Cap.5 - Em busca de memórias

A floresta, em seu silêncio, observava os dois guerreiros destacando-se entre as árvores. À medida que avançavam, Zero, que seguia atrás do espírito, podia agora admirar melhor o corpo luminoso à sua frente. As penas coloridas próximas às orelhas do espírito lembravam as usadas pelos Yanomamis, e seu tom de pele, combinado com uma saia de folhas amarrada por uma corda de algodão e uma máscara de madeira, criava uma imagem única. Mesmo emanando cores mais vivas, o efeito fantasmagórico ainda persistia, dando a sensação de irrealidade.

Descendo um pequeno morro, Zero teve que ter cuidado para não escorregar. Ele se agarrou a raízes, usou sua força para manter o equilíbrio e, por vezes, enfrentou terrenos inclinados. O espírito, por outro lado, desafiava as leis da física, caminhando pelas paredes do morro com facilidade.

Após esse caminho tortuoso, chegaram à entrada de uma caverna, camuflada naturalmente pelas árvores. A abertura de pedra era profunda e escura, e o espírito do índio conduziu a passagem com poucos espíritos da floresta. Uma preocupação pairava no peito de Zero, mas ele optou por confiar e seguir pelo misterioso túnel de pedras.

- Evite qualquer tipo de coisa que deixe você com “intenções negativas” dentro desta caverna, ou acabará acordando de forma perigosa o espírito de Boitatá.- alertou o espírito do índio.

- O que é intenção negativa?- Perguntou Zero a Seraph em sua mente.

- Energia é meu preço, sabedoria é a recompensa…- Resmungou Seraph, com malícia.

Enfurecido, ignorou a tentativa de conseguir a resposta para sua dúvida e continuou a seguir em frente.

Dentro da escuridão da caverna, apenas o olho de dragão permitia visão. chegaram em uma parede de pedregulhos empilhados impedindo a passagem adiante, o índio se virou para o rapaz e mirando a parede de pedras a sua frente com o indicador, fez uma observação:

- Essa foi uma parede de pedras erguida a muito tempo atrás por uma já extinta tribo indigena, ela foi criada para deixar Boitatá seguro enquanto dormia, ela está muito bem fechada, tentem usar o…

Um sorriso demoníaco surgiu na face do jovem, seguido de dois chifres feitos pelos seus cabelos, ignorando parte da frase do índio, Seraph tomou a frente e dirigiu um poderoso soco com seu braço direito na parede.

A porta desmoronou em pedaços, causando além de um grande estardalhaço, um tremor que pareceu ter afetado um pouco a estrutura antiga em que estavam. O índio olhava para tudo aquilo incrédulo, estava preocupadíssimo com o despertar do guardião, mas se aliviou assim que a poeira baixou, pois enxergou o espírito ainda dormindo.

Retomando o controle do corpo, Zero correu para perto do espírito do índio para lhe pedir desculpas, contudo se espantou admirado ao ver a desconhecida criatura:

- Nossa! Isso é… real?

Paralisado pela visão do espírito da cobra gigante, Zero não conseguiu ignorar sua presença imponente. Boitatá emanava uma luz branca fraca, contornando seu corpo e escondendo seu real tamanho, já que estava enrolado como um gongolo. Sua cabeça, adornada com escamas pontiagudas, escondia olhos fechados e dentes afiados. Não havia cores perceptíveis em seu corpo, criando a ilusão de um fantasma.

Seraph também contemplava o ser, lançando perguntas confusas a Zero em sua mente:

- Uma serpente? Será que… Não… Com certeza ele foi criado por alguém…

- O que você está resmungando, aí, bicho feio?- Perguntou Zero, inquieto com aquela voz na cabeça.

Seraph lutava para recordar, mas suas memórias estavam tão fragmentadas quanto as de Zero. No entanto, seu olhar inquisitivo para Boitatá deixava o jovem ansioso.

O espírito do índio aproximou-se da cabeça da cobra e acariciou suas escamas. Os pequenos espíritos da natureza que o acompanhavam começaram a entrar no corpo de Boitatá, desaparecendo em faíscas sutis que pareciam ser absorvidas pela serpente. O índio, triste, desabafou:

- Meu jovem, a floresta não produz mais a mesma quantidade de alimento que antes, tanto os Yanomami, quanto animais e

espíritos estão sofrendo com isso, pessoas estão desmatando a floresta de forma bruta, eles não veem mas se continuarem assim, quem vai morrer, serão eles mesmos, junto com seus filhos e mulheres, sem árvores não existe ar fresco, não existe sombra, não existe alimento, não existe firmeza na terra, não existe equilíbrio, não existe floresta, e no futuro, quem vai deixar de existir, serão vocês… Mas existem pessoas maliciosas que não entendem isso.

