Crítica Literária de "O Doutor e o Canoeiro" de Osman Matos - por Giovanny de Sousa Lima - Academia de Letras de Cajazeiras -PB
"O Doutor e o Canoeiro", um conto de Osman Matos, faz parte do livro "A Viagem de Cristal" e é um exemplo claro da habilidade do autor em abordar temas profundos com simplicidade e eficácia. Este conto específico destaca a dicotomia entre conhecimento acadêmico e sabedoria prática, utilizando um cenário da Amazônia brasileira para explorar essas diferenças.
Enredo e Estrutura
O conto começa com um médico, o Doutor Joselito, que viaja para a Amazônia para realizar uma pesquisa acadêmica. A travessia do rio com o canoeiro Ubiraci serve como palco para o desenvolvimento da narrativa. A estrutura do conto é linear, com um início que estabelece o cenário e os personagens, um meio que desenvolve o conflito principal, e um fim que entrega a resolução e a moral da história.
Personagens
Os personagens principais, o Doutor Joselito e Ubiraci, são cuidadosamente contrastados. Joselito é retratado como um acadêmico instruído, mas desconectado da realidade prática da vida ribeirinha. Ubiraci, por outro lado, é um homem simples, mas dotado de uma sabedoria e habilidades que são cruciais para sua sobrevivência e a de outros na região.
O diálogo entre os dois personagens é revelador. As perguntas do doutor, que começam de forma educada e inquisitiva, acabam expondo um preconceito implícito sobre o valor do conhecimento acadêmico em detrimento da sabedoria prática. A repetição da frase "Você perdeu a metade de sua vida, rapaz!" reforça essa ideia e cria uma tensão que culmina na reviravolta final.
Temas
O tema central do conto é a relatividade do conhecimento e a valorização de diferentes formas de sabedoria. A narrativa questiona a supremacia do conhecimento acadêmico, sugerindo que a sabedoria prática e a adaptação ao ambiente são igualmente, senão mais, vitais.
Outro tema abordado é o choque cultural. O doutor, vindo de um contexto urbano e educado, vê a vida de Ubiraci como limitada, enquanto o canoeiro vê a incapacidade do doutor em nadar como uma falha fatal. Este contraste é uma crítica sutil à tendência de subestimar culturas e conhecimentos diferentes dos nossos próprios.
Estilo e Linguagem
A linguagem de Matos é simples e acessível, mas carregada de significado. O uso do diálogo em dialeto regional acrescenta autenticidade e profundidade aos personagens, além de situar o leitor no contexto amazônico. A narrativa é descritiva, pintando um quadro vívido do cenário natural, que serve como um personagem adicional na história.
Moral e Impacto
A moral da história é clara: todas as formas de conhecimento são valiosas e a vida é rica em diferentes tipos de sabedoria. A reviravolta final, onde o doutor precisa ser salvo pelo canoeiro, inverte as expectativas do leitor e sublinha a mensagem de que a arrogância intelectual pode ser perigosa.
Conclusão
"O Doutor e o Canoeiro" é uma peça literária bem-construída que combina humor, crítica social e uma lição de humildade. Através de personagens bem-desenhados e um enredo simples mas eficaz, Osman Matos nos lembra da importância de reconhecer e respeitar diferentes formas de conhecimento e sabedoria. O conto é uma leitura envolvente que provoca reflexão e admiração pela diversidade da experiência humana.
"O doutor e o canoeiro
(Texto de Osman MATOS)
— Um médico muito estudioso, filósofo, doutor de uma faculdade em São Paulo estava fazendo uma pesquisa acadêmica na Amazônia sobre a vida dos amazonenses ribeirinhos... Tinha que atravessar o caudaloso rio em uma canoa...
— Pode subir! - Disse-lhe o canoeiro – Senta aí nesse banquim e se segure! O rio tá muito cheio e com correnteza! Vai demorá uma mêa hora pra gente atravessá...
O médico acomodou-se na canoa, boquiaberto com a dimensão do rio, com a imensidão de árvores no horizonte, com aquele céu nublado incomensurável... Mas nada disso era o objeto de seu estudo, e sim, um caboclo da Amazônia logo ali à sua frente com um bom tempo para conversar durante a travessia... Pegou uma cadernetinha na mochila, uma caneta e começou a perguntar...
— Qual o seu nome?
— Ubiraci.
— Prazer. Eu sou o Doutor Joselito, e estou aqui na Amazônia pra fazer uma pesquisa para minha tese de pós-doutorado... Posso lhe fazer umas perguntas?
— Sim, dotô, pode falá.
— Você tem quantos anos?
— 55.
— Casado?
— Sim.
— Quantos filhos?
— Onze.
— Onze?
— Onze.
— Nasceu onde?
— Do ôto lado do rio.
— Sempre viveu onde?
— Aqui.
— Você não conhece outro lugar?
—Conheço. O ôto lado do rio.
— Ave Maria! Você perdeu a metade de sua vida, rapaz! Não conhece o Nordeste, não conhece Brasília, não conhece São Paulo, nada?
— Não, dotô.
— Aprendeu a ler, onde?
— Eu num sei lê, dotô, nem tem iscola aqui pu perto.
— Ave Maria! Você perdeu a metade de sua vida, rapaz! Nunca leu livros, não conhece a filosofia, a história, a química, a física...
— Num sei não sinhô.
— Ave Maria! Você perdeu a metade de sua vida, rapaz! Só pra você ter uma ideia, na filosofia que é a área que mais gosto, embora eu seja médico, você teria conhecido pelo menos dez, dos maiores filósofos da humanidade... Sabem quem foram?
— Sei não, dotô.
— Ave Maria! Você perdeu a metade de sua vida, rapaz! - Nietzsche, Santo Agostinho, David Hume, Ludwig Wittgenstein, São Tomás De Aquino, Hegel, Descartes, Platão, Kant, Aristóteles...
— Não sinhô, nunca ôvi falá nesse povo nem no que eles fez.
— Ave Maria! Você perdeu a metade de sua vida, rapaz!
— Sabe o que é biologia?
— Sei não sinhô.
— É a ciência que estuda a vida! Olha, rapaz, você perdeu a metade de sua vida!
O canoeiro continuou remando....
De repente, uma onda forte invadiu a canoa que começou a afundar...
— O Senhor sabe nadar, dotô?
— Êta! Sei não!!!!!
— Entonce, o sinhô perdeu a sua vida toda, porque eu sei!
Mas o doutor, apavorado, pediu socorro e o forte caboclo amazonense o salvou das águas turvas com muita habilidade.
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* Esse texto é uma das várias histórias contadas no livro "A Viagem de Cristal" de Osman Matos, publicado em 2017 pela Amazon.com nos formatos e-book e impresso.