Temor e tremor - A história de Abraão: obediência, sacrifício e provisão – Soren Kierkegaard
Poucos anos antes do colapso mental que levou Friedrich Nietzsche a viver seus últimos dez anos de vida em um estado quase vegetativo sob os cuidados de sua irmã Elizabeth, Georg Brandes, notável crítico literário dinamarquês e que foi um dos primeiros a divulgar o trabalho de Nietzsche fora da Alemanha, recomendou ao filósofo alemão a leitura de um eminente compatriota seu, muito provavelmente devido à afinidade entre as ideias dos dois pensadores; essa recomendação era Søren Kierkegaard. Embora Kierkegaard e Nietzsche tenham seguido trajetórias filosóficas distintas e vivido em contextos diferentes, ambos compartilhavam uma profunda inquietação com as bases da moralidade tradicional e com a alienação do indivíduo moderno. Pelo que se sabe, Nietzsche não chegou a ler as obras do pensador dinamarquês, por conta dos problemas de saúde que o acometeram. Felizmente, nós, nascidos quase 200 anos depois da época em que viveram ambos os filósofos, temos a oportunidade de ler as obras dessa importante figura que é tida por grande parte dos críticos como o “Pai do Existencialismo”.
A obra de Kierkegaard que será aqui brevemente analisada é “Temor e Tremor, história de Abraão: obediência, sacrifício e provisão”, na qual o autor, por meio do pseudônimo Johannes de Silentio (a pseudomínia na obra de Kierkegaard é um fato muito importante para entendermos as intenções do autor) explora as complexidades do relacionamento humano com o divino.
O ponto de partida de Kierkegaard é o relato bíblico do sacrifício de Isaque, no qual Deus ordena a Abraão que sacrifique seu único filho. Kierkegaard considera esse evento um paradoxo: Abraão recebe de Deus uma promessa de que sua descendência será grande, mas, ao mesmo tempo, é ordenado a matar o filho que garantiria essa promessa. Para Kierkegaard, o sacrifício de Isaque é o símbolo de uma fé que desafia toda lógica humana e a ética racional. A fé, nesse contexto, é um ato que vai além da razão e da moralidade, situando-se no domínio do incompreensível. Abraão, como "cavaleiro da fé", representa alguém que, diante do paradoxo, confia absolutamente em Deus, mesmo quando tal confiança parece absurda e irracional.
A história de Abraão exemplifica o que Kierkegaard chama de suspensão teleológica do ético. O conceito de "teleológico" refere-se ao propósito ou fim último. Abraão, como indivíduo singular, suspende a ética universal ao obedecer a Deus, uma ordem que parece contradizer a moralidade comum. Em sua singularidade, Abraão se torna superior ao universal, isto é, à moralidade que vale para todos. O paradoxo reside no fato de que Abraão é ao mesmo tempo um modelo de fé e alguém que, se julgado pelo critério ético universal, seria considerado um assassino.
Em uma obra posterior chamada “O Conceito de Angústia”, Kierkegaard se aprofunda sobre esse fenômeno da condição humana, mas é na história de Abraão que o filósofo introduz em seus escritos a análise psicológica desse estado existencial que caracteriza o animal homem. Ele reflete sobre a angústia que Abraão deve ter sentido ao caminhar com seu filho para o sacrifício, sabendo que estava prestes a cometer um ato terrível e incompreensível. Essa angústia, no entanto, não paralisa Abraão, mas o acompanha em sua decisão de obedecer a Deus. Kierkegaard descreve a angústia não como um mero medo, mas como a tensão existencial que surge quando se enfrenta o abismo da fé e da obediência divina. A fé de Abraão é, portanto, uma fé angustiada, mas inabalável, uma experiência marcada pela tensão existencial entre o medo e a confiança absoluta.
Kierkegaard também faz uma diferenciação entre a tentação e a crise religiosa. A tentação, segundo ele, é uma prova que atinge o homem comum, enquanto a crise religiosa é reservada para aqueles que chegaram ao limite da fé, como Abraão. A crise religiosa ultrapassa o domínio do ético, tornando-se um ato espiritual elevado que desafia a compreensão racional e exige o que Kierkegaard chama de um movimento absurdo — um salto de fé. Nesse sentido, Abraão é o exemplo máximo desse paradoxo, pois sua obediência a Deus o coloca acima da moralidade universal.
A primeira obra publicada de Kierkegaard foi “O conceito de ironia constantemente referido a Sócrates”, um livro de 1841 e que havia sido sua tese de doutorado. A ironia Kierkegaardiana é uma característica, um recurso estilístico que podemos notar linha por linha na obra do autor – Kierkegaard foi um mestre nesse estilo. Um sistema filosófico e teológico que combinava o hegelianismo com a ortodoxia religiosa luterana de sua época foi o principal alvo de Kierkegaard durante toda a sua vida, e o tom irônico que permeia as ideias do autor para desconstruir esse mecanismo de dominação por parte de pessoas que estão no poder e que pregam um cristianismo superficial e conformista é um dos principais deleites para quem se debruça na obra desse gênio dinamarquês; e na história de Abraão não é diferente. Talvez tenha sido essa a principal semelhança que Brandes havia notado nas obras de Nietzsche. Mas não é apenas este aspecto literário que há entre os dois autores. Em determinados trechos de “Temor e Tremor”, podemos notar um tipo de retórica da parte do narrador que muito lembra Nietzsche nos últimos momentos de sanidade metal, na sua autobiografia “Ecce Homo”, onde vemos o limiar – inclusive temporal – entre a razão e a loucura do filósofo alemão (esta constatação pôde ser notada por meio de ótimas traduções que possuo em casa e que foram vertidas diretamente do idioma vernáculo de ambos os autores, uma vez que não falo alemão e tão pouco dinamarquês).
Temor e Tremor é a primeira obra que leio de Kierkgaard, antes dela, só havia lido uma excelente biografia escrita por Stephen Backhouse. À minha espera, em um cantinho do meu quarto nas pilhas de livros que ainda não li, encontram-se o livro já aqui citado “O conceito de angústia” e “Práticas do cristianismo”, última obra publicada em vida por Kierkegaard. A obra deste filósofo, teólogo, poeta e crítico social dinamarquês é surpreendentemente vasta, apesar de sua morte precoce aos 42 anos de idade. Porém, com estes poucos exemplares que me estão à disposição, creio que seja o suficiente para banhar os pés nas margens do mar profundo das ideias de um dos maiores escritores de todos os tempos.
“O desespero mais comum é não escolhermos ou não podermos ser nós mesmos, mas a forma mais profunda de desespero é escolhermos ser outra pessoa ao invés de nós mesmos." Soren Kierkegaard.