O espírito ainda triste, andou em direção ao rapaz, pegou gentilmente um pequeno espírito da natureza que passava por ele, e o acariciou enquanto olhava para Zero, dizendo:

- A natureza está alimentando boitatá com poucos mantimentos, não existe só ele de espírito guardião, existem outros que também precisam se alimentar, e por não conseguir energia o suficiente, estão dormindo… E graças a isso não conseguem desempenhar seus devidos papéis…

- Não sabia que espíritos dormiam…- disse Zero, intrigado com a novidade.

- É porque realmente não dormem… Quando qualquer tipo de ser espiritual entra em repouso, significa que esse ser está em estado crítico de falta de energia. - Respondeu Seraph enojado com falta de Sabedoria do menino- É um modo muito vulnerável, mas é necessário para receber energia até que consiga voltar a ativa, o problema aqui, é que esse ser, está recebendo uma quantidade de energia que apenas o mantém existindo, pois mesmo em repouso ainda existe um pequeno gasto de energia, e os poucos espíritos da natureza que o alimenta, não estão conseguindo suprir suas necessidades de forma que cubra o gasto padrão do modo repouso e que ainda sobre energia para acumular… ele precisaria de um sacrifício humano para voltar a ativa com força total, estaria disposto a sacrificar alguém para salvar a todos? - A pergunta maliciosa do demônio, parecia querer ver a reação e a resposta do humano.

Cerrando os punhos, indignado, a procura de uma resposta que resolvesse todos os seus problemas, o olhar do rapaz rodava o chão, sua mente funcionando a todo vapor, até que da escuridão de sua falhas lembranças, uma ideia se revelou:

- Se a comida que vem para ele está na conta exata, ao qual não o alimenta em abundância, mas também é precisa o suficiente para não deixá-lo morrer, significa que existe um ser inteligente que distribui os espíritos das árvores para os espíritos guardiões! Afinal, eles não parecem inteligentes o suficiente para fazerem isso sozinhos…

- Buhhh!- Respondeu o espírito da floresta, dando língua para Zero, talvez ele não tenha gostado muito do comentário.

O espírito do índio admirou a sabedoria do rapaz com algumas palmas, mas pareceu não ter ficado muito animado com a ideia, e rapidamente explicou o por quê disso:

- Muito bem observado, e sim, existe um ser que os comanda, é a mãe da floresta, uma entidade que fica no coração da floresta, mas o que exatamente você iria querer com ela?

Com as mãos coçando a cabeça, Zero arriscou perguntar:

- Será que ela conseguiria trazer alguma das minhas memórias de volta? Eu tenho algo que pode ajudar… Eu tenho… Eu sei que tenho… Se não tivesse, por que eu teria chegado até aqui?... Se não tivesse porque esse tal de Deus estaria me protegendo? Se eu consegui chegar até aqui deve haver uma razão… E se não houver, pelo menos eu terei feito o meu melhor e não só ficado culpando minhas memórias…

O espírito do índio, olhou no fundo da alma do rapaz, e se alegrando com a atitude tomada, disse:

- O nome disso é fé, admiro isso em você, pois mesmo quando não temos certeza de algo, as vezes temos que tomar atitudes assim, porque sentar e choramingar sobre nossos defeitos não vai ajudar em nada… Eu não sei ao certo se a mãe da floresta pode te ajudar com isso, mas não temos nenhuma ideia melhor… Se não der certo, pelo menos você tentou, agradeço pelo esforço que tem feito para ajudar meu povo, muito obrigado, mesmo eles não sendo da mesma tribo que eu… Somos todos filhos da terra, e a floresta é nosso lar, temos que protegê-la.

Com um sorriso no rosto, virou-se para a saída da caverna, e com determinação, Zero falou firmemente:

- Não me agradeça ainda, temos que ir rápido até o coração da floresta, não sei quando vai começar o incêndio, nem como o fogo vai se espalhar, mas sei que não podemos perder tempo!

O espírito do índio se animou, e assumiu a frente, os dois saíram correndo para fora da caverna, e continuaram sua jornada.

