A fábrica do poema, de Adriana Calcanhotto
por Márcio Adriano Moraes
O álbum A Fábrica do Poema (1994), da gaúcha Adriana Calcanhotto, é uma obra que explora a fusão entre poesia, música e outras expressões artísticas, construindo composições nas quais a intertextualidade permeia a estética e a sonoridade. Com canções que dialogam com poetas, músicos e cineastas, o álbum apresenta um verdadeiro laboratório experimental de linguagens e ritmos.
O título do álbum já sugere o processo criativo do poema, forjado em uma fábrica, arquitetado e com potencial de (des)construção. A faixa-título, “A Fábrica do Poema” é um poema do irreverente poeta baiano Waly Salomão (1943-2003) que homenageia Lina Bo Bardi (1914-1992), uma arquiteta ítalo-brasileira cujo trabalho buscava o equilíbrio entre funcionalidade e arte. Um de seus projetos mais famosos é o MASP (Museu de Arte de São Paulo). Salomão constrói a letra como um poema que “desmorona” na realidade, evocando o processo criativo que se desfaz em sua concretização, um reflexo das complexidades da arte e da vida. A canção, assim, por meio da metalinguagem, conecta arquitetura e poesia, promovendo uma reflexão sobre a transitoriedade da criação.
Já em “Por que você faz cinema?”, que adapta um discurso do cineasta Joaquim Pedro de Andrade (1932-1988), o foco está na razão e nos desafios por trás da arte cinematográfica. A letra questiona o propósito de criar arte em um mundo que muitas vezes não valoriza sua profundidade, lançando uma crítica à superficialidade e ao consumo fácil, além de crítica político-social: “para ser lesado em meus direitos autorais”. O intertexto aqui evoca o cinema como uma arte que luta contra a banalização, assim como a própria música de Calcanhotto, que busca mais do que o entretenimento, promovendo uma experiência sensorial e reflexiva.
A parceria com outros autores é uma tônica do álbum, como na canção “Bagatelas”, escrita por Antônio Cícero e Roberto Frejat. A letra reflete sobre o efêmero das experiências, utilizando a imagem das “bagatelas” – pequenas coisas da vida – para discutir a efemeridade dos sentimentos. A melodia suave e a interpretação intimista de Calcanhotto potencializam a percepção de que, por mais passageiras que sejam, essas pequenas coisas são fundamentais para o fluxo da vida. Aqui, o diálogo é com a poesia do cotidiano, com influências da música popular brasileira e da filosofia existencialista.
“Metade”, uma das canções mais icônicas do álbum, traz um lirismo pessoal e introspectivo. A letra, assinada pela própria Adriana Calcanhotto, explora o sentimento de fragmentação e de perda, com versos que expressam a divisão emocional e a busca por completude. O eu lírico aqui está “ao meio”, fragmentado pela ausência, e Calcanhotto consegue transmitir esse sentimento com uma melodia minimalista e introspectiva.
A canção “Sudoeste”, cuja letra foi retirada do poema “Buraco Negro” de Jorge Salomão, explora a tensão entre a abertura e a proteção diante das adversidades da vida. A metáfora das “portas abertas” simboliza a disposição para acolher o novo e o desconhecido, mas a presença do “vento que quer derrubar tudo” representa as dificuldades e as forças externas que ameaçam essa postura. A dualidade entre manter-se receptivo e se proteger das tempestades reflete a complexidade da experiência humana em equilibrar vulnerabilidade e resiliência. O som dos copos de vidro sendo quebrados por Jorge Salomão durante a gravação adiciona uma camada sensorial à canção, intensificando a ideia de fragilidade e instabilidade das “portas abertas”. Apesar da intenção de manter-se aberto, há momentos em que o confronto com o caos é inevitável. Cuidado, portanto, com os “vidros” de nossas vidas!
“O Verme e a Estrela”, um poema do baiano Pedro Kilkerry (1885-1917), musicado por Cid Campos, traz uma declamação do poeta concretista Augusto de Campos. Kilkerry, um poeta simbolista, propõe um jogo entre o concreto e o abstrato, e a música consegue traduzir essa tensão. A metáfora do verme, ser rastejante e insignificante, que olha para a estrela inalcançável, reflete a distância entre o humano e o ideal, entre o que se é e o que se deseja ser. A canção tangencia o simbolismo da luz e da escuridão, propondo uma reflexão sobre a busca incessante pela transcendência. Tal canção pode ser lida também numa perspectiva social, já que notar a “epiderme” pode ser uma sugestão da cor da pele. Biograficamente, Kilkerry era filho de uma mestiça alforriada. A luz, sendo o ser amado (possivelmente de pele branca), é capaz de cegar o amante (possivelmente de pele preta).
Em “Morro Dois Irmãos”, de Chico Buarque, a melodia suave e a letra contemplativa criam uma atmosfera de introspecção. A canção faz referência ao famoso morro carioca, localizado no bairro do Vidigal, mas também traz uma meditação sobre o tempo e a existência. O silêncio da montanha, descrito por Chico, torna-se metáfora para as forças naturais que transcendem o tempo humano.
