Melopeia, Fanopeia e Logopeia como ferramentas de interpretação poética.
Ezra Pound, poeta e crítico literário americano e umas das personalidades mais controvérsias do século XX, autor de dezenas de obras essenciais de poesia modernista, sendo a mais conhecida a de título “Os Cantos”, um livro com 120 poemas e tido como um dos mais importantes da criação poética, também escreveu a obra “ABC da Literatura”, na qual o autor dá a sua excelente contribuição em relação à crítica literária e à teoria estética.
Neste livro, Pound defende a importância da forma e do conteúdo na literatura, enfatizando a necessidade de uma linguagem precisa e rica como elementos fundamentais na produção de um texto de qualidade, criticando a prolixidade e a superficialidade como problemas inerentes a escritos de baixo valor poético, advogando por uma escrita mais direta e evocativa. Analisando diversas obras de autores clássicos, Pound destaca a influência que tiveram na cultura e na história da literatura até os dias atuais.
Pound também sugere que a literatura deve ser um reflexo da experiência humana, abordando temas universais e atemporais, bem como propõe que a arte deve ser acessível, mas também profunda, e que os escritores têm a responsabilidade de desafiar e enriquecer seus leitores.
Outro aspecto importante é a relação entre a literatura e a sociedade (tema indispensável nos estudos modernistas e que teve grande estudo por parte de Antônio Cândido, um dos mais célebres críticos literários brasileiros), Pound acredita que a literatura deve engajar-se criticamente com seu tempo, contribuindo para a consciência social e cultural, abordando a figura do poeta como um agente de transformação, capaz de influenciar pensamentos e comportamentos. O autor defende uma abordagem estética que valoriza a tradição, mas que também busca inovação e experimentação. Ele sugere que a literatura deve ser um campo dinâmico, onde novas vozes e estilos possam emergir, mantendo sempre um diálogo com o passado.
Contudo, não é apenas essas ideias importantíssimas que o autor nos traz nesta excelente obra, nela Pound introduz os conceitos de Melopeia, Fanopeia e Logopeia como elementos fundamentais da poética. Esses termos são centrais para entender como a linguagem poética pode evocar emoções e imagens.
Melopeia refere-se à musicalidade da linguagem. Pound enfatiza que a sonoridade das palavras deve ser considerada na composição poética, pois a música das palavras pode intensificar a experiência estética do leitor. Ele argumenta que o ritmo, a aliteração e a assonância, por exemplo, contribuem para a emoção e a atmosfera de um poema, tornando a leitura uma experiência mais visceral.
Fanopeia, por sua vez, diz respeito à capacidade da linguagem de evocar imagens visuais. Pound acredita que um poema deve ser capaz de criar imagens vívidas que se gravem na mente do leitor. Ele defende que o uso preciso de imagens concretas pode transportar o leitor a cenários específicos, gerando uma conexão emocional mais profunda com a obra. Essa evocação visual é crucial para a construção de significados.
Logopeia, o terceiro conceito, relaciona-se ao significado das palavras e à construção do sentido. Para Pound, a escolha das palavras deve ser deliberada e precisa, buscando sempre a clareza e a força expressiva. A Logopeia foca no poder da palavra como veículo de ideias complexas e sentimentos, onde cada palavra carrega um peso significativo dentro do contexto do poema.
Esses três conceitos se inter-relacionam, formando um triângulo que representa a essência da criação poética, fornecendo uma ferramenta essencial para os críticos literários analisarem poesia. Para constatarmos que essa técnica é extremamente eficaz no que ela se propõe, analisaremos aqui um poema de Jessica Kauana de Bastos, autora gaúcha que já publicou dois livros de poesia, “Poemas Para (Des)colorir Abismos” e “Caminhos Inversos – Luzes e Sombras”. O poema analisado está na página da autora, aqui mesmo no Recanto das letras. Eis o poema, AMORES E TRANSES, e a análise a seguir:
Dedico estes versos quase etéreos,
Tecendo mosaicos de luar, nas fendas dos abismos,
Em movimentos e êxtases, guiando-nos aos mistérios
De nossos desejos, ilusões, realidades & julgamentos
Ao último lampejo, sublime e infame,
Onde o trágico e o cômico se entrelaçam
Num dia escrevendo amores
E no outro, reescrevendo
Des(amores).
A musicalidade (Melopeia) do poema é uma característica marcante. A escolha das palavras, aliadas a um ritmo quase lírico, cria uma sonoridade que flui de maneira suave. Frases como “tecendo mosaicos de luar” e “movimentos e êxtases” apresentam um jogo sonoro que enriquece a leitura, tornando-a quase uma performance auditiva. A ação e contemplação presente no âmago dessa ideias confere um dinamismo que reflete a natureza mutável dos sentimentos abordados. Essa musicalidade não apenas atrai o leitor, mas também estabelece um tom de transcendência, sugerindo que as emoções, mesmo nas suas mais complexas formas, podem ser celebradas.
A Fanopeia se manifesta nas imagens vívidas que o poema evoca. As “fendas dos abismos” trazem à mente uma sensação de profundidade e mistério, criando uma atmosfera que é ao mesmo tempo sombria e fascinante. As expressões “último lampejo, sublime e infame” sugerem uma dualidade que permeia a experiência humana: a beleza e a feiúra coexistem, assim como o trágico e o cômico. Essa interação de opostos nos conduz a uma reflexão sobre a complexidade dos desejos e ilusões. A ideia de “escrevendo amores” e “reescrevendo des(amores)” simboliza o ciclo constante de criação e destruição que ocorre nas relações, evocando imagens de alegria e dor, união e separação.
A Logopeia é especialmente poderosa neste poema. A escolha de termos como “quase etéreos” sugere uma fragilidade intrínseca aos sentimentos, enquanto “mosaicos” implica uma construção complexa de experiências que se entrelaçam. O uso de “julgamentos” enfatiza o papel da percepção e da interpretação nas nossas vivências, indicando que a realidade é moldada por nossas ilusões e decisões. A tensão entre o “sublime e infame” provoca uma análise sobre a natureza dual dos sentimentos, destacando que o amor e a dor são frequentemente interdependentes.
Os temas de amor, desamor, desejo e realidade permeiam o poema. A dicotomia entre o trágico e o cômico sugere que a vida é um palco onde esses sentimentos se desenrolam, muitas vezes de maneira inesperada. Nos versos “num dia escrevendo amores” contrasta com “no outro, reescrevendo des(amores)”, apontando para a efemeridade das relações e a inevitabilidade das mudanças. Essa transitoriedade é uma reflexão sobre a própria condição humana, onde o que é celebrado em um momento pode ser lamentado no seguinte.
A análise do poema através dos mecanismos de Melopeia, Fanopeia e Logopeia revela um poema rico em musicalidade, imagens evocativas e significados profundos. O texto é um convite à introspecção, desafiando o leitor a considerar a complexidade dos sentimentos humanos e a beleza que emerge da sua dualidade. A capacidade do poema de entrelaçar amor e dor, desejo e realidade, ressoa como uma meditação sobre a natureza efêmera da experiência humana, sugerindo que, mesmo nas suas contradições, encontramos a essência da nossa própria humanidade.