A voz demoníaca veio a sua mente perguntando ao rapaz:

- Porque você está se dedicando tanto em ajudar eles? Te trataram como um animal, um monstro, e você ainda quer salvá-los? Por acaso está querendo se perdoar com seu passado?

Enquanto corria, Zero respirou fundo, admirando toda a paisagem da floresta passar ao seu redor regozijando-se de uma paz interior que talvez nem ele sabia que tinha, então tranquilamente soltou o ar e respondeu seguindo os sentimentos que naquele momento pulsavam em seu coração:

- Na verdade… Eu devo dizer que… nem eu sei direito o porque estou fazendo isso… minha mente está em trevas… Mas aquela voz… - Às memórias do espírito de Deus impedindo Clóvis de matá-lo vieram a sua mente.- Aquele ser… ele carrega uma luz que me guia mesmo dentro da escuridão… Eu não tenho certeza de nada… contudo… eu sinto ele apontando o caminho, e por algum motivo… sinto que estou no caminho certo… além do fato de que eu odeio injustiça! E se eu tenho poder, quero ajudar!

O demônio pareceu entender mais aquelas palavras do que o próprio jovem, e estranhamente perante uma resposta tão singela ficou quieto.

O quebrar das folhas junto com o zumbido do vento que passava por seus ouvidos, se complementam na música que os pássaros soltavam pelo caminho.

Depois de alguns minutos correndo, o suor já era mas que presente nas vestes que Zero havia ganhado de Clóvis, sua calça jeans estava suja com alguns pedaços de folha úmida grudados nela, seus tênis all star, manchados de terra e umidade do solo, enquanto seu blusão xadrez vermelho retinha o suor que descia de seu rosto.

Mas seu cansaço se foi, ao ouvir do índio:

- Chegamos!

Eles pararam de correr, diante de uma grande e majestosa árvore que como um déjà vu, vinha a sua mente o lembrando que foi neste local que apareceram espíritos de índios protegendo a árvore, suas grossas raízes tinham vários espíritos da floresta brincando sobre elas, eles estavam mais alegres do que o normal, e andavam por uma pequena trilha feita por formigas.

(Segredo)

(As trilhas feitas por formigas, são estradas para os espíritos da floresta caminharem e recompensá-las, guiando elas para alimentos e novos lugares.)

Se aproximando, pode notar melhor as muitas e diversas flores, que haviam ao redor do campo, as árvores frutíferas estavam recheadas de formosos frutos, um pequeno e muito belo rio, passava próximo ao local, saindo do rio sua visão deu de encontro com uma silhueta que prendeu sua atenção.

Um formoso brilho tão gentil quanto a luz do amanhecer, emanava do espírito que estava sentado entre as raízes da grande mangueira, muito semelhante a uma mulher humana, e diferente de Seraph, que era obscuro e difícil de descrever, Zero conseguia identificar facilmente seu detalhes vívidos, uma tiara dourada foi a primeira coisa que mais lhe chamou atenção, ela cobria a testa do espírito deixando amostra sua sobrancelhas, os cabelos lisos e tão escuros quanto a noite, vazavam por baixo do ouro até caírem por suas orelhas, por cima do mesmo objeto, longas penas amarelas e azuis seguidas de folhas de bananeira, que cobriam seu escuro cabelo, se estendiam até próximo de seu quadril, seus olhos tinha as mesmas cores das mangas maduras no pé, puxando bastante para o amarelo, sua pele bronzeada buscava um tom um tanto quanto avermelhado, que destacava as folhas verdes que passavam abaixos dos ombros até taparem seus seios, e próximos a cintura cobrindo a virilha, mesmo seus pés estando descalços sobre a terra húmida, não se encontrava uma mancha sequer que interferisse em sua beleza.

Os olhos do espírito logo foram de encontro com os do rapaz, que em espanto se ergueu, recuando para próximo a árvore, acompanhada dos espíritos da floresta, que se escondiam atrás de seu calcanhar, folhas ou entre as diversas penas em sua cabeça.

O espírito do índio, logo foi de encontro para acalmá-la, explicando a situação:

- Mãe da floresta! Por favor, não se assuste, ele é um homem branco, mas não é um homem ruim, ele não veio destruir a floresta, pelo contrário! Ele está ajudando a protegê-la, viemos até aqui para pedir sua ajuda…

A mãe da floresta ficou mais tranquila ao ouvir aquilo do índio, ela parecia ter uma grande confiança nele, o espírito do índio logo se ajoelhou, curvando a cabeça perante ela, os espíritos da natureza o escalaram, dançando e brincando em seus ombros.

