Torto arado, de Itamar Vieira Junior
por Márcio Adriano Moraes
Em 2019, o baiano Itamar Vieira Junior nos presenteou com um dos romances mais impactantes da contemporaneidade, Torto arado. Laureado com os prêmios literários: Leya em Portugal, e Oceanos e Jabuti no Brasil, a obra desenterra cicatrizes deixadas pela escravidão e as injustiças sociais que ainda assombram o Brasil, especialmente as comunidades rurais esquecidas no tempo. Ambientado na Chapada Diamantina-BA, o romance é, ao mesmo tempo, um grito de denúncia e uma celebração da resistência de um povo que, mesmo diante de séculos de opressão, encontra formas de preservar suas raízes, suas crenças e sua identidade.
Com forte tom social, através de dramas familiares, o autor denuncia as relações de poder no controle da terra e nas condições de trabalho de comunidades que vivem sob a sombra do coronelismo, numa visível herança escravocrata que se perpetua sob outras formas, com os trabalhadores rurais ainda submissos a uma dinâmica de servidão. Os moradores de Água Negra, descendentes de escravizados, estão presos a uma lógica de exploração que nunca os libertou de fato. Itamar denuncia essa estrutura perversa, por meio das vozes de suas personagens que refletem sua complexa relação com a terra, com o trabalho e com suas próprias histórias.
A obra é polifônica, ou seja, possui várias vozes, no caso, três narradores de identidade feminina. Vieira Junior utiliza as vozes de Bibiana, Belonísia e Santa Rita Pescadeira para tecer uma narrativa subjetiva que encontra correspondência na coletividade. Cada uma dessas vozes carrega uma perspectiva única, que aprofunda o entendimento da opressão, da resistência e da identidade. Bibiana e Belonísia, irmãs ligadas por um trauma infantil, com suas histórias íntimas e dolorosas, revelam os laços de sangue, narrando suas vivências e a luta por dignidade. A voz sobrenatural de Santa Rita Pescadeira, um espírito encantado, traz uma dimensão atemporal à obra, conectando o passado, o presente e o futuro de forma mística, adicionando uma camada espiritual e histórica, narrando a saga de seu povo desde a África até as terras de Água Negra. Juntas, essas três narradoras criam um cenário de resistência e memória, no qual o passado e o presente se entrelaçam.
Racismo e intolerância religiosa estão presentes, continuando a mesma sina padecida desde o início da colonização. A imposição de valores cristãos, por meio da personagem Estela, que tenta converter a comunidade ao evangelismo, reflete a persistente prática do proselitismo. Essa conversão forçada tenta apagar o Jarê, um culto de matriz africana específico da Chapada Diamantina, que resiste como uma manifestação simbólica e espiritual de uma história ancestral. O Jarê, em Torto Arado, é mais que uma religião; é um elo de resistência de preservação cultural, que a comunidade defende com firmeza, recusando-se a perder a conexão com seus encantados e sua própria forma de ver o mundo, sobrevivendo à opressão em cada canto, em cada reza e em cada dança.
Um dos símbolos centrais da obra é a faca. Este objeto, que atravessa gerações, é mais que um utensílio doméstico cortante. A faca de cabo de marfim é uma ferramenta de sobrevivência e um símbolo de violência, dor e resistência. A faca, que mutila a língua de Belonísia na infância, retorna ao longo do romance como uma marca de luta, usada por Donana para vingar a violência sofrida por sua filha, e usada por Belonísia para intimidar Aparecido, marido agressor de Maria Cabocla. Esse objeto é um testemunho de sofrimentos, de herança de dores, mas também de proteção e de resistência.
Apesar de o romance ter homens fortes e representativos, como Zeca Chapéu Grande e Severo, as personagens femininas ganham enlevo, em especial Bibiana e Belonísia, as quais são o coração pulsante de Torto Arado. A primeira com sua força de justiça social pela educação; a outra, pela preservação de uma identidade pela mudez. Ambas resistem às imposições de uma sociedade que as marginaliza, lutam pela sua terra, por seus direitos e pelo futuro de suas famílias. As mulheres da obra, de forma geral, são a verdadeira força motriz da narrativa, representando a capacidade de resiliência e a força para lutar contra as adversidades, mesmo quando o mundo parece não oferecer nenhuma esperança.
A “negrura” em Torto arado está no nome da fazenda, está na pele das personagens, está em sua história, está em sua resistência. Itamar Vieira Junior, com seu olhar humano, convida os leitores a se emocionaram com uma história que deixa marcas, cicatrizes num mundo de confortos em oposição à realidade da narrativa. Que sejam firmes todos os que lutam por sua existência e por sua herança ancestral e cultural, pois como nos alerta o autor: “sobre a terra há de viver sempre o mais forte.”