Análise da canção "Veterano", interpretada por Leopoldo Rassier

Cerca de trinta anos antes de revolucionar a biologia com a publicação de "A Origem das Espécies", o jovem naturalista Charles Darwin embarcou em uma expedição a bordo do HMS Beagle. Durante essa jornada, que o levou a diversas partes do globo, Darwin fez uma parada no sul da América do Sul, onde teve contato com os gaúchos, habitantes dos pampas. Em suas anotações, o cientista deixou um registro detalhado dos costumes e características desse povo, que viria a influenciar suas futuras pesquisas sobre a diversidade da vida. Darwin descreveu o gaúcho como um homem rústico, habituado à vida selvagem e à solidão das vastas planícies, destacando a habilidade desses homens em lidar com cavalos, sua resistência física e sua profunda conexão com a natureza, além de serem homens independentes, corajosos e muito hospitaleiros, que os levavam a receber viajantes estrangeiros em sua casa da forma mais agradável possível, embora, segundo Darwin, os gaúchos pudessem ficar horas ao seu lado, em frente à fogueira, sorvendo o mate quente e amargo sem trocar uma palavra sequer com o visitante.

Neste texto, analisaremos a canção “Veterano”, de Antônio Augusto Vieira, interpretada por Leopoldo Rassier. Assim como Darwin, em sua obra científica, o compositor, de forma poética e filosófica, descreve a vida e as lides do gaúcho, apresentando-nos uma das mais belas representações que se poderia fazer deste universo “gaudério”. Eis a letra da canção.

Está findando meu tempo

A tarde encerra mais cedo

Meu mundo ficou pequeno

E eu sou menor do que penso

O bagual tá mais ligeiro

O braço fraqueja as vezes

Demoro mais do que quero

Mas alço a perna sem medo

Encilho o cavalo manso

Mas boto o laço nos tentos

Se a força falta no braço

Na coragem me sustento

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Nas manhãs de primavera

Quando vou para rodeio

Sou menino de alma leve

Voando sobre o pelego

Cavalo do meu potreiro

Mete a cabeça no freio

Encilho no parapeito

Mas não ato nem maneio

Se desencilha o pelego

Cai no banco onde me sento

Água quente de erva buena

Para matear em silêncio

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Neste fogo onde me aquento

Remoo as coisas que penso

Repasso o que tenho feito

Para ver o que mereço

Quando chegar meu inverno

Que me vem branqueando o cerro

Vai me encontrar venta-aberta

De coração estreleiro

Mui carregado dos sonhos

Que habitam o meu peito

E que irão morar comigo

No meu novo paradeiro

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

Se lembro o tempo de quebra

A vida volta prá traz

Sou bagual que não se entrega

Assim no mais

A canção é composta por nove estrofes, cada uma com quatro versos. Essa estrutura se repete três vezes, com o refrão sendo inserido após cada conjunto de três estrofes. Ao todo, a canção possui trinta e seis versos diferentes (sem contar os do refrão)e três repetições do refrão. Essa disposição dos versos pode ser observada a partir de uma análise externa da obra poética.

Em relação ao conteúdo da canção, faremos agora a chamada análise interna, que consiste na interpretação do tema / assunto abordado pelo autor. Ei-la:

A primeira estrofe inicia a narrativa com uma constatação um tanto quanto melancólica e existencialista: "Está findando meu tempo". A imagem da tarde que "encerra mais cedo" simboliza a passagem inexorável do tempo e a aproximação da velhice. O sujeito lírico percebe a diminuição de seu mundo e de si mesmo, confrontando-se com a fragilidade da existência, tendo assim uma consciência de finitude perante o fim da vida que se aproxima.

Na segunda estrofe, a luta contra a passagem do tempo é explicitada. O "bagual" (cavalo selvagem), símbolo da força e da liberdade, agora se mostra "mais ligeiro", desafiando o gaúcho em sua experiência. A fraqueza física, representada pelo "braço que fraqueja", coexiste com a determinação de "alçar a perna sem medo". A imagem do gaúcho encilhando o cavalo, apesar das dificuldades, revela sua resistência e sua vontade de continuar a viver.

A terceira estrofe aprofunda a reflexão sobre a relação entre força física e força de espírito. A falta de força no braço é compensada pela "coragem" que sustenta o gaúcho. O ato de "botar o laço nos tentos" simboliza a busca por desafios e a vontade de continuar a viver, mesmo diante das adversidades.