A donzela rindo, tocou gentilmente seu rosto, e o levantou, ela não parecia querer ele de joelhos dobrados, e amorosamente o ajudou a se pôr de pé com doces palavras:

- Ora! Se não é o meu querido guerreiro, como era mesmo seu nome quando vivo… Ah! Lembrei! Yato! Fufufu.

Mesmo com a máscara tapando seu rosto, era possível identificar um pouco de vergonha nele perante a presença daquela beldade, enquanto isso um espírito da natureza puxava sua orelha parecendo querer sua atenção, provavelmente ignorar as travessuras dos espíritos da natureza era algo rotineiro, pois Yato fazia isso com maestria e continuava a conversa como se nada estivesse acontecendo:

- É uma honra saber que a senhora lembra do meu nome…

- Ora não seja modesto, seu povo é tão bom comigo, lembrar de seus nomes é o mínimo que eu posso fazer… Mas, aquele jovem não parece ser do seu povo, eu nunca ouvi o nome dele pelos bosques de nossa floresta…- diz a Mãe da floresta, enquanto analisava o rapaz com seriedade, e não demorou muito para que seu amável sorriso voltasse ao rosto, enquanto fazia um gesto com os dedos para que o rapaz se aproximasse.- Não tenha medo, venha cá…

- Talvez os espíritos da floresta não sejam tão inúteis assim…- Por algum motivo o tom da frase de Seraph estava mais apimentado que o normal.

- Seraph… Seus pensamentos estão me deixando desconfortável… - Resmungou Zero.

Acanhado, o garoto se sentia intimidado diante da elegante presença da donzela. Aproximava-se em passos um tanto desengonçados, cuidando para não pisar em nenhum cábuh em seu caminho. Mesmo já tendo chutado um ou outro sem querer, Zero procurava manter-se atento. Ao chegar mais perto, permitiu-se uma análise mais detalhada da figura diante dele. Nesse momento, Seraph surgiu nos pensamentos de Zero, fazendo a seguinte observação:

- Ela não é um espírito, me parece mais uma entidade criada… Não está em um nível baixo, mas não conseguiria se defender de um demônio.

- Qual a diferença de um espírito para uma entidade?- Perguntou Zero, mentalmente.

Seraph puxou Zero para a zona do selo, águas vermelhas e profundas cobertas pelo céu estrelado novamente, no espelho d’água, ele como sempre, encarava o rapaz enojado por sua falta de sabedoria, e sem muita paciência, resmungou:

- Já percebi que você vai morrer cedo… Porque do jeito que você é leigo, vai perder toda a sua energia para mim só com perguntas, vou te responder, mas não pense que estou fazendo caridade, uma hora você vai ter que me pagar…

O rapaz revirava os olhos com desgosto, enquanto esperava a resposta batendo o pé direito de braços cruzados, Seraph sem muita enrolação, começou a explicar:

- Espíritos foi uma palavra inventada por vocês, pois eu me recordo que na minha época não existia esta palavra. Acredito que ela seja de uso universal para qualquer criatura do mundo espiritual, fora os erros de tradução, por que eu não sei se você se lembra, mas eles não estão falando na sua língua, eu que ativei uma das chaves mentais para você, mas a tradução é feita a partir daquilo que a sua mente entende, e cai entre nós, você não entende porra nenhuma!

- Ei! A culpa não é minha, eu não escolhi ficar sem memórias! E falando nisso, como você se lembra de tanta coisa?

- Eu estou vivo a séculos, perdemos memórias na mesma porcentagem, mas a quantidade de memórias que eu tenho, não se compara a quantidade de memórias que a sua cabeça de grilo tem.

- Faz sentido, Espera… Eu não tenho cabeça de grilo! Abaixa o chifre para falar comigo seu corno!

