação maior com o Universo, a Divindade ou consigo mesmo. E isso o leva a um movimento de equilibração, para utilizar um termo piagetiano, ou seja, o equilíbrio na ação, o movimento no repouso, não à estagnação total, não ao egocentrismo, mas à sensação de pertencimento a tudo que lhe cerca.

 

Quando escrevi meu conto MALÁRIA (disponível no site www.goulartgomes.com) ainda não tinha lido o romance de Perec. Hoje, após a sua leitura, percebo o conto como um prolongamento, um adendo, não à história mas à condição de imobilidade do personagem, com um final “mais ou menos” feliz. 

 

Nesse livro, que deve ser lido de um só fôlego, de uma “sentada”, Perec conseguiu se antecipar a este século XXI, de modernidade tardia, sem a herança de referenciais ou heróis, demonstrando o que seria de um jovem sem “norte”:  ao mesmo tempo em que é despossuído de qualquer ideologia, crença, fé, religião, também não se encontra emaranhado entre griffes, realities shows, drogas, álcool e músicas de nenhuma qualidade.  Muito mais uma árvore que um ser humano, uma mistura híbrida de planta e de fantasma, como diria Zaratustra. Um livro que nos provoca uma profunda reflexão sobre o que é a Vida e o quanto estamos despertos para vivê-la com intensidade.

 

 

Salvador, 21 de janeiro de 2008.