Após o canto das três primeiras estrofes, vem o refrão construído através de uma linguagem simples e direta e que evoca as emoções mais profundos do fundo da alma do eu lírico campeiro. A expressão "Se lembro o tempo de quebra" o remete a um passado marcado por desafios e dificuldades, um tempo em que o gaúcho precisou se mostrar forte e resistente. A memória desse período serve como fonte de inspiração e força para enfrentar as adversidades do presente. Ao "lembrar o tempo de quebra", o sujeito lírico resgata sua identidade e reafirma seus valores. A frase "A vida volta prá traz" possui um duplo sentido. Por um lado, pode ser interpretada como uma nostalgia do passado, um desejo de reviver momentos de felicidade e plenitude. Por outro lado, pode representar a capacidade de resiliência do gaúcho, que, mesmo diante das dificuldades, encontra forças para seguir em frente. A metáfora do "bagual que não se entrega" é central para a compreensão do refrão. O bagual, um cavalo selvagem e indomável, simboliza a liberdade, a força e a resistência do gaúcho. Ao se identificar com o bagual, o sujeito lírico expressa sua determinação em enfrentar os desafios da vida, mesmo quando a força física começa a falhar. O refrão transmite uma mensagem de esperança e otimismo, mesmo diante da finitude da vida. A repetição da frase "Assim no mais" reforça a ideia de que a atitude do gaúcho diante da vida é constante, imutável. A resistência, a coragem e a determinação são valores que o acompanham em todas as etapas da vida.

A primeira estrofe após o refrão traz a sensação de liberdade e leveza que a primavera traz. O sujeito lírico, ao se preparar para o rodeio, retorna à sua infância, quando "era menino de alma leve". A imagem de "voar sobre o pelego" simboliza a sensação de liberdade e a conexão com a natureza. O pelego, além de ser um objeto utilitário, torna-se um meio de transcendência, transportando o gaúcho para um estado de graça.

Na segunda estrofe desta segunda parte da canção, a relação entre o homem e o animal é explorada com profundidade. O cavalo, "do meu potreiro", é apresentado como um companheiro fiel e dócil, que "mete a cabeça no freio". O gaúcho, por sua vez, demonstra um conhecimento intuitivo do animal, encilhando-o "no parapeito" sem a necessidade de "atar nem manejar". Essa sintonia entre homem e animal revela uma conexão profunda, fruto de anos de convivência e companheirismo.

Já a terceira estrofe nos leva para um momento de introspecção. Ao se desencilhar, o gaúcho se senta em um banco e prepara o mate. O ato de "matear em silêncio" é um ritual que convida à reflexão e à meditação. A "água quente de erva buena" simboliza a vida, que flui continuamente, enquanto o silêncio permite que os pensamentos se aprofundem.

Após a repetição do refrão, o poeta nos contempla com as três últimas estrofes deste hino da música tradicionalista gaúcha. Na primeira estrofe desta última parte, ao se aquecer no fogo, remoendo "as coisas que pensa" e "repassa o que tem feito". Esse momento de reflexão é fundamental para a construção da identidade e para a busca por um sentido para a vida. A autoavaliação presente nos versos "Para ver o que mereço", revela a consciência do gaúcho sobre suas ações e suas responsabilidades.

A segunda estrofe aborda o tema da velhice e da morte. A imagem do "inverno" que "vem branqueando o cerro" simboliza a passagem do tempo e as transformações físicas e psicológicas que ela acarreta. No entanto, o gaúcho encara a velhice com serenidade e aceitação, declarando-se "venta-aberta" e "de coração estreleiro". Essa atitude revela uma profunda conexão com a natureza e uma fé inabalável no futuro.

Para encerrar essa que é uma das mais belas canções, não apenas da música gaúcha, e sim da história da música brasileira, o autor enfatiza a importância dos sonhos na vida do gaúcho. Os "sonhos que habitam o peito" são como companheiros inseparáveis que o acompanharão "no meu novo paradeiro". A ideia de que os sonhos são eternos e transcendentes à morte revela uma profunda espiritualidade e uma crença em algo maior que a vida terrena.

A análise da canção "Veterano" revela a riqueza e a profundidade da poesia gaúcha, que, através de uma linguagem simples e direta, aborda questões existenciais complexas. A obra, ao mesmo tempo que celebra a cultura gaúcha, nos convida a uma reflexão sobre a condição humana e a busca por um sentido para a vida.

Igor Grillo
Enviado por Igor Grillo em 29/10/2024
Reeditado em 30/10/2024
Código do texto: T8184873
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