No vulto escuro em que Seraph estava, apenas seus olhos e seus dentes enfurecidos eram visíveis, mas mesmo com raiva pareceu ignorar a provocação e seguiu com o assunto anterior:

- Não vou me alongar com as explicações mundanas, mas, para simplificar: “Entidades” é um termo amplo e cheio de nuances, mas estou me referindo especificamente agora às entidades criadas, seres criados a partir de uma força maior, destinados a assumir o controle ou a servir a propósitos específicos. A Mãe da Floresta, por exemplo, é uma entidade de luz, presumivelmente criada por algum anjo, com a finalidade de desempenhar diversos papéis que demandam uma consciência mais elevada. Um desses papéis inclui guiar os espíritos da floresta para o Boitatá e outros seres semelhantes.Já os “espíritos”, ou, como costumávamos dizer em eras passadas, 'almas vagantes', não são criações de ninguém. São aqueles que partiram deste plano, mas conseguem manter vestígios de consciência, como o índio que te serviu de guia até aqui, Yato. Alguns deles também podem ser chamados de entidades, mas nesse tipo de caso é com o intuito de se referir a algo mais forte que uma simples alma vagante. Muitas vezes, são esses seres que recebem cultos em diversas religiões diferentes pelo planeta. Acho que para o seu entendimento ínfimo esse foi um resumo adequado.

- Entendi… e antes que eu me esqueça… Toma logo isso!

Esticando o braço esquerdo em direção ao selo no espelho d’água, sua energia foi passada em uma pequena quantidade ao demônio, que logo sorriu e respondeu com deboche:

- Foi um prazer, saiba que para qualquer pergunta sem resposta, eu estarei aqui pronto para… “te ajudar”! Hahaha…

O rapaz retrucou com uma careta, o túnel de luz logo caiu sobre ele, trazendo-o de volta para a realidade ao qual só havia passado alguns segundos.

- Me diga do que você precisa meu filho?- Perguntou a doce voz da mãe da floresta.

O espírito do índio, cutucou Zero com o cotovelo, fazendo ele voltar a se ligar no que estava acontecendo, e rapidamente se ajeitou, voltando a formular a pergunta, direcionou a fala a mãe da floresta:

- Preciso de algo que me ajude a restaurar minhas memórias, para que eu possa ajudar o Boitatá, a tribo dos Yanomami e a floresta! Você conhece alguma coisa que possa me ajudar?

A mãe da floresta se alegrou ao ver a bondade no menino, e com uma risadinha, respondeu:

- É muito bom ver que ainda existem pessoas assim… Por você estar querendo cuidar da floresta, também está cuidando indiretamente de mim, e de todos eles… Então, também cuidarei de você!

- Que espírito mais… A D O R Á V EL… - Os pensamentos impuros de Seraph atrapalhavam o raciocínio do pobre rapaz.

- Fica quieto, capeta…

A mãe da floresta, ria do menino que parecia cochichar consigo mesmo, entretanto ela conseguia entender o real motivo disso, e surpreendeu até mesmo ao demônio ao dizer:

- Vocês dois são engraçados… Não deixe ele contaminar seu puro coração minha criança… Quanto ao remédio… Saiba que sua alma está muito machucada, o seu problema não é físico, é espiritual, mas acho que posso fazer um remédio para te ajudar… Preciso de algumas plantas, tragam elas a mim, os espíritos da floresta vão guiar vocês.

- Ok! Muito obrigado!- Respondeu o rapaz empolgado, olhando feliz para o espírito do índio, que dançando, agradecia a Mãe da floresta, e o retribuia com um olhar igualmente alegre.

- Vamos, não temos tempo a perder!- Diz Yato correndo com um espírito da floresta apontando a direção em seu ombro.

Animado e esperançoso com a resposta, Zero seguia logo atrás correndo com o vento, agora em busca de encontrar as plantas medicinais.

Os espíritos da floresta, provenientes de todos os recantos, pareciam estar sintonizados com a situação. Não importava para onde Zero direcionasse seu olhar; sempre havia um deles apontando a direção. O jovem se deliciava com essa interação sobrenatural e não resistiu à tentação de perguntar:

- Eles gostam de apontar, né? Hahaha.

- É graças a eles que os animais não se perdem na floresta, eles também mostram aos animais quais plantas podem ou não podem ser comidas, eles também ajudam a migrar os animais de um ponto ao outro, e ajudam as plantas de outros lugares a crescer, esses são o espiritos da floresta, mas também existem os dos céus e dos mares, todos têm a mesma finalidade e todos fazem isso há milênios, reza a lenda que eles estavam aqui antes de nós, mesmo não sendo fortes ou duradouros devemos respeito a eles.

Ao entender o valor daquelas pequenas criaturas, o olhar encantado de Zero passava de um em um, no entanto não era hora de ficar admirando eles, e rapidamente continuou seguindo a rota.

