Fé, Intolerância e a Luta por Justiça em 'O Pagador de Promessas

O Pagador de Promessa, de Dias Gomes, escrito no início da década de 60, devido ao sucesso, foi posteriormente adaptado para o cinema. Nesta resenha, o foco é o livro.

O livro retrata a vida difícil do sertão nordestino na localidade da Bahia. Zé do Burro, um pequeno agricultor e homem simples, como um bom nordestino, possui uma fé admirável e profunda. Certo dia, um animal (burro) chamado Nicolau é atingido por uma doença grave. Zé do Burro faz uma promessa a Santa Bárbara para curar seu burrinho. Se tal pedido for atendido, Zé carregará até uma igreja em Salvador uma pesada cruz de madeira para deixar no altar da igreja. Ele também promete repartir suas terras com os pobres. O padre Olavo conversa com Zé e fica escandalizado ao saber que sua promessa foi a Iansã, que nas tradições afro-brasileiras é sincretizada como Santa Bárbara. Tal ato foi julgado como um ato de auto paganismo.

O livro traz um discurso rico e caro na perspectiva histórica do Brasil e sua sociedade. Vários discursos se misturam e se combatem no cenário brasileiro: o sacro e o profano, progresso e atraso, rural e urbano. Todos esses contextos. Mas você deve se perguntar: por que tal promessa revisita o principal problema do Brasil contemporâneo? A resposta é muito simples: tal promessa foi feita em um terreno de candomblé. Devemos lembrar que a Bahia carrega um peso histórico colonial, onde a religião cristã foi imposta brutalmente aos povos indígenas e futuramente aos africanos escravizados, fazendo assim que no futuro se torne um campo de combate entre religiões de matriz africana e a Igreja Católica.

Em certa parte do livro, retratada no filme, há uma cena que representa a divisão social que impacta na religião. Zé do Burro, esperando que o padre mude de opinião em um dia de missa, vê que o padre permite todos entrarem, menos ele e os candomblecistas que queriam apenas fazer suas preces na figura de Iansã, vista como Santa Bárbara. Temos que lembrar que o livro e o filme se passam na década de 60, época da ditadura militar, quando surgiu a ideia da reforma agrária. Em certa parte, Zé do Burro é questionado por um jornalista se ele é a favor de tal ideia. Sem ter muita noção do que é essa tal de reforma agrária, Zé diz que não tem arrependimento da sua promessa de dividir sua terra com os seus irmãos. Então, o jornalista logo diz: "Então, você é a favor". Para a imprensa, Zé não é alguém que cultua o paganismo, é alguém quase revolucionário, querendo propagar as ideias ditas na época como socialistas, mas que apenas buscavam reforma para aqueles que queriam uma vida próspera.

O Pagador de Promessas é uma obra para se refletir. Traz muito do contexto brasileiro que, ao se analisar, é vigente até hoje. Por se tratar de uma obra que se passa durante a ditadura militar, entende-se o seu impacto social, como é retratada a divisão social, a exclusão de grupos só por conta de sua religião e, dentro disso, o impacto da religião na sociedade. Como uma figura que apenas queria cumprir com uma promessa se torna uma figura politizada que é rapidamente vista como inimiga do Estado, alguém com ideias tão mirabolantes vistas como socialistas, mas que hoje, em nosso contexto, são apenas ideias que seriam bases para uma sociedade próspera.

O Pagador de Promessas traz questões a nos perguntar:

- O que mudou dos anos 60 até hoje?

- O que é liberdade de expressão?

- O julgamento?

- Qual lado é o sacro e o profano?