A canção “Inverno”, em parceria com Antônio Cícero, é uma reflexão sobre a transitoriedade da felicidade e a solidão que se segue. A memória de um momento de felicidade intensa, simbolizado pelo avião que desaparece no olhar do outro, contrasta com a frieza emocional descrita como um “inverno quase glacial” no Leblon. Metáforas como o “leão que sempre cavalguei” e o “barco embriagado ao mar” sugerem a perda de uma força interior e a sensação de desorientação, enquanto a união momentânea entre céu e terra indica um amor efêmero, anterior a uma ruptura. A canção explora o impacto desse passado no presente, carregando uma incerteza sobre o que ainda persiste desse momento de felicidade.
“Tema para Alice”, escrita por Péricles Cavalcanti para o filme Mil e Uma, de Susana de Moraes, traz uma reflexão breve e enigmática sobre a busca pelo sentido da vida. Em apenas um minuto, a letra evoca perguntas fundamentais: como encontrar a “entrada” para o que desejamos e a “chave” para o mistério de viver. É inegável o intertexto com a obra Alice no País das Maravilhas, de Lewis Carroll, na qual a protagonista também se depara com portas, chaves e caminhos incertos, em sua jornada por um mundo de perguntas sem respostas claras. Assim como Alice, a personagem da canção se vê em meio a um enigma existencial, buscando entender se as respostas estão nas perguntas que ela ainda não fez.
A canção “Cariocas”, aproximando-se da ode, é uma celebração da identidade dos habitantes do Rio de Janeiro. A letra explora características estereotipadas e antitéticas dos “cariocas”, descrevendo-os como “bonitos”, “bacanas” e “modernos”, mas também como “sacanas” e “espertos”, traços que expressam um misto de carisma e malandragem. Com ritmo suave, a música capta o estilo de vida descontraído, alegre e sempre em movimento, típico dos cariocas. A aversão aos “dias nublados” e ao “sinal fechado”, por exemplo, sugere a preferência por liberdade e luz, tanto física quanto emocional. E olha que Adriana Calcanhotto é porto-alegrense!
A experimentação musical do álbum não se limita à linguagem poética, mas também à sonoridade. “Roleta Russa” exemplifica isso com sua estrutura rítmica intensa e fragmentada, que ecoa o próprio tema da canção: o risco, a imprevisibilidade, o acaso, o “coração” atirando “ao alvo errado e acerta”. Adriana usa metáforas e antíteses para explorar a ideia de desejo e perigo, em uma fusão de versos e melodia que lembra a estética cinematográfica de suspense.
A canção “Portrait of Gertrude”, na verdade, é a declamação original da própria de Gertrude Stein (1874-1946), uma das figuras centrais da literatura norte-americana, de um fragmento de seu texto: “Se eu contasse a ele. Um retrato completado de Picasso”. O texto desconstrói a narrativa tradicional, utilizando repetições e variações de palavras, num estilo literário que reflete a fragmentação e o fluxo de consciência. A letra da canção preserva essa estrutura experimental, em língua inglesa, transformando-a em uma experiência sonora que desafia a interpretação literal e convencional. A repetição de termos como “he” (ele) e “as” (como) cria um ritmo quase mecânico, evocando a tentativa de capturar algo fugidio, como a identidade ou a essência de um ser. Contudo, assim como cubista Picasso em suas pinturas, Stein e, consequentemente, Calcanhotto, desconstrói a ideia de um retrato fixo e definitivo. O resultado é uma obra que não busca oferecer respostas claras, mas, sim, uma exploração contínua de percepções (fragmentos) e realidades fluidas. Há sons inusitados ao longo da declamação como a presença das batidas de uma máquina de escrever. A referência a “trens”, “proporções” e “história” remete ao movimento constante da vida e da arte, elementos que não podem ser contidos ou definidos de forma rígida.
“Minha Música” é uma espécie de manifesto artístico. Aqui, Calcanhotto reflete sobre a própria criação musical e sua recusa em se submeter às expectativas comerciais ou estilísticas. “Minha música não quer ser útil”, ela canta, em um diálogo direto com a vanguarda poética e musical, que rejeita a categorização e as imposições externas. Esse intertexto não se refere a um autor específico, mas ao próprio movimento artístico que busca liberdade expressiva, como os poetas concretistas e os músicos experimentais brasileiros. Nesse olhar de a música ser apenas música, percebe-se também o diálogo com a Arte pela Arte, proposta pelos poetas Parnasianos do final do século XIX.
A fábrica do poema é, portanto, um álbum rico em metalinguagem e intertextualidade, dialogando com uma ampla gama de artistas e influências culturais. Adriana Calcanhotto utiliza a música como um meio para transcender a simples canção popular, pensando sentimentos humanos e artísticos, através de uma experimentação da linguagem e sonoridade. A obra, assim, oferece uma experiência auditiva, um convite a um mergulho no mundo da arte, da poesia e do cinema, estabelecendo pontes entre diferentes formas de expressão. Originalidade, resume o álbum A fábrica do poema.