- A primeira a chamar a atenção foi uma delicada flor branca, de pétalas tão pequeninas que pareciam dançar com a brisa. Logo em seguida, Yato identificou, com destreza, sementes marrons escondidas entre troncos podres, revelando-se como tesouros em meio à vegetação decrépita. A terceira descoberta foi uma flor majestosa, suas pétalas brancas se tingiam de uma tonalidade roxa ao se aproximar do caule robusto. Embora estivessem dispostas a certa distância uma da outra, os espíritos da floresta, como guias invisíveis, tornaram a busca uma jornada descomplicada.

Com todos os materiais em mãos, eles finalmente poderiam voltar para a Mãe da floresta, então seguiram o caminho de volta guiados pelos pequeninos.

- Acho que sei o remédio que ela vai preparar para você- dizia o índio, parecendo segurar a risada por debaixo da máscara.

- O que tem nele de tão engraçado, Yato?- Perguntou o rapaz confuso.

- É que você vai ter dança para mexer com a vibração do seu espírito, e você é horrível dançando, hihihi…

- A cara… Dança de novo não!… Porque vocês têm essa obsessão por dançar?

- Não é obsessão, isso faz parte de nós, a dança é o jeito que temos de mostrar nossas almas e elevar nossos espíritos.

Um singelo sorriso surgiu no rosto do jovem com a resposta de Yato, mas rapidamente desapareceu, os espíritos da floresta começaram a se esconder dentro das árvores, o pequenino que estava no ombro do índio, rapidamente pulou e correu para dentro do tronco mais próximo.

A atmosfera do local se transmutou, um peso pairou no ar, as aves próximas alçaram voo subitamente, e seus movimentos se confundiam com o vento que, por sua vez, parecia mudar de direção. O índio, vigilante, acompanhava cada folha que se movia, atraindo a atenção de Zero para uma energia arrepiante que parecia emanar de algo à frente.

- Sinto a presença de demônios se aproximando…- Resmungou Seraph.

Yato, perspicaz como sempre, mantinha seus sentidos alerta, seus olhos percorrendo a densidade da floresta com a intensidade de quem busca sombras fora do lugar. A atmosfera pairava em um silêncio profundo, apenas o vento sussurrava entre as folhas, como se até mesmo as criaturas da floresta contivessem a respiração em antecipação.

A tranquilidade foi abruptamente rompida pelo grito desesperado de Zero, que cortou o ar como uma lâmina afiada. "Se abaixe!" - ordenou, lançando o espírito do índio ao chão com urgência, esquivando-se da investida de um cachorro demoníaco que avançava com ferocidade.

Nesse momento, o ambiente pareceu se contrair, os sons naturais cederam espaço a uma sinfonia dissonante de uivos distantes e passos furtivos. A luz filtrada pelas folhas agora parecia dançar de maneira inquietante, projetando sombras que se moviam independentemente da brisa. A tensão era palpável, como se a própria floresta estivesse prestes a revelar seus segredos mais sombrios.

Diante do iminente embate, Yato permanecia firme, sua lança de madeira uma extensão de sua vontade. Cada folha que se movia era uma potencial ameaça, e a floresta, um cenário de perigos desconhecidos. O silêncio era uma trama, e os eventos desenrolavam-se como um fio prestes a ser puxado, desencadeando o desconhecido naquele bosque sombrio.

Com pouquíssimo tempo para reagir, Zero agarrou o braço do índio usando sua armadura e começou a correr. Dois cachorros demoníacos surgiram em suas costas e já podia se ouvir o som das patas levantando as folhas de forma bruta, o jovem olhando intensamente para frente para evitar tropeçar, mesmo que desse vontade de tentar examinar os cães demoníacos que surgiam por toda parte.

Um dos cães surgiu como uma fumaça negra à sua frente, bloqueando o caminho. Os cachorros demoníacos eram incrivelmente rápidos e alcançaram a dupla sem esforço.

Os cães demoníacos surgiram das sombras, velozes e ágeis, como silhuetas negras recortadas contra o cenário da floresta. Cada criatura possuía aproximadamente um metro de altura, apoiando-se em quatro patas musculosas que se moviam com uma agilidade assombrosa. Seus corpos, envoltos em sombras, tornavam difícil distinguir suas formas exatas, criando uma aura de mistério e ameaça.

