Prometeu acorrentado

 

Análise da peça teatral "Prometeu acorrentado", de Ésquilo. Tradução e "estudos vários" de José Florentino Marques Leite. Coleção "Graeca & Latina" 14. Apesar da indicação de uma série, não há referência sequer à gráfica que imprimiu o opúsculo, que inclusive não possui lombada. Edição sem data: todavia a introdução do tradutor traz a indicação "Guanabara, 1964". Na capa consta o título "Prometeu", vindo o nome completo da obra no interior do volume.

 

Literatura mitológica! Uma raridade entre nós e sem dúvida a mitologia, pelo seu aspecto cósmico, tem uma certa relação com a futura literatura de ficção científica.

Com esta reserva quero prestar uma pequena homenagem a um amigo inesquecível, o Professor José Florentino Marques Leite, especialista em Grego, que faleceu em 29 de junho de 1982, aos 77 anos. Quando o conheci, em 1974, creio que já estava aposentado, mas ainda dava aulas na Escola Teológica do Mosteiro de São Bento. O Professor Marques Leite era homem modesto e despretensioso, muito religioso; escreveu vários livros, teve parte bastante ativa na vida cultural do país mas, certamente, não se importava com glórias e famas.

Na introdução Marques Leite refere-se às cosmogonias pagãs, à maneira como tentavam explicar a origem do mundo e da humanidade. Observa que Ésquilo produziu 80 peças teatrais, mas somente sete chegaram até nós.

 

A ação se passa, curiosamente, no extremo norte da Europa. Segundo o tradutor o Cáucaso é o cenário da continuação, "Prometeu libertado", que se perdeu. A história de Prometeu, bem entendido, é anterior à peça de Ésquilo. Este aproveitou o mito preexistente, que todos comhecem em linhas gerais, para montar sua tragédia. Prometeu é um "deus", filho de Júpiter e Climene, irmão de Atlas, Menecio e Epimeteu. No politeísmo grego os deuses são muito humanos, carnais e cheios de paixões. Prometeu aparece como um benfeitor da humanidade, por ter-lhe dado o conhecimento do fogo, que lhe era negado pelos deuses do Olimpo. Assim atraiu as iras do deus supremo, Zeus, que mandou acorrenta-lo numa rocha, com correntes tidas como indestrutíveis; e a um abutre mandou que lhe devorasse o fígado a cada dia, pois o órgão se reconstituia à noite. É curioso que um "deus" pudesse sofrer tais limitações físicas, ainda que não morresse de fome, sede ou cansaço. Prometeu viria a ser libertado, muito tempo depois, por Hércules, um semideus, capaz porém de matar o abutre e rebentar as correntes. Mas nem o início da história nem o fim, e nem mesmo o célebre lance do abutre, aparecem em Ésquilo. É compreensível. Trata-se de uma peça teatral, e não seria fácil treinar uma ave para o papel. E nem eu creio que o ator principal concordasse em ter o fígado devorado em público.

Por se tratar de literatura anterior a Cristo é natural que o estilo cause estranheza aos leitores modernos. Só para que se tenha uma ideia transcrevo alguma coisa da grandiloquencia do texto. Eis uma das falas de Prometeu:

"Ó Eter divino! Ó auras de céleres asas! Ó fontes fluviais! Ó imenso riso das ondas do mar! Ó Terra, mãe universal! Eu vos invoco e a esse orbe solar que tudo vê! Contemplai-me! Quanto sofro, embora deus e por causa dos próprios deuses! Vede contra que padecimentos terei eu de lutar, dilacerado, por milênios. Esta é a prisão infame que o novo chefe dos bem-aventurados para mim excogitou! Aí! Aí! Pela provação do momento e pela futura é que eu soluço! Donde, acaso, seria possível surgir o termo destas penas? Mas que estou dizendo? Logo eu, que prevejo claramente todo o porvir? Nenhum sofrimento me atingirá sem que eu antes o conheça."

 

Bem, antes que os leitores se debulhem em lágrimas diante de tanta desgraça, focalizemos os outros personagens do drama: Poder, Violência (sic) e o ferreiro Hefesto (Vulcano, em grego Hephaistos), que cumprem a ordem do deus tirano Zeus, acorrentando Prometeu (Prometheus) na rocha; Oceano e uma das Oceanidas, que tentam consolar o titã; Io, personagem enfeitiçada, que se queixa de suas próprias desgraças a Prometeu; e Hermes (Mercúrio), preposto de Zeus.

A mitologia grega é extremamente complexa e, apesar da cosmovisão que encerra, afasta-se muito do racional, que bem ou mal costuma ser seguido pelos escritores de ficção científica. Isso provavelmente é o que mais afasta a FC da cosmovisão mitológica. Os eventos narrados em "Prometeu acorrentado" são incompreensíveis para uma visão racional. Onde é afinal a morada de tais deuses, como eles se locomovem? Há, realmente, um "carro voador" ("carruagem alada") que transporta o Coro das Oceanidas (que por sinal são milhares...); bem como um carro transportado por um pássaro fabuloso chamado grifo (meio águia, meio leão), conduzindo Oceano. Prometeu conta sua história às Oceanidas mas, como eu disse, não é uma história compreensível. Segundo ele, a rebelião grassava entre os divinos Gênios; Prometeu tomou o partido de Zeus, na luta pelo poder: "e foi graças aos meus projetos que o abismo profundo e tenebroso do Tártaro escondeu dos seus aliados o vetusto Cronos". Ou seja, o soberano antes de Zeus. Mas se Prometeu tinha o dom de prever o futuro, como não enxergou o que Zeus lhe faria depois? Mais adiante Prometeu refere-se ao drama de seu irmão Atlas, "que, lá para as bandas do poente, aguenta, no ombro e de pé, uma carga nada leve - o sustentáculo do céu e da Terra ". A mitologia alimenta-se, já se vê, de conceitos absurdos, seguindo leis estranhas ao raciocínio moderno. É certamente uma ótima fonte para o estudo da psicologia dos povos antigos. Em termos de literatura obras como essa podem ser vistas, hoje em dia, mais como curiosidades, até por sua raridade no mercado.

Marques Leite apresenta ainda uma interessante árvore da teogonia grega, que mostra, na fase inicial, a divinização de conceitos cósmicos: Caos, Eros (criador), Anteros (destruidor), Destino, Luz, Noite, Erebo, Espaço, Céu e Terra, seguindo-se a isso os deuses antropomorficos e a "Era Olímpica de Zeus", onde aparecem Prometeu e os semideuses e, por fim, Rômulo e Remo, fundadores de Roma.

 

ÉSQUILO - Criador da tragédia grega, nascido em Eleusis em 525 A.C. e falecido em 456 A.C., considerado o introdutor do diálogo e do prólogo e das peças em trilogia. Chegaram até nós as seguintes obras: "As suplicantes", "Os persas", "Os sete contra Tebas", "Prometeu acorrentado" e a trilogia de "Orestia" ("Agamêmnon", "Coeforas" e "Eumenides".

 

Rio de Janeiro, 16 de maio a 20 de junho de 1992.

 

NOTA: após muitas mudanças de residência, não sei que fim levou o volume que eu tinha e que era, ao que tudo indica, edição amadora e independente. Há muitas edições dessa peça teatral no Brasil, isolada ou inclusa em edição com outras obras, como essa da imagem, da Ediouro. Quanto ao Professor José Florentino Marques Leite, nada encontrei na internet. O que é sintomático da cultura brasileira.