As seis orelhas pontiagudas se erguiam em alerta, captando os menores ruídos na floresta. Seus focinhos compridos exalavam um ar de ferocidade, revelando presas afiadas que se projetavam quando rosnavam. Surpreendentemente, nenhum olho era visível em seus rostos sombrios, aumentando ainda mais a sinistra presença desses seres.

- São demônios de baixo nível, estão aqui a mando de alguém, significa que temos que matá-los antes que o dono deles chegue até aqui, não temos condições de lutar contra um demônio de nível superior a este.- Alertou Seraph após tomar momentaneamente o controle do corpo de Zero para alertar Yato sobre essas informações.

O índio puxou um apito de sua cintura e soprou, o som do objeto ecoou por toda a floresta como o grito desesperado de um pássaro em apuros, Zero que voltou ao controle do corpo, não entendeu nada sobre a atitude do índio.

Após o misterioso silêncio, Zero pôde sentir a atmosfera elétrica carregando-se ao seu redor. De repente, um vento forte envolveu a cena, fazendo seus cabelos dançarem ao ritmo de uma dança invisível, e seus olhos se fecharam momentaneamente sob a força do vendaval. Folhas secas, como mensageiras do além, espiralavam em sua direção, criando um redemoinho de mistério.

Quando seus olhos se abriram novamente, uma visão surpreendente se desdobrou diante dele. Espíritos de índios mascarados emergiram, seus semblantes determinados e lanças afiadas de madeira empunhadas. A cena era de um confronto iminente: cinco destemidos índios enfrentavam, com coragem ancestral, cinco temíveis cachorros demoníacos.

As lanças apontavam para o desconhecido, uma dança silenciosa de desafio. Os monstros, por sua vez, retrucavam, mostrando presas afiadas e olhares ferozes. O ar pulsava com a intensidade da batalha iminente, enquanto Zero se via envolto nesse momento épico entre o sobrenatural e o terreno, onde a linha entre o medo e a coragem se tornava tênue.

Os índios abriram caminho avançando contra dois demônios que estavam à frente de Zero, foram necessárias algumas estocadas e defensivas para imepedir que as pressas deles os ferissem mas logo os monstros tiveram suas cabeças furadas pelas lanças, e caíram ao chão, o espírito do índio segurou o garoto pelo braço e o puxou, ambos saíram correndo, com o caminho já aberto e segurando firme os ingredientes para que não escapassem pelos dedos ele evitava de olhar para trás.

Os outros índios desdobravam-se em uma dança feroz contra os cães demoníacos, ganhando preciosos momentos para Zero e seu guia. À beira do rio, o espírito apontou para uma canoa ancestral, cujo exterior denotava o peso dos anos, mas que ainda exalava a promessa de uma jornada fluida. Zero, impelido pela urgência, agarrou a canoa e a arrastou até a margem do rio com determinação.

- Essas águas te levarão mais rápido até a Mãe da Floresta. Suba na canoa agora! - Instruiu o índio espiritual, e sem hesitar, Zero empurrou a canoa para dentro do rio e embarcou nela. O índio, mais uma vez, acionou um apito, convocando espíritos aquáticos para auxiliar.

Das profundezas do rio surgiram figuras etéreas, mulheres de contornos esbranquiçados, suas formas mal discerníveis, salvo pelos olhos que brilhavam na penumbra. Suas extremidades inferiores assemelhavam-se a caudas de peixe, enquanto suas mãos ostentavam garras afiadas. Em silêncio, elas se postaram ao redor da canoa, empurrando-a com uma força invisível, conduzindo-a velozmente pelas águas.

A canoa deslizava como uma flecha através das correntezas, e peixes nadavam em sintonia ao seu redor. Enquanto a viagem fluía, Zero, preocupado com seu amigo Yato, não conteve a pergunta:

- E você? O que acontecerá contigo?

- Você é o foco agora! Eu acredito em você! - respondeu o índio espiritual.

O olhar preocupado de Zero, momentaneamente desviado para seu protetor, logo foram ofuscados pelo cenário que se desdobrava diante dele. A canoa, impulsionada pela correnteza e guiada pelos espíritos da água, cortava as águas com uma velocidade impressionante. Insetos zumbiam ao redor, mas o turbilhão de emoções e responsabilidades suprimia qualquer aversão que pudesse surgir. O rio, como uma fita líquida, conduzia Zero em direção ao próximo capítulo de sua jornada.

A canoa perdeu velocidade, e sem perceber já haviam chegado até a grande árvore, os espíritos encostaram a canoa na margem e observaram Zero correr com os materiais que conseguiu até o espírito da Mãe da floresta.

- Mãe da floresta! Aqui! rápido, pode ser que exista um demônio de alto nível nesta floresta! Eu ainda tenho que voltar para ajudar ele! E…

- Se acalme…- cortando a frase de Zero, ela o tranquilizou.- Vai dar tudo certo…

A Mãe da Floresta, ao perceber a angústia no rosto do jovem, manteve-se firme, como uma guardiã da natureza. Seus aplausos ecoaram como um chamado, e os olhos dos espíritos da floresta começaram a cintilar, emitindo uma luminosidade tênue, semelhante a frágeis velas em meio à escuridão da noite.

Os espíritos, em uma coreografia harmoniosa, apressaram-se, trazendo consigo elementos escolhidos a dedo. Um pedaço de árvore esculpido naturalmente em formato de cumbuca, água límpida colhida de uma nascente próxima e uma variedade de plantas com propriedades específicas foram organizados diante da Mãe. Em um ritual coordenado, um espírito entregou um pedaço de pedra, que a Mãe da Floresta usou para guiar os movimentos de Zero na preparação do remédio.

Os materiais foram amalgamados, cada passo acompanhado por gestos precisos da Mãe. A água límpida, as ervas aromáticas e a energia da floresta convergiram na cumbuca esculpida. A Mãe, com uma expressão serena e sábia, indicou que era hora de Zero beber da poção que se formara.

- Beba! - proferiu ela com segurança, apresentando a cumbuca ao jovem. O líquido dentro dela, uma fusão de essências naturais, aguardava para acalmar as aflições de Zero, enquanto a luz dos espíritos dançava ao redor, refletindo a magia da cura que a floresta proporcionava.

Sem enrolação, Zero agarrou a cumbuca e jogou o remédio goela abaixo, o gosto amargo e completamente horroroso, fazia o rapaz ter até mesmo calafrios, criando caretas que apareciam em sua face sem esforço.

Respirando fundo e tentando voltar a postura, seu olho direito se apagou sem que percebesse, quase como se parasse de funcionar, sua visão estava turva, o mundo começava a girar, sua cabeça fora de lugar começava a parar de sentir seu corpo.

Entre todas aquelas sensações os espíritos da natureza começaram a escalar seu corpo e entrar pela sua boca, o corpo do rapaz tombava ajoelhado, a energia da natureza que corria pelas suas veias fazia seu corpo se mexer sozinho, seus olhos se revirando.

O brilho antes vermelho que emanava de seu olho, agora brilhava em branco, o menino começou a ter convulsões, se debatendo descontrolado, a mãe da floresta, preocupada disse:

Você tem que aguentar! Seja forte!

Um estrondoso grito, ecoou da boca de Zero:

- CÁ! CÁ! CÁ! CÁBUH! BUH! - Gritava o menino com sua voz alterada em timbres semelhantes ao dos espíritos da natureza.

Entre os gritos a voz de Seraph sussurrava em sua mente:

- PARA DE SER FROUXO! Deixe os espíritos da natureza se juntarem a sua energia, você está os rejeitando, você tem que se controlar…

Zero, incapaz de articular palavras, foi envolto por uma grande inspiração, silenciando os gritos descontrolados que ecoavam de sua boca. Com a expiração, a agitação em seu corpo gradualmente cedeu, dando lugar a uma serenidade reconfortante. Uma corrente de energia, fluida como a água cristalina de um riacho, percorreu suas veias, conferindo-lhe uma sensação de leveza, como se estivesse sendo carregado pelo vento.

Inadvertidamente, seu corpo desfaleceu, e sua cabeça encontrou um repouso gentil no colo da Mãe da Floresta. Enquanto ela acariciava suas mãos sobre os cabelos do jovem, sussurrava palavras de cura e tranquilidade, cujo significado escapava no momento, mas que carregavam consigo a essência calmante da natureza. O ambiente, impregnado com a magia da floresta, testemunhava a fusão entre o ser atormentado e o poder restaurador da Mãe da Floresta.

Caindo em um sono profundo, uma memória veio à tona.

Brauns
Enviado por Brauns em 26/05/2024
Reeditado em 28/05/2024
Código do texto: T8072027
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